Um filme degradante e uma falsa polêmica sobre a censura

ter, 26/07/11
por Luciano Trigo |
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cena de 'a serbian film'
Para evitar mal entendidos, quero começar afirmando logo: sou CONTRA qualquer tipo de censura. Isso posto, considero Um filme sérvio – Terror sem limites, de Srđan Spasojevic, o lixo mais asqueroso e repulsivo de toda a história do cinema. As cenas de violência extrema que o filme contém expõem o ser humano a um nível de degradação que beira o insuportável. É, além do mais, mal dirigido, mal editado, mal fotografado, tem um roteiro absurdo e atores medíocres. (Assista ao trailer aqui) Isso justifica a sua proibição? Resposta: NÃO! Mas a história não termina aqui.

O enredo: um ator pornô aposentado, em dificuldades financeiras, aceita um convite para participar de um novo e misterioso trabalho. Sem saber do que se trata, ele vê sua vida ser transformada num circo de horrores sexuais. O diretor explicou que se trata de uma metáfora para a ruína política, moral e psicológica da Sérvia após duas décadas de conflitos e crises. O que se vê na tela é a exploração gratuita, grotesca e fascista da violência como um atalho para a polêmica barata e a celebridade do escândalo.

Um filme sérvio integrava originalmente a programação do RioFan – Festival do Cinema Fantástico, realizado na semana retrasada no Rio de Janeiro, mas a própria Caixa Cultural, patrocinadora do evento, cancelou sua exbição, justificando-se com uma nota diplomática: “A Caixa entende que a arte deve ter o limite da imaginação do artista, porém nem todo produto criativo cabe de forma irrestrita em qualquer suporte ou lugar.”

Programou-se então uma sessão para a noite de sábado, no cinema Odeon, mas esta tampouco se realizou: uma decisão liminar da 1º Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro impediu a exibição do filme na cidade. Nas redes sociais, a reação foi automática: em questão de poucas horas houve uma significativa mobilização virtual contra a arbitrariedade da decisão, que representaria uma volta da censura, ou mesmo da ditadura. Convocou-se um protesto em frente ao Odeon, ao mesmo tempo em que o perfil do advogado que impetrou a ação  era submetido a uma avalanche de achincalhamentos pessoais.

O protesto físico reuniu poucas dezenas de pessoas na porta do cinema, bem menos que as muitas centenas que garantiram presença pela internet. Não importa. A intenção era boa: lutar pela liberdade de expressão, um direito constitucional e uma causa nobre numa época em que as pessoas, sobretudo nas gerações mais novas, andam atrás de uma ideologia para viver, como cantava Cazuza.

Infelizmente, para frustração dos que acham que vivem num mundo em que é proibido proibir, existem coisas, na vida real, que são proibidas sim, e isso não tem nada a ver com autoritarismo. Os limites à liberdade de expressão que existem em qualquer democracia não podem ser confundidos com a censura tal como era praticada na ditadura. Por exemplo, se um programa de televisão contém cenas que incentivam o racismo ou a homofobia, ele pode ser retirado do ar. Isso não é censura, é cumprimento da lei, é a garantia democrática de minorias que se sentem atingidas lutarem pela não-circulação desses conteúdos. A liberdade de expressão não se sobrepõe a essa garantia.

posterAcontece que Um filme sérvio já tinha sido exibido duas vezes em outros festivais no Brasil, passando praticamente despercebido. Por isso mesmo, acho que a proibição foi um erro.  Sem o cancelamento da sessão na Caixa e sem a liminar que proibiu sua exibição no Odeon, a obra teria sido logo esquecida e relegada à irrelevância que merece. Ou seja, a consequência maior dessas medidas foi dar ao filme uma imerecida visibilidade, arregimentando em sua defesa pessoas que dificilmente iriam vê-lo no cinema. Melhor marketing não poderia haver.

Assisti ao filme, embora um pouco incomodado pelo tom exaltado que o debate vinha tomando na Internet, com posts cheios de ofensas, má-fé e desinformação. Então me dei conta de que a polêmica que se criou em torno do filme é falsa, porque parte de uma premissa errada. Falar em censura, como se está fazendo, não é apenas equiparar Um filme sérvio a obras de arte de Pasolini, Costa-Gavras, Godard, Pontecorvo e Glauber Rocha, entre outros cineastas que no passado foram censurados porque criticavam de forma radical e inventiva uma situação política de exceção.  Falar em censura é, principalmente, ignorar que o gosto pessoal não pode se sobrepor ao direito de qualquer conflito ser levado ao – e resolvido pelo – Poder Judiciário. Isso faz parte da democracia.

Um filme sérvio explora a violência contra mulheres, crianças e até um recém-nascido, estuprado na mesa de parto (em outra cena, o protogonista violenta o filho de 5 anos). Ou seja, exibe imagens de uma criança e de um bebê em situação degradante (e o fato de em parte das cenas terem siso usados robôs não muda isso). Retomo a pergunta feita no primeiro parágrafo: a exposição de crianças em cenas degradantes, mesmo que simuladas, justifica a proibição do filme? Aqui, a resposta é: há controvérsias.

