Como vai você, ficção nacional?

seg, 18/07/11
por Luciano Trigo |
categoria Todas

Capa Geração Zero ZeroAntologias de geração são necessariamente injustas. Costumam deixam de fora autores relevantes, mas que não contam com a necessária inserção no “campo” literário predominante num determinado momento, ou que não dispõem do traquejo social que é cada vez mais necessário cultivar – afinal de contas, hoje, para ter algum reconhecimento e existir socialmente, um escritor precisa ser simpático, viajar, participar de debates, aparecer nas colunas da moda e em programas de televisão, ser convidado para a FLIP e a Fliporto. Da mesma forma, antologias costumam incluir outros nomes, literariamente irrelevantes mas eventualmente enturmados e com bons contatos nos jornais e no meio editorial –  ou simplesmente sortudos a ponto de caírem no gosto do organizador, por motivos variados. Não estou falando aqui de uma vinculação ao êxito comercial, pois a literatura brasileira ainda é pouquíssimo lida, e ainda menos vendida, mal se justificando comercialmente a sua publicação – exceção feita a fenômenos pontuais. Estou falando dos mecanismos de institucionalização da produção literária contemporânea, que passam, também, pela publicação periódica de antologias, como a recém-lançada Geração Zero Zero – Fricções em Rede (editora Língua Geral, 408 pgs. R$45).

Mesmo com todas as ressalvas acima, uma antologia geracional será sempre representativa, em algum grau. É um retrato verdadeiro, ainda que parcial ou desfocado, da produção que circula, dos temas que mobilizam, dos estilos que triunfam. Para o bem e para o mal, é como tal que ela será consultada daqui a décadas ou mesmo… gerações. Ou esquecida, só o tempo dirá.

Organizada pelo também ficcionista Nelson de Oliveira, já responsável por duas antologias de contos da década de 90 (Manuscritos de computador e Os transgressores), Geração Zero Zero apresenta todos esses problemas – e alguns adicionais. Sua proposta é reunir não os melhores textos, como geralmente se faz, e sim os melhores autores revelados na década passada, apresentando contos inéditos, escritos sob encomenda. Desafio complicado, começando pelo fato de que a qualidade, tanto dos textos quanto dos autores reunidos, é extremamente desigual. Além disso, o próprio organizador cita no final do prefácio cinco escritores que, “por razões que não vale a pena enumerar”, ficaram de fora do volume – Clara Averbukh, João Paulo Cuenca, Márcia Tiburi, Mário Araújo e Tatiana Salem Levy. Há outras ausências que merecem explicação. Mais grave é, entre as 21 presenças, não passarem de meia dúzia as realmente necessárias numa antologia. Estão entre elas Lourenço Mutarelli, com seu artesanato de idiossincrasias;  Carola Saavedra, com sua delicadeza sempre cortante; e Santiago Nazarian, com seu tratamento inventivo e sóbrio da temática homoafetiva. Como poucos outros, já são nomes em alguma medida consagrados e, portanto, previsíveis.

Surpreendentemente, Nelson informa no prefácio que foram necessários, na preparação da seleta, três anos imerso em pesquisas, que resultaram num conjunto inicial de quase 150 (?) ficcionistas, conjunto que passou por sucessivas triagens. (Há gente demais escrevendo, para cada vez menos leitores; mantida a tendência, num futuro próximo seremos todos escritores, escrevendo apenas para nós mesmos.) A julgar pelo resultado, essas triagens não foram suficientes. Sempre haverá algo de subjetivo nesse julgamento, é claro, mas as deficiências da maioria dos contos são objetivas e evidentes, o que se explica em parte pelas facilidades proporcionadas pela internet – a “maçaroca líquida da web”, como chama o organizador. Hoje qualquer internauta pode se denominar escritor, sem outro crivo que não o da vaidade. Some-se a isso o esvaziamento da crítica, cada vez mais superficial e complacente (e não apenas na literatura: também no cinema, nas artes plásticas e no teatro a atividade corre ladeira abaixo). Queimam-se assim as etapas de amadurecimento que separavam os diletantes dos profissionais: hoje, escrever direitinho, com alguma técnica, e fazer as referências adequadas ou espertas (por vezes explícitas: em ‘Apontamentos sobre o olhar’, de Carlos Henrique Schroeder, são citados na mesma página Paul Auster e Maurice Blanchot, para ficar apenas num exemplo) basta para entrar no clube e ser bajulado pela cumplicidade dos pares. Esta será exercida por meio de “retuitadas” e “curtidas”, ou em elogios-abobrinhas que nada acrescentam ao debate literário, como nos antigos salões.

