Um filme degradante e uma falsa polêmica sobre a censura
Para evitar mal entendidos, quero começar afirmando logo: sou CONTRA qualquer tipo de censura. Isso posto, considero Um filme sérvio – Terror sem limites, de Srđan Spasojevic, o lixo mais asqueroso e repulsivo de toda a história do cinema. As cenas de violência extrema que o filme contém expõem o ser humano a um nível de degradação que beira o insuportável. É, além do mais, mal dirigido, mal editado, mal fotografado, tem um roteiro absurdo e atores medíocres. (Assista ao trailer aqui) Isso justifica a sua proibição? Resposta: NÃO! Mas a história não termina aqui.
O enredo: um ator pornô aposentado, em dificuldades financeiras, aceita um convite para participar de um novo e misterioso trabalho. Sem saber do que se trata, ele vê sua vida ser transformada num circo de horrores sexuais. O diretor explicou que se trata de uma metáfora para a ruína política, moral e psicológica da Sérvia após duas décadas de conflitos e crises. O que se vê na tela é a exploração gratuita, grotesca e fascista da violência como um atalho para a polêmica barata e a celebridade do escândalo.
Um filme sérvio integrava originalmente a programação do RioFan – Festival do Cinema Fantástico, realizado na semana retrasada no Rio de Janeiro, mas a própria Caixa Cultural, patrocinadora do evento, cancelou sua exbição, justificando-se com uma nota diplomática: “A Caixa entende que a arte deve ter o limite da imaginação do artista, porém nem todo produto criativo cabe de forma irrestrita em qualquer suporte ou lugar.”
Programou-se então uma sessão para a noite de sábado, no cinema Odeon, mas esta tampouco se realizou: uma decisão liminar da 1º Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro impediu a exibição do filme na cidade. Nas redes sociais, a reação foi automática: em questão de poucas horas houve uma significativa mobilização virtual contra a arbitrariedade da decisão, que representaria uma volta da censura, ou mesmo da ditadura. Convocou-se um protesto em frente ao Odeon, ao mesmo tempo em que o perfil do advogado que impetrou a ação era submetido a uma avalanche de achincalhamentos pessoais.
O protesto físico reuniu poucas dezenas de pessoas na porta do cinema, bem menos que as muitas centenas que garantiram presença pela internet. Não importa. A intenção era boa: lutar pela liberdade de expressão, um direito constitucional e uma causa nobre numa época em que as pessoas, sobretudo nas gerações mais novas, andam atrás de uma ideologia para viver, como cantava Cazuza.
Infelizmente, para frustração dos que acham que vivem num mundo em que é proibido proibir, existem coisas, na vida real, que são proibidas sim, e isso não tem nada a ver com autoritarismo. Os limites à liberdade de expressão que existem em qualquer democracia não podem ser confundidos com a censura tal como era praticada na ditadura. Por exemplo, se um programa de televisão contém cenas que incentivam o racismo ou a homofobia, ele pode ser retirado do ar. Isso não é censura, é cumprimento da lei, é a garantia democrática de minorias que se sentem atingidas lutarem pela não-circulação desses conteúdos. A liberdade de expressão não se sobrepõe a essa garantia.
Acontece que Um filme sérvio já tinha sido exibido duas vezes em outros festivais no Brasil, passando praticamente despercebido. Por isso mesmo, acho que a proibição foi um erro. Sem o cancelamento da sessão na Caixa e sem a liminar que proibiu sua exibição no Odeon, a obra teria sido logo esquecida e relegada à irrelevância que merece. Ou seja, a consequência maior dessas medidas foi dar ao filme uma imerecida visibilidade, arregimentando em sua defesa pessoas que dificilmente iriam vê-lo no cinema. Melhor marketing não poderia haver.
Assisti ao filme, embora um pouco incomodado pelo tom exaltado que o debate vinha tomando na Internet, com posts cheios de ofensas, má-fé e desinformação. Então me dei conta de que a polêmica que se criou em torno do filme é falsa, porque parte de uma premissa errada. Falar em censura, como se está fazendo, não é apenas equiparar Um filme sérvio a obras de arte de Pasolini, Costa-Gavras, Godard, Pontecorvo e Glauber Rocha, entre outros cineastas que no passado foram censurados porque criticavam de forma radical e inventiva uma situação política de exceção. Falar em censura é, principalmente, ignorar que o gosto pessoal não pode se sobrepor ao direito de qualquer conflito ser levado ao – e resolvido pelo – Poder Judiciário. Isso faz parte da democracia.