Há gosto para tudo, claro, até para a necrofilia (que também está presente), e a liberdade artística não deve ter limites, não é? Em termos. Num Estado de Direito, existem os limites da legalidade. Se Um filme sérvio tiver mesmo sua veiculação pública proibida (mas haverá sempre formas privadas de consumo, é claro), não terá sido por ser horroroso, ou desagradar à sensibilidade de um ditador, mas por violar a lei relativa à proteção de menores, democraticamente criada, o Estatuto da Criança e do Adolescente. Ou seja, não terá havido censura, mas cumprimento da lei. A questão passa a ser saber se as imagens violam ou não o Estatuto. Simples assim.

(O artigo em questão é: “Art. 241-C. Simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual: Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008″

Um filme sérvio não foi censurado, nem poderia. Não existe mais censura prévia no Brasil, felizmente. O que está acontecendo é algo bem diferente: uma matéria publicada na Folha de S.Paulo, fazendo menção à um “filme com  pedofilia”, levantou a suspeita de que o Estatuto foi violado. A Caixa (hoje se sabe, pressionada por clientes) decidiu cancelar a sessão, e uma juíza, provocada por uma ação civil pública, entendeu ser conveniente suspender a exibição do filme até que a cópia seja analisada – espera-se, com a serenidade e objetividade que estão faltando ao debate.

É mais fácil ceder à tentação do pensamento pret-à-porter, que rima automaticamente censura com ditadura, do que refletir com alguma profundidade sobre as nuances envolvidas no caso, que dizem respeito aos limites para a criação. Sejamos coerentes: se considerarmos que a liberdade artística é absoluta, seremos obrigados a aceitar como válida a veiculação pública de  filmes que incitem o ódio e a discriminação, ou a homofobia, ou a pedofilia e a pornografia infantil, ou o desrespeito a direitos autorais e de imagem, ou os maus-tratos a aninais, ou o Nazismo, por exemplo. Se concordarmos que há limites legais, e se eles forem defendidos com critério, transparência e amparo legal, não há de quê reclamar. E, como escreveu o cineasta Eduardo Escorel…

“Um filme pode, em tese, chegar ao ponto de exigir restrições à sua livre circulação. Se é o caso de A Serbian Film – Terror sem limites, cada um deve decidir, cabendo à Justiça, ainda que também imperfeita, dar a palavra final.”

O que a Justiça irá interpretar nos próximos dias é se as cenas citadas – mesmo em se tratando de uma ficção, mesmo que o recém-nascido na cena do parto seja um boneco, mesmo que o menino de 5 anos não tenha passado por constrangimento durante a filmagem – representam ou não pornografia infantil, se constituem ou não uma violação da lei.  Se a conclusão for favorável ao filme, ele será lançado em circuito comercial, capitalizando a controvérsia. Se for desfavorável, provavelmente sairá apenas em DVD, para deleite dos espectadores de gostos bizarros. De qualquer forma a democracia brasileira continuará firme, ninguém precisa se descabelar. Autoritário seria querer fazer prevalecerem convicções pessoais na base do grito, ignorando uma lei em vigor e a análise do Judiciário.

Talvez a quase-histeria virtual que cercou o episódio não seja mais que um trauma compreensível da ditadura. Tornamo-nos particularmente ciosos em relação às garantias da liberdade, o que é bom (é pena, por outro lado, que a mesma indignação não seja demonstrada diante da corrupção endêmica dos políticos ou mesmo diante de outros tipos de censura, mais velada, como a censura econômica). Mas vale lembrar também que Um filme sérvio foi proibido (ou submetido a dezenas de cortes) em diversas democracias avançadas  - Inglaterra, Espanha, Noruega, Austrália etc. Na própria Sérvia iniciou-se uma investigação oficial para apurar se o filme violava a legislação relativa à proteção de crianças.

Tudo isso sugere que no mínimo o assunto merece ser discutido, sem exaltação. Mesmo nas democracias mais fortes, nenhum direito é absoluto, reconhecendo-se como necessária, sobretudo naqueles casos que envolvem menores, algum tipo de regulação dos conteúdos audiovisuais exibidos publicamente. Lliberdade exige responsabilidade, e o Estatuto da Criança e do Adolescente representa a voz de uma minoria sem voz: a infância. O Estatuto foi uma conquista da sociedade e é coisa séria.

PS. Para quem argumenta que a liberdade de expressão é um direito absoluto, segue a decisão do STF no julgamento do Habeas Corpus n.º 82.424:

“Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos . O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal.”

O mundo acabou, mas o cinema continua vivo

qui, 21/07/11
por Luciano Trigo |
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Cena de Melancholia

Consideradas as premissas do enredo, Melancholia poderia ser classificado como um filme-catástrofe, mas subverte tão completamente as convenções do gênero que o rótulo seria enganador. Da mesma forma como reinventou a gramática do terror em Anticristo, feito para provocar no espectador não o medo, mas a sensação da presença do mal, mesmo quando aborda o pior dos cenários imagináveis – o fim da vida na Terra –  Lars Von Trier se mostra mais preocupado em investigar outro tipo de desastre, interior.  Juntando a intensidade emocional dos filmes mais intimistas de Ingmar Bergman com a ambição metafísica de Andrei Tarkovsky (poderiam ser citadas outras referências, mais longínquas), o cineasta dinamarquês  força mais uma vez os limites daquilo que ainda é possível fazer no cinema, num filme depressivo e perturbador.