É necessária, portanto, uma paciente pescaria para encontrar boas leituras em Geração Zero Zero: além dos já citados, Ana Paula Maia (salvo engano, o único nome do Rio de Janeiro), Daniel Galera e Paulo Scott, predominantemente bons, justificam a atenção do leitor, embora a dureza da temática mundo cão da primeira soe artificial em alguns momentos. É possível, naturalmente, apontar qualidades também nos demais autores, embora quase todos, ao menos nos textos apresentados, careçam de amadurecimento – ou de tesoura, de edição, de reescrita, de novos tratamentos com mais rigor. No estágio em que foram publicados, parecem contos saídos de uma oficina de literatura – ou postados diretamente num blog, sem passarem pelo embate com editores e críticos, ou mais simplesmente pelo período de descanso na gaveta que, por si só, muitas vezes aponta para o autor os caminhos do aprimoramento.

É o próprio organizador quem reconhece no prefácio que há um forte ponto de contato entre os autores da Geração Zero Zero: o bizarro, na temática ou na forma. Mas talvez a principal característica dessa literatura de oficina que domina a antologia seja mesmo a vaidade. Como disse Caetano, Narciso acha feio o que não é espelho. O exibicionismo de iniciante no trato com as palavras, com recursos mal copiados de Guimarães Rosa, ou de Clarice Lispector, ou de Rubem Fonseca, para só citar algumas das fontes diretas reconhecíveis, é marca registrada de muitos jovens autores contemporâneos (alguns não tão jovens). O resultado é, no mais das vezes, uma salada confusa de variações sobre os mesmos temas: personagens desamparados ou solitários ou excluídos ou marginalizados diante de um cotidiano hostil, marcado pela violência urbana, ou emocional, ou psicológica, vivendo conflitos familiares ou existenciais. Os enredos, no fundo, não importam muito, pretextos que são para exercícios de estilo de quem, encantado pelo talvez recém-descoberto poder da literatura, se deleita com o próprio suposto talento, esquecendo-se do leitor.

Assim, por exemplo, já na primeira página do primeiro conto da antologia (‘Apaixonado de mar’, de Flavio Viegas Amoreira) se percebe o gosto recorrente por alguns recursos típicos de quem “escreve bem”: o uso indiscrinado das ênclises (“…eram-lhe estrangeiras”), a inversão da ordem habitual na construção das frases (“Quero um maior espelho”), os neologismos supostamente ousados (“ver Deus despentelhando”). Deus despentelha? Problemas semelhantes aparecem em vários autores do volume, traindo um entendimento da literatura como um mero escrever diferente, ou como subversão de convenções que já não vigoram há décadas. Os textos do segundo autor, Marcelo Benvenutti), são mais fluentes, mas não escapam do gosto adolescente pelo bizarro, o tal elemento comum citado pelo organizador (notadamente em ‘O homem que amava as gordas (e as feias)’. O terceiro, João Filho, se entrega sem limites à manipulação masturbatória das palavras (em ‘Sob o sol de lugar nenhum’: “O cheiro, a textura e o calor de todas as instâncias recônditas ou não do mundo o invadem neste minuto. Talvez o exagero da límpida simultaneidade do ápice?” Eita…). O quarto, Whiner Fraga, chama leite de “sumo das vacas” (em ‘X’); mais à frente, um personagem filho de piloto “passara toda a vida cavalgando o ar” (‘Chove’, de Walther Moreira Santos).

