O mundo acabou, mas o cinema continua vivo
Consideradas as premissas do enredo, Melancholia poderia ser classificado como um filme-catástrofe, mas subverte tão completamente as convenções do gênero que o rótulo seria enganador. Da mesma forma como reinventou a gramática do terror em Anticristo, feito para provocar no espectador não o medo, mas a sensação da presença do mal, mesmo quando aborda o pior dos cenários imagináveis – o fim da vida na Terra – Lars Von Trier se mostra mais preocupado em investigar outro tipo de desastre, interior. Juntando a intensidade emocional dos filmes mais intimistas de Ingmar Bergman com a ambição metafísica de Andrei Tarkovsky (poderiam ser citadas outras referências, mais longínquas), o cineasta dinamarquês força mais uma vez os limites daquilo que ainda é possível fazer no cinema, num filme depressivo e perturbador.
Melancholia foi recebido com aplausos e um compreensível estranhamento no último Festival de Cannes, mas, como se sabe, suas chances de levar a Palma de Ouro se evaporaram quando Trier declarou, numa entrevista coletiva, que era capaz de compreender Hitler. Foi banido do festival, e o prêmio foi para A Árvore da Vida, de Terrence Malick. Mas a brincadeira infeliz não diminuiu em nada a força de seu filme.
Como Anticristo, Melancholia começa com uma longa abertura sem palavras, desta vez ao som do prelúdio de Tristão e Isolda, de Richard Wagner. Com uma tratamento visual quase publicitário, imagens em câmera lenta resumem o que virá a seguir e ao mesmo tempo envolvem o leitor numa atmosfera sombria e hipnótica. O deslumbramento visual das imagens em câmera lenta, que culminam com o impacto cósmico, é tão grande que, quando termina o prefácio operístico e a história efetivamente começa, uma sensação de déjà vu pode invadir o espectador mais antenado.
Lars Von Trier traça os perfis, opostos e complementares, de duas irmãs, Justine e Claire, em duas situações reveladoras: a festa de casamento da primeira e os preparativos das duas para o literal fim do mundo. Toda a primeira parte de Melancholia se desenrola numa luxuosa festa de casamento num castelo, situação perfeita para Trier desnudar com o cinismo habitual a hipocrisia das relações familiares, a fragilidade das convenções sociais, a insuportável mediação do dinheiro e do poder em todos os laços humanos.
Tudo isso já foi abordado por outros cineastas oriundos do Dogma 95, como Thomas Vinterberg em Festa de Família. Aos poucos, contudo, percebe-se a ambição de Trier é maior. Explorando de maneira quase cruel todas as nuances da instabilidade emocional de Justine (Kirsten Dunst, que se entrega tão completamente ao papel que se sua transformação ao longo do filme é quase física; mais que isso, quase espiritual), contrastada com a racionalidade fria de Claire (Charlotte Gainsbourg, igualmente impressionante), o diretor apresenta a própria vida, tal como a vivemos hoje, como um jogo mórbido de rituais sem sentido, como uma patologia desnecessária e talvez passageira do nosso planeta.
A tentativa de Justine de aderir à normalidade fracassa na própria noite da celebração, e os desdobramentos dessa pequena tragédia familiar se manifestam na segunda parte do filme, focada em Claire (Charlotte Gainsbourg). Bem casada e com um filho pequeno, ela acolhe a irmã em estado de semi-catatonia e tenta animá-la, enquanto o marido (Kiefer Sutherland), astrônomo amador, acompanha a ameaçadora aproximação da órbita da Terra do planeta gigante Melancholia. Ele reage à fraqueza da cunhada com a mesma incompreensão arrogante com que nega a possibilidade do choque planetário; destruídos seus alicerces e convicções, recorre a um gesto extremo.
Num estranho reequilíbio de forças em relação à primeira parte do filme, a lucidez amarga e desprendida de Justine (“Só existe vida na Terra, e por pouco tempo”; “Ninguém vai sentir falta do nosso planeta” etc) contrasta com a fragilidade de Claire e seu marido diante do inevitável. Estabelece-se assim uma espécie de simetria entre os planetas em rota de colisão e as duas irmãs, unidas e movidas por sentimentos e expectativas radicalmente conflitantes.
