A ‘bonequinha de luxo’ Audrey Hepburn e o novo papel da mulher
Além de falar ao coração de todos os cinéfilos, a imagem de Audrey Hepburn comendo um pão doce às 5 da manhã, em frente à vitrine da joalheria Tiffany’s, em Nova York, condensa um momento de transformação não apenas do cinema, mas também da cultura e da sociedade americanas, sobretudo no que diz respeito ao papel das mulheres. Segundo o crítico Sam Wasson, no recém-lançado Quinta Avenida, 5 da manhã - Audrey Hepburn, Bonequinha de luxo e o surgimento da mulher moderna (Zahar, 268 pgs. R$39), o filme de Blake Edwards, lançado pela Paramount em 1961, representou um divisor de águas na indústria hollywoodiana, que vivia o ocaso de uma era rigidamente repressora, marcada pelo moralismo da Production Code Administration (PCA), que mal admitia a sugestão de sexo fora do casamento, e se abria para a representação de novos modelos de comportamento, no qual mulheres solteiras podiam passar as noites na farra e ter aventuras amorosas com diversos parceiros – e não serem punidas por isso. Como escreve Wasson, antes de Bonequinha de luxo, só as garotas más faziam sexo, mas a nova mulher americana não era nem virgem nem devassa, nem puta nem santa, nem Doris Day nem Marilyn Monroe.
Leia um trecho do livro aqui.
Apesar de duramente criticada por Truman Capote, o autor do romance que deu origem ao filme, a escolha da delicada e aristocrática Audrey Hepburn para o papel da desmiolada Holly Golightly, praticamente uma garota de programa, foi um dos segredos de seu sucesso. A própria Audrey, que só tinha no currículo papéis bem comportados em A princesa e o plebeu e Sabrina, vivia um conflito pessoal entre o estrelato e o papel de esposa e mãe (ela tinha dado à luz três semanas antes do início das filmagens). Sua fragilidade e natural elegância tornavam mais palatáveis para o espectador comum a ideia de uma heroína independente, sexualmente livre e movida pelos desejos mais fúteis. Audrey também tornou convincente a ideia de que o glamour, antes restrito aos ricos e famosos, estava ao alcance de qualquer mulher, independente das restrições de classe: bastava ter estilo, atitude e um tubinho preto. Teve, assim, um grande impacto na moda.
Ainda assim, era difícil acreditar que o filme faria sucesso: o personagem masculino que contracena com Holly (o escritor iniciante Paul Varjak) é gay, não há conflitos nem motivações claras na trama, nem mensagens que reafirmem as convenções sociais e morais da época. Blake Edwards, ainda longe da fama, vinha da televisão, e seu último filme fora o fraco Anáguas a bordo, uma comédia maluca sem muita graça.
Em Quinta Avenida, 5 da manhã, Sam Wasson – também autor de um ensaio crítico sobre os outros trabalhos do cineasta Blake Edwards – reconstitui em detalhes a pré-história do filme (que seria dirigido por John Frankenheimer e estrelado por Marilyn; ela desistiu porque seu professor Lee Strasberg achava que o papel não seria bom para a imagem da atriz!), os bastidores da produção, a importância dos figurinos (de Givenchy) e da trilha sonora (incluindo a clássica canção Moon River, de Henry Mancini, escrita especialmente para a voz limitada de Audrey), as fofocas e picuinhas entre membros da equipe, as reações desencontradas da crítica, o enorme sucesso comercial (com uma receita bruta de 10 milhões de dólares nas salas de cinema, 4 milhões na América e 6 milhões no resto do mundo).
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Bonequinha de Luxo, de Truman Capote. Companhia das Letras, 152 pgs. R$43
Um jovem escritor vai tentar a sorte em Nova York, pagando um aluguel barato no mesmo prédio decadente em que, alguns andares abaixo, a jovem Holly Golightly ganha a vida com muita graça e pouca virtude. Aos poucos, ela se torna o centro das atenções do escritor, intrigado com o enigma da jovem sulista, que transforma a si mesma numa personagem ímpar; sonhadora e pé-no-chão, ingênua e indefinível, Holly não deixa ninguém indiferente. O livro inclui outros três relatos breves de Capote: Uma casa de flores (1951) narra o vaivém de uma moça haitiana entre as suas montanhas natais e um bordel em Porto Príncipe; em Um violão de diamante (1950), um jovem prisioneiro cubano conduz uma trama de sedução platônica e cruel numa colônia penal sulista; e Memória de Natal (1956) fecha o volume com uma memória de infância.