E assim o volume avança, alternando alguns contos corretos, mas pouco ambiciosos, sem riscos – como os de Andrea Del Fuego, José Resende Jr e Verônica Stigger, esta optando por um formato cênico que beira a facilidade do humor televisivo  – com poucos outros mais inspirados, e uma maioria absoluta de textos imaturos ou decididamente fracos, ainda mais para figurar num volume que tem a pretensão de sintetizar a produção literária de uma geração. Mais fricção do que ficção, como sugere o subtítulo do livro.

Trata-se, como se vê, de uma antologia problemática e bastante desigual, para dizer o mínimo. Mas o problema principal que se manifesta em Geração Zero Zero nem é esse. É que mesmo a leitura dos melhores contos dos melhores autores deixa na boca um gosto de anos 70, de repetição de procedimentos característicos daquela época, mal transplantados para um contexto social, cultural e político totalmente diferente – contexto este que pede novas respostas (e novas perguntas) dos escritores. Até mesmo nos textos mais experimentais, percebe-se esse enraizamento: feitos pequenos ajustes nas referências às inovações da tecnologia, todos ou quase todos poderiam perfeitamente ter sido escritos 40 anos atrás, o que me parece um sintoma preocupante, não sei bem de quê.

Escritores bons e maus, textos de qualidade ou irrelevantes haverá em todas as gerações. Mas de cada geração sobrevivem apenas aqueles que sabem se desligar do passado, enfrentando novas realidades com novas ferramentas, e não apenas repetindo e diluindo, com graus variados de competência e talento, modelos já testados e aprovados. É esta ambição que parece faltar à literatura reunida em Geração Zero Zero. A ficção nacional não está dando conta da realidade nacional, muito mais rica e perturbadora do que o umbigo da maioria desses autores. Será essa incapacidade de estar à altura do real o traço distintivo dessa geração?

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8 Comentários para “Como vai você, ficção nacional?”

  1. 1
    eduardo:

    Este texto foi escrito pelo Conselheiro Acácio? Tem sua assinatura em cada linha.

  2. 2
    Renata:

    Em ‘Geração Zero Zero’ faltou vários escritores e escritoras de tal importância para nossa época. Verdade também ,que houve referencias boas .O livro deveria se chamar geração zero dez , uma vez que é fato existir bons e maus autores em todas as épocas.
    Me permito, mais uma vez, dar uma outra opinião minha , já refernte a um assunto polêmico sobre, traquejo social , feiras , viagens , flip , fliporto, etc.Sou super a favor do escritor circular por aí ; apresentar seu material ,sua pessoa , seu produto, o livro. Ser simpático sim , agradável com seu público , seu leitores , eventos, viagens , fãs , festas etc .
    Aquele tom severo, tenso , denso
    e distante com o público , fas e leitores já é desnecessário e ultrapassado . Todo o leitor gosta de se aproximar , e o ecritor deve ser receptivo a isso . Seja na flip , fliporto eventos etc .
    um abraço.

  3. 3
    Renata:

    Em \’Geração Zero Zero\’ faltou vários escritores e escritoras de tal importância para nossa época. Verdade também ,que houve referencias boas .O livro deveria se chamar geração zero dez , uma vez que é fato existir bons e maus autores em todas as épocas.
    Me permito, mais uma vez, dar uma outra opinião minha , já refernte a um assunto polêmico sobre, traquejo social , feiras , viagens , flip , fliporto, etc.Sou super a favor do escritor circular por aí ; apresentar seu material ,sua pessoa , seu produto, o livro. Ser simpático sim , agradável com seu público , seu leitores , eventos, viagens , fãs , festas etc .
    Aquele tom severo, tenso , denso
    e distante com o público , fas e leitores já é desnecessário e ultrapassado . Todo o leitor gosta de se aproximar , e o ecritor deve ser receptivo a isso . Seja na flip , fliporto eventos, Tv etc .
    um abraço.

