O historiador Peter Burke reflete sobre a era da informação
Doze anos depois de lançar Uma História Social do Conhecimento – De Gutenberg a Diderot, o consagrado historiador inglês Peter Burke conclui seu ambicioso empreendimento intelectual com Uma História Social do Conhecimento II – Da Enciclopédia à Wikipédia (Zahar, 416 pgs. R$59,90). O segundo volume começa onde terminou o primeiro: com a publicação da Enciclopédia Francesa por Diderot, em meados do século 18. E chega até nossos dias, a era da Internet e do acesso instantâneo às informações da Wikipédia. Como o autor afirma na Introdução, a obra nasceu de uma curiosidade pessoal: “Por quais caminhos chegamos ao nosso estado atual de conhecimento coletivo?”
Leia aqui um trecho do livro.
Para Burke, a narrativa da aquisição e da acumulação do conhecimento não é a de uma história vitoriosa, em progresso constante. Em um texto equilibrado – e fundamentado numa pesquisa sólida – o autor foge do tom apocalítico ou entusiasmado que marca algumas publicações recentes sobre o assunto. Como historiador, ele é capaz de perceber que a coexistência de antagonismos integra qualquer fenômeno social: “A nacionalização do conhecimento coexiste com sua internacionalização; a secularização, com a contra-secularização; a profissionalização, com a amadorização; a padronização, com a personalização; a especialização, com projetos interdisciplinares; a democratização, com movimentos contrários ou restritivos a ela. Mesmo a acumulação de conhecimento é, em certa medida, contrabalançada por perdas”, escreve.
Nesta entrevista exclusiva, Peter Burke fala sobre a ameaça da Internet à privacidade, o impacto da globalização na circulação do saber, a influência de Michel Foucault em sua pesquisa e o futuro do livro impresso, entre outros temas.
- Quando você escreveu o primeiro volume de “Uma História do Conhecimento”, já planejava escrever o segundo? O que mudou entre 2000 e 2012, na sua maneira de entender o assunto?
PETER BURKE: Quando escrevi o primeiro volume de Uma História Social do Conhecimento, nos anos 90, não tinha intenção de escrever um segundo volume. Ao longo de minha carreira como professor de História, eu me especializei na Europa dos século 16 e 17, então até mesmo escrever sobre o ano de 1750 era para mim um passo bastante ousado. Mas depois que me aposentei, em 2004, eu me senti livre para me dedicar a qualquer linha de pesquisa que me interessasse, e eu queria entender como chegamos à situação atual em relação ao conhecimento. Procurei um estudo geral da História do conhecimento de 1750 até o presente, mas não encontrei nenhum, então decidi que eu mesmo escreveria o livro que eu gostaria de ler!
- A Wikipedia é muitas vezes criticada pela imprecisão de suas informações, e recentemente o escritor Philip Roth entrou em conflito com ese site. Você considera que a Internet pode produzir uma diminuição da qualidade do conhecimento, como afirma alguns autores? Por quê?
BURKE: Eu não acredito em tudo que leio na Wikipedia. Na verdade, quando preciso utilizar qualquer informação que encontro lá eu tento confirmá-la em outra fonte. Mas eu me acostumei a fazer o mesmo em relação a verbetes de enciclopédias impresas, como a Britannica: estudos demonstram que a Wikipedia é em media tão precisa quanto a Britannica. Se as pessoas passassem a confiar exclusivamente na Internet para obter informações, de fato poderia ocorrer uma diminuição na qualidade da informação, como você sugere. Mas o verdadeiro problema está em aceitar as informações de forma acrítica, venham de onde vierem.
- E como você analisa o poblema da privacidade na rede, de informações pessoais que são cada vez mais utilizadas para fins comerciais ou mesmo políticos?
BURKE: Não gosto de invasão de privacidade, seja por parte do governo, da imprensa ou da internet. Mas quando ela é feita com finalidades comerciais, pode-se resistir a ela. Quando é feita com objetivos politicos, ela traz benefícios e malefícios.
- Você escreve que é a análise que converte a informação crua em conhecimento efeitov. você acha que a capacidade de pensar criticamente das pessoas está acompanhando a explosão de informação disponível. Há cada vez mais informação, mas se pensa cada vez menos? Vivemos um “vazio do excesso”?
BURKE: Concordo que a explosão da informação torna mais aguda a necessidade de processamento – seleção, crítica, análise etc. Ela traz um desafio. Acho que os currículos das escolas deveria ser modificado para enfrentar esse desafio, para que os estudantes aprendam como lidar com a massa de informações disponíveis, e que compete pela sua atenção.
- A internet provoca um achatamento do espaço e do tempo, como se vivêssemos num eterno presente, em todos os lugares. Qual o impacto disso na sociedade e na relação do indivíduo com o conhecimento?