Melancholia foi recebido com aplausos e um compreensível estranhamento no último Festival de Cannes, mas, como se sabe, suas chances de levar a Palma de Ouro se evaporaram quando Trier declarou, numa entrevista coletiva, que era capaz de compreender Hitler. Foi banido do festival, e o prêmio foi para A Árvore da Vida, de Terrence Malick. Mas a brincadeira infeliz não diminuiu em nada a força de seu filme.

Como Anticristo, Melancholia começa com uma longa abertura sem palavras, desta vez ao som do prelúdio de Tristão e Isolda, de Richard Wagner. Com uma tratamento visual quase publicitário, imagens em câmera lenta resumem o que virá a seguir e ao mesmo tempo envolvem o leitor numa atmosfera sombria e hipnótica. O deslumbramento visual das imagens em câmera lenta, que culminam com o impacto cósmico, é tão grande que, quando termina o prefácio operístico e a história efetivamente começa, uma sensação de déjà vu pode invadir o espectador mais antenado.

Cena de Melancholia

Lars Von Trier traça os perfis, opostos e complementares, de duas irmãs, Justine e Claire, em duas situações reveladoras: a festa de casamento da primeira e os preparativos das duas para o literal fim do mundo. Toda a primeira parte de Melancholia se desenrola numa luxuosa festa de casamento num castelo, situação perfeita para Trier desnudar com o cinismo habitual a hipocrisia das relações familiares, a fragilidade das convenções sociais, a insuportável mediação do dinheiro e do poder em todos os laços humanos.

Tudo isso já foi abordado por outros cineastas oriundos do Dogma 95, como Thomas Vinterberg em Festa de Família. Aos poucos, contudo, percebe-se a ambição de Trier é maior. Explorando de maneira quase cruel todas as nuances da instabilidade emocional de Justine (Kirsten Dunst, que se entrega tão completamente ao papel que se sua transformação ao longo do filme é quase física; mais que isso, quase espiritual), contrastada com a racionalidade fria de Claire (Charlotte Gainsbourg, igualmente impressionante), o diretor apresenta a própria vida, tal como a vivemos hoje, como um jogo mórbido de rituais sem sentido, como uma patologia desnecessária e talvez passageira do nosso planeta.

Cena de Melancholia

A tentativa de Justine de aderir à normalidade fracassa na própria noite da celebração, e os desdobramentos dessa pequena tragédia familiar se manifestam na segunda parte do filme, focada em Claire (Charlotte Gainsbourg). Bem casada e com um filho pequeno, ela acolhe a irmã em estado de semi-catatonia e tenta animá-la, enquanto o marido (Kiefer Sutherland), astrônomo amador, acompanha a ameaçadora aproximação da órbita da Terra do planeta gigante Melancholia. Ele reage à fraqueza da cunhada com a mesma incompreensão arrogante com que nega a possibilidade do choque planetário; destruídos seus alicerces e convicções, recorre a um gesto extremo.

Num estranho reequilíbio de forças em relação à primeira parte do filme, a lucidez amarga e desprendida de Justine (“Só existe vida na Terra, e por pouco tempo”; “Ninguém vai sentir falta do nosso planeta” etc) contrasta com a fragilidade de Claire e seu marido diante do inevitável. Estabelece-se assim uma espécie de simetria entre os planetas em rota de colisão e as duas irmãs, unidas e movidas por sentimentos e expectativas radicalmente conflitantes.

No início do projeto, recuperado de uma depressão, Lars Von Trier definiu Melancholia como um belo filme sobre o fim do mundo. É exatamente isso o que oferece ao espectador, sem nenhuma concessão. Sua mensagem é a de que vivemos entre a precariedade e o nada, à beira do colapso. Toma claramente o partido de Justine, que se sente quase à vontade diante da perspectiva do fim absoluto, que a conforta e lhe dá razão: o nada  é uma questão de tempo, e não há esperança de redenção.  O Apocalipse é logo ali. Mas, enquanto ele não chega, restam algumas distrações – o sexo, a família, a religião, o trabalho… E, naturalmente, o cinema, que sobrevive como arte e dá sinais de vida inteligente graças a diretores ainda capazes de provocar reações viscerais dos espectadores, como Lars Von Trier.

 

Como vai você, ficção nacional?

seg, 18/07/11
por Luciano Trigo |
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Capa Geração Zero ZeroAntologias de geração são necessariamente injustas. Costumam deixam de fora autores relevantes, mas que não contam com a necessária inserção no “campo” literário predominante num determinado momento, ou que não dispõem do traquejo social que é cada vez mais necessário cultivar – afinal de contas, hoje, para ter algum reconhecimento e existir socialmente, um escritor precisa ser simpático, viajar, participar de debates, aparecer nas colunas da moda e em programas de televisão, ser convidado para a FLIP e a Fliporto. Da mesma forma, antologias costumam incluir outros nomes, literariamente irrelevantes mas eventualmente enturmados e com bons contatos nos jornais e no meio editorial –  ou simplesmente sortudos a ponto de caírem no gosto do organizador, por motivos variados. Não estou falando aqui de uma vinculação ao êxito comercial, pois a literatura brasileira ainda é pouquíssimo lida, e ainda menos vendida, mal se justificando comercialmente a sua publicação – exceção feita a fenômenos pontuais. Estou falando dos mecanismos de institucionalização da produção literária contemporânea, que passam, também, pela publicação periódica de antologias, como a recém-lançada Geração Zero Zero – Fricções em Rede (editora Língua Geral, 408 pgs. R$45).