  4. 4
    Renata:

    Em ‘Geração Zero Zero’ faltou vários escritores e escritoras de tal importância para nossa época. Verdade também ,que houve referencias boas .O livro deveria se chamar geração zero dez , uma vez que é fato existir bons e maus autores em todas as épocas.
    Me permito, mais uma vez, dar uma outra opinião minha , já refernte a um assunto polêmico sobre, traquejo social , feiras , viagens , flip , fliporto, etc.Sou super a favor do escritor circular por aí ; apresentar seu material ,sua pessoa , seu produto, o livro. Ser simpático sim , agradável com seu público , seu leitores , eventos, viagens , fãs , festas etc .
    Aquele tom severo, tenso , denso
    e distante com o público , fas e leitores já é desnecessário e ultrapassado . Todo o leitor gosta de se aproximar , e o ecritor deve ser receptivo a isso . Seja na flip , fliporto eventos tv etc .
    um abraço.

  5. 5
    marcelo benvenutti:

    Luciano, o que tem de irreal no homem contemporâneo massacrado nas grandes metrópoles? Sem perspectivas, sem afeto, sem amizades enraizadas, corroído pelo caos midiático que o cerca? O que tem de irreal na futilidade das relações amorosas? No desassossego mental e criativo? Na perturbação destrutiva de pessoas sem rumo, sem horizonte, sem limites, afogadas no medo convulsivo do próximo e do alheio, vivendo vidas falsas e tediosas em frente a seus computadores, televisores e até mesmo alguns livros de literatura que as remetem a um, este sim, falso mundo de realidade de auto-ajuda e mesmice retórica?
    Não enxergo esta “incapacidade de estar à altura do real” nos autores contemporâneos, especificamente nos autores da antologia. Exatamente o contrário. A realidade está ali. Bizarra. Um catálogo de bizarrices. Vidas bizarras. Mesmo o umbiguismo nada mais é que um existencialismo bizarro. Mas talvez fosse o caso de se vivenciar um pouco. Afinal, estes escritores só sabem futricar, confabular e reunir-se para dominar o mundo pela Internet. Quase uma seita. Criam do nada, em segundos e publicam no dia seguinte. Não maturam suas ideias, não pensam, não sei nem como é que escrevem, pura datilografa, diria Truman Capote (pra usar o artifício das citações demonizado), quase brothers de um reality show intelectualoide.
    Mas não mais me estenderei, afinal, como diria Mário Quintana, outro sujeito que vivia fora da realidade, fora do mundo e, obviamente citando alguém pra lá de moribundo e nada inovador: “Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um dos dois é burro.”
    Abraços!
    Marcelo Benvenutti

  6. 6
    Gildo Araújo:

    Se tem Ana Paula Maia, então tá valendo!

  7. 7
    Myrtes:

    Perfeita a resenha. O curioso é que Nelson de Oliveira é um ótimo autor e que quase sempre escapa, em seus textos, dos problemas dessa antologia. Creio que é uma deficiência geracional, mesmo. Escritor brasileiro sempre padeceu do falso “sei escrever bem”, confundindo literatura com um beletrismo estilístico cafona e quase parnasiano. São todos Odoricos, só que agora incorporaram (muito tardiamente) dialetos da contra-cultura dos anos 60, 70 e 80. Fica aquele gosto de “bom menino, fez uma redação bem escrita”.
    E chega de mundo cão, né? São todos de classe média, soa artificialíssimo, que nem bandido de série da Globo.

  8. 8
    Luiz W A Ramos:

    Gostei de sua crítica, Luciano, principalmente pela referência que você faz ao desprezo que esses autores da Geração Zero Zero têm pelo leitor. Não são apenas eles. A maioria dos ficcionistas e poetas de hoje se considera “muito autêntica, não faz concessões” e não está nem aí pro leitor, como se vivessem num mundo à parte. Não é à toa que a literatura brasileira tem uma presença insignificante no país.



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