BURKE: Sim a Internet contribui para um processo de compressão do tempo e do espaço, o que é um dos traços dominantes da pós-modernidade. A mesma coisa aconteceu, com menos intensidade, na Idade Moderna, especialmente depois do final do século 18. De qualquer forma, é impossível dominar completamente o espaço e o tempo. Até porque a informação cirdula em diferentes línguas, em diferentes partes do globo. Além disso, até mesmo a Internet já tem um passado, que se torna cada vez mais longo. Embora ainda seja possível recuperar material dos anos 90, muitos sites desapareceram, e os internautas estão conscientes da passagem do tempo.
- Vivemos realmente uma época de democratização do conhecimento? A forma como o Google seleciona seus resultados não reproduz mecanismos de divisão de classes?
BURKE: Sim, eu acredito que está acontecendo um processo de democratização do conhecimento, o que está associado, em vários aspectos e em grande medida, à facilidade de acesso a determinado tipo de informação na Internet, à qual cada vez mais pessoas estão conectadas. Mas alguns governos enxergam esse processo como uma ameaça e tentam controlar o fluxo da informação em seus países. O “grande fireall” [trocadilho com grande Muralha”] da China é um exemplo óbvio. Então existe um conflito entre duas tendências, a democratização e o seu oposto. Em relação ao Google, a maneira pela qual ele ordena os resultados de uma busca é frequentemente inadequada para o usuário individual, e isso pode ser distorcido por razões comerciais, mas eu entendo que o processo de seleção está formulado de forma a atender o que se acredita que a maioria das pessoas quer, ou seja, há uma “tirania da maioria”, mas esta enfraquece a divisão de classes, ao invés de reforçá-la.
- Conhecimentos locais e , a diversidade valores e práticas culturais correm o risco de ser esmagadas pela globalização? De que forma isso acontece? Como resistir a isso?
BURKE: Eu não nego que as diferentes forças da Globalização apresentam uma ameaça a conhecimentos locais e a diversidade de valores e práticas, mas eu também acredito que a iminência dessa ameaça está sendo muito exagerada. A resiliência de valores e práticas locais, mesmo em face de tentativas de revolução cultural, não deve ser esquecida. De qualquer forma alguns valores, práticas e saberes locais são difundidos pelas novas mídias, naturalmente em detrimento de outros. Nesse sentido, o que estamos vendo é uma “glocalização”, em outras palavras, uma mistura do local com o global.
- Como você analisa o caso de Pierre Assange e do Wikileaks? Deve haver limites para a liberdade na rede? Mas quem deve determinar quais são esses limites?
BURKE: Devo confessor que vejo com ambivalência Assange e outras pessoas – por exemplo, alguns jornalistas – que estão envolvidos no processo de divulgar o que era privado. Em algumas ocasiões, a invasão de privacidade é intolerável e motivada apenas pelo desejo de tirar proveito do rebuliço causado. Por outro lado, export segredos de politicos é frequentemente um service à democracia. Eu acho que Assange nem sempre discerniu suficientemente bem que tipo de informação privada deria ser tornado pública. Mas ele serviu a uma boa causa, a da luta por maior transparência no governo.
- Qual a importância de Michel Foucault para o seu trabalho? Com que outros pensadores e historiadores você mais dialoga em sua obra?
BURKE: Foucault foi uma das minhas inspirações para escrever uma História do conhecimento (ou dos conhecimentos, já que ele usava frequentemente a palavrea “savoirs”, no plural), como pode ser visto no índisse remissivo dos dois volumes. Mesmo queue não concorde com as respostas que ele deu, aprendi muito com as perguntas que ele fez, como aprendi com outros pensadores, particularmente Max Weber, Karl Manhiem, Pierre Bourdieu e Norbert Elias.
- Como enxerga o fenômeno dos livros digitais e o futuro do livro de papel?
BURKE: Pessoalmente, eu gusto de manusear livros impressos. Meu pai era livreiro. Não comprei um Kindle ou outro leitor de livros eletrônicos. Provavelmente acabarei comprando um pela conveniência, para usar em viagens, ou ter acesso a mais livros do que cabem na bagagem. Eu imagino que a geração digital dará menos importância a livros impressos do que a minha, e provavelmente menos livros serão impressos no futuro previsível. Mas quando a imprensa foi inventada, o livro manuscrito não despareceu: os dois meios coexistiram, e logo se desenvolveu uma divisão de trabalho entre eles. No caso dos livros impressos e digitais, espero que algo semelhante aconteça.
- Como começou sua relação com o Brasil? Fale sobre seus laços com a cultura brasileira.
BURKE: A minha relação com o Brasil começou em 1985, quando eu fui convidado a fazer uma série de conferências na USP. Aceitei com prazer, fui para São Paulo em 1986 e em pouco tempo me casei com a professor que me fizera o convite, Maria Lúcia. Desde então tenho visitado o Brasil todos os anos, de Fortaleza a Porto Alegre. Moreiem São Paulopor um ano e até certo ponto passei a enxergar o Brasil pelos olhos da minha família brasileira.Leio literature brasileira, de Machado de Assis e Moacys Scliar e Bernardo Carvalho. Quando estouem São Paulo, vou a exposições, peças, concertos. Estudei um pouco de História do Brasil e, junto com Maria Lúcia, publiquei um ensaio sobre Giberto Freyre.