Mesmo com todas as ressalvas acima, uma antologia geracional será sempre representativa, em algum grau. É um retrato verdadeiro, ainda que parcial ou desfocado, da produção que circula, dos temas que mobilizam, dos estilos que triunfam. Para o bem e para o mal, é como tal que ela será consultada daqui a décadas ou mesmo… gerações. Ou esquecida, só o tempo dirá.

Organizada pelo também ficcionista Nelson de Oliveira, já responsável por duas antologias de contos da década de 90 (Manuscritos de computador e Os transgressores), Geração Zero Zero apresenta todos esses problemas – e alguns adicionais. Sua proposta é reunir não os melhores textos, como geralmente se faz, e sim os melhores autores revelados na década passada, apresentando contos inéditos, escritos sob encomenda. Desafio complicado, começando pelo fato de que a qualidade, tanto dos textos quanto dos autores reunidos, é extremamente desigual. Além disso, o próprio organizador cita no final do prefácio cinco escritores que, “por razões que não vale a pena enumerar”, ficaram de fora do volume – Clara Averbukh, João Paulo Cuenca, Márcia Tiburi, Mário Araújo e Tatiana Salem Levy. Há outras ausências que merecem explicação. Mais grave é, entre as 21 presenças, não passarem de meia dúzia as realmente necessárias numa antologia. Estão entre elas Lourenço Mutarelli, com seu artesanato de idiossincrasias;  Carola Saavedra, com sua delicadeza sempre cortante; e Santiago Nazarian, com seu tratamento inventivo e sóbrio da temática homoafetiva. Como poucos outros, já são nomes em alguma medida consagrados e, portanto, previsíveis.

Surpreendentemente, Nelson informa no prefácio que foram necessários, na preparação da seleta, três anos imerso em pesquisas, que resultaram num conjunto inicial de quase 150 (?) ficcionistas, conjunto que passou por sucessivas triagens. (Há gente demais escrevendo, para cada vez menos leitores; mantida a tendência, num futuro próximo seremos todos escritores, escrevendo apenas para nós mesmos.) A julgar pelo resultado, essas triagens não foram suficientes. Sempre haverá algo de subjetivo nesse julgamento, é claro, mas as deficiências da maioria dos contos são objetivas e evidentes, o que se explica em parte pelas facilidades proporcionadas pela internet – a “maçaroca líquida da web”, como chama o organizador. Hoje qualquer internauta pode se denominar escritor, sem outro crivo que não o da vaidade. Some-se a isso o esvaziamento da crítica, cada vez mais superficial e complacente (e não apenas na literatura: também no cinema, nas artes plásticas e no teatro a atividade corre ladeira abaixo). Queimam-se assim as etapas de amadurecimento que separavam os diletantes dos profissionais: hoje, escrever direitinho, com alguma técnica, e fazer as referências adequadas ou espertas (por vezes explícitas: em ‘Apontamentos sobre o olhar’, de Carlos Henrique Schroeder, são citados na mesma página Paul Auster e Maurice Blanchot, para ficar apenas num exemplo) basta para entrar no clube e ser bajulado pela cumplicidade dos pares. Esta será exercida por meio de “retuitadas” e “curtidas”, ou em elogios-abobrinhas que nada acrescentam ao debate literário, como nos antigos salões.

É necessária, portanto, uma paciente pescaria para encontrar boas leituras em Geração Zero Zero: além dos já citados, Ana Paula Maia (salvo engano, o único nome do Rio de Janeiro), Daniel Galera e Paulo Scott, predominantemente bons, justificam a atenção do leitor, embora a dureza da temática mundo cão da primeira soe artificial em alguns momentos. É possível, naturalmente, apontar qualidades também nos demais autores, embora quase todos, ao menos nos textos apresentados, careçam de amadurecimento – ou de tesoura, de edição, de reescrita, de novos tratamentos com mais rigor. No estágio em que foram publicados, parecem contos saídos de uma oficina de literatura – ou postados diretamente num blog, sem passarem pelo embate com editores e críticos, ou mais simplesmente pelo período de descanso na gaveta que, por si só, muitas vezes aponta para o autor os caminhos do aprimoramento.

É o próprio organizador quem reconhece no prefácio que há um forte ponto de contato entre os autores da Geração Zero Zero: o bizarro, na temática ou na forma. Mas talvez a principal característica dessa literatura de oficina que domina a antologia seja mesmo a vaidade. Como disse Caetano, Narciso acha feio o que não é espelho. O exibicionismo de iniciante no trato com as palavras, com recursos mal copiados de Guimarães Rosa, ou de Clarice Lispector, ou de Rubem Fonseca, para só citar algumas das fontes diretas reconhecíveis, é marca registrada de muitos jovens autores contemporâneos (alguns não tão jovens). O resultado é, no mais das vezes, uma salada confusa de variações sobre os mesmos temas: personagens desamparados ou solitários ou excluídos ou marginalizados diante de um cotidiano hostil, marcado pela violência urbana, ou emocional, ou psicológica, vivendo conflitos familiares ou existenciais. Os enredos, no fundo, não importam muito, pretextos que são para exercícios de estilo de quem, encantado pelo talvez recém-descoberto poder da literatura, se deleita com o próprio suposto talento, esquecendo-se do leitor.