No início do projeto, recuperado de uma depressão, Lars Von Trier definiu Melancholia como um belo filme sobre o fim do mundo. É exatamente isso o que oferece ao espectador, sem nenhuma concessão. Sua mensagem é a de que vivemos entre a precariedade e o nada, à beira do colapso. Toma claramente o partido de Justine, que se sente quase à vontade diante da perspectiva do fim absoluto, que a conforta e lhe dá razão: o nada é uma questão de tempo, e não há esperança de redenção. O Apocalipse é logo ali. Mas, enquanto ele não chega, restam algumas distrações – o sexo, a família, a religião, o trabalho… E, naturalmente, o cinema, que sobrevive como arte e dá sinais de vida inteligente graças a diretores ainda capazes de provocar reações viscerais dos espectadores, como Lars Von Trier.
25 julho, 2011 as 7:28 am
Bom dia,
Muito boa essa fotogafia do planeta Terra.Lendo as notícias no site , passei por aqui e chamou atenção.Mas,não assisti o filme . Não conheço muito a obra Lars Von Trier, mas com esse cartaz : Melancholia,não quero nem assistir.Fico em dúvida mesmo se o diretor se recuperou da depressão em que estava no início das filmagens .Como é possível alguem fazer um filme sobre o fim do mundo e nele inserir : – “Ninguém vai sentir falta do nosso planeta”- ??
70% da água,perpetuando, a história.
Recordo essa matéria do fantastico.
Lars Von precisa conhecer o nosso Joãozinho .
“quem gosta de miséria é intelectual, pobre gosta de luxo”
????!!!!!!!
https://fantastico.globo.com/platb/fantastico30anosatras/2010/01/27/joaozinho-trinta-quem-gosta-de-miseria-e-intelectual-pobre-gosta-de-luxo/
Gosto da diversificação e consequentemente reflexão de todo conteúdo da Globo. Parabéns a toda equipe.Uma boa semana.
Carlos Henrique.
29 julho, 2011 as 9:02 pm
Tem previsão de estreia no Brasil?
1 agosto, 2011 as 4:25 pm
Achei o filme fraco, desconexo e metido a besta. Lars Von Trier tenta produzir um filme existencialista, mas esbarra na total falta de sentido da “arte pela arte”, provocando um incômodo na plateia que nada tem a ver com a mensagem que o filme almeja passar.
2 agosto, 2011 as 9:14 pm
É por aí mesmo Criador – Diretor,
Quanto maior cognoscere,maior o tormento.Quanto maior cognoscere,maior imaginação.Quanto maior cognoscere,maior responsabilidade.Ainda vou assistir essa nova criação de Lars Von Trier.
3 agosto, 2011 as 11:46 am
Essa foto da Kirsten Dunst lembra o lindo quadro de Millais, “Ophelia Morta”. Se no início desse projeto Lars Von Trier estava saindo de uma depressão, deveria estar sentindo que a pior morte é essa que se experimenta em vida, desânimo, melancolia, tédio, um sentimento de perda de sentido e afastamento das pessoas. Espero que a vaia e a censura em Cannes não sejam demais para ele. Mesmo que ajam de forma estranha, são os artistas que acrescentam beleza ao mundo; são vidas preciosas. Preferia que tivessem feito um protesto menos exagerado contra suas palavras de extremo mau gosto.
3 agosto, 2011 as 12:08 pm
Stella, comentários como o seu enriquecem muito o blog. Obrigado!
5 agosto, 2011 as 2:38 pm
O comentário do Carlos Henrique me deixou confusa. Espero que tenha sido uma observação irônica. Não vi o filme ainda, mas estou aguardando ansiosamente. Dizer que não assistirá um filme por se chamar Melancholia e pelo suposto fato do diretor estar deprimido, mesmo com a citação de que “Ninguém vai sentir falta do nosso planeta”, é no mínimo triste.
As pessoas não gostam de \"ver coisa triste\", aparentemente perderam a capacidade total de sublimação, é mais fácil ver o belo, é simples, não precisa pensar e anestesia. Tristeza e melancolia não tem vez na nossa sociedade perfeita, cheia de comerciais de margarina. Realmente, um mundo de robozinhos felizes, que acham que arte é um power point de imagens brilhantes e histericamente alegres, é praticamente o fim do mundo.
14 agosto, 2011 as 8:03 pm
Finalmente um filme pra levar pra casa e esses são os melhores. Penélope Cruz cometeu uma tremenda burrice, pois o diretor escreveu o roteiro atendendo um pedido da atriz espanhola que preferiu fazer o filme sobre os piratas.