Um filme sérvio explora a violência contra mulheres, crianças e até um recém-nascido, estuprado na mesa de parto (em outra cena, o protogonista violenta o filho de 5 anos). Ou seja, exibe imagens de uma criança e de um bebê em situação degradante (e o fato de em parte das cenas terem siso usados robôs não muda isso). Retomo a pergunta feita no primeiro parágrafo: a exposição de crianças em cenas degradantes, mesmo que simuladas, justifica a proibição do filme? Aqui, a resposta é: há controvérsias.
Há gosto para tudo, claro, até para a necrofilia (que também está presente), e a liberdade artística não deve ter limites, não é? Em termos. Num Estado de Direito, existem os limites da legalidade. Se Um filme sérvio tiver mesmo sua veiculação pública proibida (mas haverá sempre formas privadas de consumo, é claro), não terá sido por ser horroroso, ou desagradar à sensibilidade de um ditador, mas por violar a lei relativa à proteção de menores, democraticamente criada, o Estatuto da Criança e do Adolescente. Ou seja, não terá havido censura, mas cumprimento da lei. A questão passa a ser saber se as imagens violam ou não o Estatuto. Simples assim.
(O artigo em questão é: “Art. 241-C. Simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual: Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008″
Um filme sérvio não foi censurado, nem poderia. Não existe mais censura prévia no Brasil, felizmente. O que está acontecendo é algo bem diferente: uma matéria publicada na Folha de S.Paulo, fazendo menção à um “filme com pedofilia”, levantou a suspeita de que o Estatuto foi violado. A Caixa (hoje se sabe, pressionada por clientes) decidiu cancelar a sessão, e uma juíza, provocada por uma ação civil pública, entendeu ser conveniente suspender a exibição do filme até que a cópia seja analisada – espera-se, com a serenidade e objetividade que estão faltando ao debate.
É mais fácil ceder à tentação do pensamento pret-à-porter, que rima automaticamente censura com ditadura, do que refletir com alguma profundidade sobre as nuances envolvidas no caso, que dizem respeito aos limites para a criação. Sejamos coerentes: se considerarmos que a liberdade artística é absoluta, seremos obrigados a aceitar como válida a veiculação pública de filmes que incitem o ódio e a discriminação, ou a homofobia, ou a pedofilia e a pornografia infantil, ou o desrespeito a direitos autorais e de imagem, ou os maus-tratos a aninais, ou o Nazismo, por exemplo. Se concordarmos que há limites legais, e se eles forem defendidos com critério, transparência e amparo legal, não há de quê reclamar. E, como escreveu o cineasta Eduardo Escorel…
“Um filme pode, em tese, chegar ao ponto de exigir restrições à sua livre circulação. Se é o caso de A Serbian Film – Terror sem limites, cada um deve decidir, cabendo à Justiça, ainda que também imperfeita, dar a palavra final.”
O que a Justiça irá interpretar nos próximos dias é se as cenas citadas – mesmo em se tratando de uma ficção, mesmo que o recém-nascido na cena do parto seja um boneco, mesmo que o menino de 5 anos não tenha passado por constrangimento durante a filmagem – representam ou não pornografia infantil, se constituem ou não uma violação da lei. Se a conclusão for favorável ao filme, ele será lançado em circuito comercial, capitalizando a controvérsia. Se for desfavorável, provavelmente sairá apenas em DVD, para deleite dos espectadores de gostos bizarros. De qualquer forma a democracia brasileira continuará firme, ninguém precisa se descabelar. Autoritário seria querer fazer prevalecerem convicções pessoais na base do grito, ignorando uma lei em vigor e a análise do Judiciário.
Talvez a quase-histeria virtual que cercou o episódio não seja mais que um trauma compreensível da ditadura. Tornamo-nos particularmente ciosos em relação às garantias da liberdade, o que é bom (é pena, por outro lado, que a mesma indignação não seja demonstrada diante da corrupção endêmica dos políticos ou mesmo diante de outros tipos de censura, mais velada, como a censura econômica). Mas vale lembrar também que Um filme sérvio foi proibido (ou submetido a dezenas de cortes) em diversas democracias avançadas - Inglaterra, Espanha, Noruega, Austrália etc. Na própria Sérvia iniciou-se uma investigação oficial para apurar se o filme violava a legislação relativa à proteção de crianças.
Tudo isso sugere que no mínimo o assunto merece ser discutido, sem exaltação. Mesmo nas democracias mais fortes, nenhum direito é absoluto, reconhecendo-se como necessária, sobretudo naqueles casos que envolvem menores, algum tipo de regulação dos conteúdos audiovisuais exibidos publicamente. Lliberdade exige responsabilidade, e o Estatuto da Criança e do Adolescente representa a voz de uma minoria sem voz: a infância. O Estatuto foi uma conquista da sociedade e é coisa séria.
PS. Para quem argumenta que a liberdade de expressão é um direito absoluto, segue a decisão do STF no julgamento do Habeas Corpus n.º 82.424:
“Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos . O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal.”