Assim, por exemplo, já na primeira página do primeiro conto da antologia (‘Apaixonado de mar’, de Flavio Viegas Amoreira) se percebe o gosto recorrente por alguns recursos típicos de quem “escreve bem”: o uso indiscrinado das ênclises (“…eram-lhe estrangeiras”), a inversão da ordem habitual na construção das frases (“Quero um maior espelho”), os neologismos supostamente ousados (“ver Deus despentelhando”). Deus despentelha? Problemas semelhantes aparecem em vários autores do volume, traindo um entendimento da literatura como um mero escrever diferente, ou como subversão de convenções que já não vigoram há décadas. Os textos do segundo autor, Marcelo Benvenutti), são mais fluentes, mas não escapam do gosto adolescente pelo bizarro, o tal elemento comum citado pelo organizador (notadamente em ‘O homem que amava as gordas (e as feias)’. O terceiro, João Filho, se entrega sem limites à manipulação masturbatória das palavras (em ‘Sob o sol de lugar nenhum’: “O cheiro, a textura e o calor de todas as instâncias recônditas ou não do mundo o invadem neste minuto. Talvez o exagero da límpida simultaneidade do ápice?” Eita…). O quarto, Whiner Fraga, chama leite de “sumo das vacas” (em ‘X’); mais à frente, um personagem filho de piloto “passara toda a vida cavalgando o ar” (‘Chove’, de Walther Moreira Santos).

E assim o volume avança, alternando alguns contos corretos, mas pouco ambiciosos, sem riscos – como os de Andrea Del Fuego, José Resende Jr e Verônica Stigger, esta optando por um formato cênico que beira a facilidade do humor televisivo  – com poucos outros mais inspirados, e uma maioria absoluta de textos imaturos ou decididamente fracos, ainda mais para figurar num volume que tem a pretensão de sintetizar a produção literária de uma geração. Mais fricção do que ficção, como sugere o subtítulo do livro.

Trata-se, como se vê, de uma antologia problemática e bastante desigual, para dizer o mínimo. Mas o problema principal que se manifesta em Geração Zero Zero nem é esse. É que mesmo a leitura dos melhores contos dos melhores autores deixa na boca um gosto de anos 70, de repetição de procedimentos característicos daquela época, mal transplantados para um contexto social, cultural e político totalmente diferente – contexto este que pede novas respostas (e novas perguntas) dos escritores. Até mesmo nos textos mais experimentais, percebe-se esse enraizamento: feitos pequenos ajustes nas referências às inovações da tecnologia, todos ou quase todos poderiam perfeitamente ter sido escritos 40 anos atrás, o que me parece um sintoma preocupante, não sei bem de quê.

Escritores bons e maus, textos de qualidade ou irrelevantes haverá em todas as gerações. Mas de cada geração sobrevivem apenas aqueles que sabem se desligar do passado, enfrentando novas realidades com novas ferramentas, e não apenas repetindo e diluindo, com graus variados de competência e talento, modelos já testados e aprovados. É esta ambição que parece faltar à literatura reunida em Geração Zero Zero. A ficção nacional não está dando conta da realidade nacional, muito mais rica e perturbadora do que o umbigo da maioria desses autores. Será essa incapacidade de estar à altura do real o traço distintivo dessa geração?

O importante é ter charme: a vida turbulenta de Serge Gainsbourg

qua, 13/07/11
por Luciano Trigo |
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Poster“A feiúra é superior à beleza, porque dura para sempre”. O autor dessa frase, Serge Gainsbourg, era feio e franzino, narigudo e orelhudo, tinha olheiras e dentes podres. Além disso, vivia bêbado, fumava sem parar e consumia drogas em volumes industriais. Tinha, por assim dizer, o gosto da sarjeta. Mesmo assim foi um dos maiores sedutores de seu tempo, os libertários anos 60: basta citar, entre as mulheres que se renderam ao seu encanto e charme, Brigitte Bardot, Catherine Deneuve, Juliette Gréco e Jane Birkin. Gainsbourg também colecionava escâncalos e foi preso diversas vezes: gravou na Jamaica A Marselhesa em versão reggae, queimou dinheiro em público em protesto contra o aumento dos impostos e, num programa ao vivo na TV, já na década de 80, disse à cantora Whitney Houston: “Você é muito bonita, e eu quero te comer”.

O maior sucesso de Gainsbourg, a canção-orgasmo ‘Je t’aime, moi non plus’, foi escrita originalmente para Brigitte Bardot, no final dos anos 60, mas a atriz se recusoua  gravá-la por conta do conteúdo sexual – a melodia é pontuada por gemidos de prazer explícito. A versão de 1974, um dueto Gainsbourg/Birkin, foi censurada no Brasil, na Inglaterra, na Espanha e em Portugal e condenada pelo Vaticano. É uma música cafona e canalha, com vocação para trilha sonora de romance de motel, mas virou cult para mais de uma geração. A casa onde Gainsbourg morou no bairro de Saint-Germain-des-Prés, com as paredes cobertas de poemas rabiscados, é até hoje um ponto turístico.

Gainsbourg e Birkin

Do relacionamento com Jane Birkin, aliás, nasceu Charlotte Gainsbourg, com quem Serge gravou outra canção polêmica, ‘Lemon Incest’: no clipe insinuante, pai e filha cantam deitados numa cama. Hoje Charlotte é a atriz preferida do também polêmico Lars Von Trier. Outra curiosidade é que a atriz que interpreta Jane , Lucy Gordon, em Serge Gainsborg – O homem que amava as mulheres, em cartaz nos cinemas (trailer aqui), se matou quando o filme estava na etapa de edição.

O longa de estreia do artista gráfico Joann Sfar conta as peripécias de Gainsbourg com competência e evidente admiração do diretor por seu personagem – a quem já dedicara um livro em quadrinhos. É uma declaração de amor, mais que uma investigação preocupada em esclarecer os enigmas da vida do cantor. Como declarou o cineasta, “Eu amo demais Gainsbourg para tentar trazê-lo à realidade. Não são as verdades em torno dele que me interessam, mas suas mentiras.” Trata-se portanto de uma reinvenção, mais que de uma reconstituição realista e atenta aos detalhes da verossimilhança. A infância do menino judeu sob a ocupação nazista, por exemplo, é evocada de forma poética, com a composição visual, a luz e as cores tendo um papel mais importante que o texto. E, para ilustrar as crises criativas e existenciais de seu personagem, Sfar inseriu na trama um boneco que representa a sua voz interior - presença recorrente nos momentos mais radicais da turbulenta trajetória de Gainsbourg. Num esforço para realçar traços, relações e momentos marcantes, a cronologia é muitas vezes atropelada, mas o resultado é o desejado: um filme de atmosfera, mais que uma cinebiografia.

Serge Gaindbourg, o Baudelaire dos anos 60, morreu de ataque cardíaco em 1991, após uma vida de excessos em tempo integral. O mito continua vivo, servindo de consolo e inspiração para os feios e charmosos.

Gainsbourg e BirkinGainsbourg e Birkin

Algumas pílulas sobre a FLIP

sáb, 09/07/11
por Luciano Trigo |
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(em Paraty) Não dá para entender como um autor de um livro sobre Che Guevara não sabe pronunciar o nome de seu personagem: Marcelo Ferroni, autor de ‘Método prático da guerrilha’, passou toda a mesa ‘Ficção e Escombros’, chamando o guerrilheiro de “Che Güevara”, como se tivesse trema no “u”, e sem a inflexão necessária no “Che”…

ferroni

Aliás, depois das modestas intervenções de Ferroni, na mesa que dividiu com Edney Silvestre e Teixeira Coelho, não dá para entender que o livro tenha sido lançado pela Companhia das Letras: como pesquisador, o autor admitiu que se limitou à leitura da bibliografia já existente sobre o tema; como ficcionista, a julgar pelo trecho lido, trata-se de uma narrativa previsível, sem qualquer criatividade, quase adolescente.

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Contardo Calligaris e Ignacio de Loyola Brandão se anteciparam à pergunta que fatalmente viria sobre a desistência-protesto de Antonio Tabucchi diante do asilo concedido pelo Governo brasileiro a Cesare Battisti. A plateia se dividiu: primeiro aplausos tímidos, em seguida vaias tímidas. Custo a entender as vaias: mesmo que defende Battisti deve respeitar o direito de um escritor manifestar sua opinião. Muitas vezes aqueles que se julgam na vanguarda são os mais intolerantes.

Calligaris e Loyola, inteligentes que são, compuseram uma ótima mesa. Mas os trechos que leram sugerem que o primeiro está longe, como romancista, de seu briho como teórico e cronista; e Loyola, como cronista, também está longe de seu brilho como romancista. Tabucchi, vale lembrar, foi quem traduziu para o italiano o romance ‘Zero’, de Loyola.

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Pola

Se no ano passado a cubanita Wendy Guerra foi apontada como sex symbol, em 2011 a musa anunciada foi a argentina Pola Oloixarac. No quesito sedução, cheia de olhares e bocas e pernas cruzadas e risinhos e da falsa timidez de quem se acha muito gostosa com seu batom vermelho e suas mechas, bem, dá para dizer que ela cumpriu seu papel. Mas ao abrir a boca, na mesa que dividiu com o angolano – este sim escritor, este sim cativante – Walter Hugo Mãe, Pola deixou a desejar. Incapaz de articular um pensamento completo, mas pretensiosa a ponto de citar Kant, com o olhar sempre em busca da câmera, ela parecia mais preocupada em ser vista nos telões por um bom ângulo do que em dizer coisas inteligentes. Pelo ângulo literário ela não se destacou. Se essa tendência continuar no ano que vem, melhor chamar logo a Larissa Riquelme.

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Lanzmann
Foi muito pior do que saiu na grande imprensa a situação vivida pelo professor da Unicamp Márcio Seligman Silva como mediador da mesa com Claude Lanzmann. Rabugento ao extremo, Lanzmann parecia empenhado em deconcertar Seligman, a quem interpelou diversas vezes. “Você quer mostrar que no Brasil as pesssoas são bem informadas?”, perguntou, interrompendo um longo comentário com que o mediador, em tom professoral, discorria sobre as imagens do Holocausto. “Se você não falar sobre o livro vou embora”; “Você disse que minha mãe se suicidou, foi minha irmã!”; “Por que você está falando essas bobagens todas?” Etc. Desconfio que Seligman, visivelmente humilhado, nunca mais aceitará mediar uma mesa na FLIP.

Embora não simpatize com Lanzmann nem com sua deselegância, o episódio teve um lado positivo: desmontou o roteiro previsto, mostrou que nem todo mundo gosta de ser bajulado (Seligman chegou a chamá-lo de um dos cineastas mais importantes do mundo, o que revela total desconhecimento da História do cinema), e que os discursos empolados de alguns mediadores da FLIP muitas vezes são pastéis de vento sem qualquer conteúdo. Ou seja, o destempero de Lanzmann serviu para equilibrar os jogos de cena habituais, em que a bajulação substitui a reflexão, em que a vaidade toma o lugar da arte.

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Elroy
Às vezes é muito frustrante ver de perto escritores que só conhecemos por meio dos livros. Não sou um fã de romances policiais, embora numa determinada fase da vida sua leitura faça sentido. Sinto que os aficionados adultos do gênero – como os aficionados por quadrinhos – simplesmente não amadureceram como leitores, estacionando na adolescência (nada errado aí, cada um lê o que quer). Em suma, concordo com Edmund Wilson quando ele pergunta quem diabos quer saber quem matou Roger Ackroyd.

Quando eu lia policiais, na adolescência, fiquei impressionado com o romance ‘A Dália Negra’, de James Elroy, e com a mística que parecia cercar o escritor, traumatizado pelo assassinato da mãe etc. Pois bem, ver Elroy no palco da FLIP e escutar suas tolices e palhaçadas, pedindo para a plateia aplaudir a cada piada de mau gosto e usando uma camisa florida ridícula, fez com que eu me sentisse enganado. Não é um escritor sério.

O vaidoso Claude Lanzmann confessa que viveu

sex, 08/07/11
por Luciano Trigo |
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Claude Lanzmann(de Paraty) Com a ruidosa desistência-protesto do italiano Antonio Tabucchi, Claude Lanzmann herdou o posto de principal atração internacional desta edição da FLIP. O escritor e cineasta francês de 83 anos aproveita para lançar no Brasil suas memórias, ‘A lebre da Patagônia’, que em 2009 venderam mais de 100 mil exemplares na França. Lanzmann, que fala hoje às 19h na mesa ‘A Ética da Representação’, tem histórias para contar, certamente: foi membro da Resistência durante a Ocupação e militante comunista condenado à morte pelo PCF em 1944 (por se recusar a entregar as armas de seu grupo ao Partido); foi signatário do ‘Manifesto dos 121′ contra a guerra da Argélia, e  editor, a partir da década de 80, da revista ‘Les Temps Modernes’, durante muitos anos uma espécie de órgão não-oficial da intelectualidade de esquerda em seu país. Ironicamente, Lanzmann costuma ser menos lembrado por tudo isso que por sua liaison clandestina com Simone de Beauvoir, sra.Jean-Paul Sartre, a principal de uma longa galeria de conquistas femininas que ele exibe no currículo – e este também é um capítulo importante de uma biografia movimentada e cheia de aventuras. Como Pablo Neruda, Lanzmann pode confessar que viveu. Mas podia ser menos vaidoso.

ShoahHomem de ação engajado nos principais debates ideológicos do século 20, em 1985 Lanzmann ganhou projeção internacional ao dirigir o documentário de 9 horas e meia de duração ‘Shoah’, sobre os campos de concentração nazistas. Chatíssimo, por sinal: trata-se, quando muito, de  uma tentativa fracassada e desnecessariamente longa de recriar a atmosfera do documentário de Alain Resnais sobre o mesmo tema, ‘Noite e Neblina’ (de 32 minutos).  Injustamente incensado pela crítica politicamente correta, o mal editado e reiterativo ‘Shoah’ ganhou uma segunda parte em 1994, ‘Tsahal’, que provocou bastante polêmica pelo tom beligerante com que exalta as campanhas militares de Israel. Em quatro horas e meia, desta vez o diretor entrevista políticos, soldados e gente comum e intercala esses depoimentos com cenas de guerra, compondo um incômodo elogio do poderio militar israelense – que nasceu, aliás, de uma proposta do então Ministro da Defesa Itzhak Rabin.

capaÉ necessário que se diga que Claude Lanzmann nunca teve a relevância das estrelas intelectuais de primeira grandeza – Sartre e Simone, mais tarde Gilles Deleuze – em cuja órbita gravitou, como um satélite. A leitura de ‘A lebre da Patagônia’ sugere também que ele se empenha em construir para si mesmo a imagem de um herói, de coragem e fibra inigualáveis. Mesmo que seja tudo verdade, parece a narrativa de um mitômano. O interesse do livro fica assim comprometido por essa indisfarçável intenção de auto-monumento e mitificação. Com um tom romanesco, exagerado e parcial, as memórias de Lanzmann deixam a impressão de que uma biografia escrita em terceira pessoa, com mais rigor e menos complacência, seria bem mais valiosa para os leitores – e para a História.

Marcia Tiburi decifra a experiência televisiva

sex, 01/07/11
por Luciano Trigo |
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Marcia TiburiFoi graças à televisão que Marcia Tiburi se tornou nacionalmente conhecida: durante cinco anos ela integrou a equipe do programa ‘Saia Justa’, com intervenções sempre marcadas pela inteligência e charme. Para alguém acostumado ao mundo dos livros e das salas de aula, foi uma experiência marcante. E foi refletindo sobre essa experiência que Marcia escreveu seu novo livro, Olho de Vidro – A televisão e o estado de exceção da imagem (Record, 352 pgs. R$42,90).

“Neta da fotografia, filha do cinema e do rádio, a televisão é, no sistema de administração do sensível, um mecanismo poderoso”, diz a autora. Em Olho de vidro, ela une de forma inventiva dois assuntos que ao primeiro olhar parecem incompatíveis: filosofia e televisão. Ela investiga a hegemonia da televisão na sociedade atual a partir do pensamento de Zygmunt Bauman, Guy Debord e Muniz Sodré.

Doutora em Filosofia pela UFRGS, Marcia é professora do programa de pós-graduação em arte, educação e história da cultura da Universidade Mackenzie, editora da revista Trama Interdisciplinar e colunista da revista Cult.  Também é autora de Filosofia em Comum (2008), Filosofia Brincante (2010) e o romance O Manto (2009).

Marcia vai lançar Olho de Vidro no Rio de Janeiro na tarde deste sábado, no Espaço Cultural Eletrobras Furnas (Rua Real Grandeza, 219, Botafogo), às 16h.

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- Por que a televisão irrita os intelectuais? Você mesma já disse que não vê televisão. Considera a experiência de assistir à TV empobrecedora?

MARCIA TIBURI: Irrita uns e outros não. Tem muito “intelectual” que adora TV. Tem quem odeia porque tem inveja, porque gostaria de estar lá e não consegue, E tem quem detesta porque acha que é mesmo algo muito pobre. Eu não vejo, assim como não jogo futebol, não vou À igreja e não faço várias outras coisas. É por uma questão de costume. Não tenho o hábito.

A meu ver toda experiência de passividade intelectual é empobrecedora, e a televisão muitas vezes acaba sendo isso. No entanto, não precisa ser assim. A televisão poderá ser diferente, à medida que os meios de produção sejam democratizados, o que já vem acontecendo. O Youtube, por exemplo, é um canal de televisão democrático, que pode ser usado por qualquer cidadão que tenha uma câmera de vídeo no celular. Essa democratização do audivisual pode mudar a nossa realção com a vida das imagens e o domínio que se exerce sobre os telespectadores por meio de sua administração, assim como a democratização da escrita mudou um dia, em muitos aspctos, a nossa relação com a lei, o conhecimento e o poder. Nem a democratização da escrita se concluiu, e a democratização do audiovisual está apenas começando.

 - Qual foi sua motivação ao escrever Olho de Vidro? O interesse pela televisão como tema de reflexão nasceu de sua experiência no programa ‘Saia Justa’ ou já existia antes?

MARCIA: Não existia. Devo este livro a duas coincidências: a participação no Saia Justa e o fato de que, nos últimos anos, ensinei muito em cursos de comunicação. Eu reuni a experiência da pesquisa acadêmica com a experiência curiosa pela qual eu estava passando. Como sou filósofa, penso que é meu dever elaborar reflexões sobre as experiências que vivo. Pensei que o que eu estava vivendo seria relevante se promovesse uma reflexão sobre o objeto televisão e a experiência que as pessoas têm com ela. Fui percebendo que os telespectadores são passivos, irreflexivos e, por isso mesmo, não fazem idéia do que pode estar acontecendo em sua experiência. Minha maior preocupação foi entender a figura subjetiva do telespectador.

- Que descobertas você fez em relação à TV durante os cinco anos em que participou do programa?

MARCIA: O livro Olho de Vidro revela tudo o que eu descobri. ‘Olho de Vidro’ é a metáfora da prótese televisiva. Uma espécie de olho que nos olha enquanto ao mesmo tempo não nos pode ver. Enquanto prótese, faz o papel do nosso olho, mas um olho que está fora do nosso corpo e assim surge como uma espécie de experiência de percepção alienada. Penso que a maior de todas as descobertas deste livro é que o “televisivo” calibra nossa experiência e, assim, a determina o sentido de nossa percepção. Se confio demais na TV corro o risco de me tornar alienado, ignorante e, no extremo, uma pessoa cujo desejo foi substituído por uma prótese. É isso o que significa a Indústria Cultural da televisão: a perda da própria subjetividade por meio de um mecanismo protético.

- Como você analisa a imagem (ou o espectro) em que você se transformou na TV? Você se reconhece nela? Ou ela é um duplo que tem pouco a ver com a Marcia Tiburi de carne e osso. Como vocês duas se relacionam? As pessoas tentam encaixar você na personagem de ficção que de certa forma você encarnou? 

MARCIA: Toda imagem de uma pessoa na televisão é espectro, como de um fantasma. Eu não me assisti, ou raramente me assisti, porque não queria me relacionar com a minha imagem para não ser capturada pelo narcisismo nem pela autocrítica negativa. Eu fiz TV tentando experimentar o que isso podia significar. Enquanto fazia TV, sabia que estava numa espécie de experimentum crucis. E fiquei contente por ter resultado nesse livro. Não haveria sentido em fazer televisão sem pensar no que isso podia revelar em termos de reflexão. Se algum dia eu voltar à TV, coisa que acho difícil hoje em dia, será com o mesmo espírito de experimentação da linguagem audiovisual.

- De que forma você entende que a televisão pode estabelecer uma relação proveitosa com a filosofia e a arte?

 MARCIA: A televisão só não se aproxima de arte e filosofia porque ela é usada como mecanismo publicitário. Quando grandes cineastas como Bergman, Godard ou Fassbinder fizeram televisão, eles a pensaram como instrumento e forma da arte. A meu ver a televisão pode evoluir para a videoarte apenas quando ela rompe com a publicidade. A TV poderia ser usada como um meio de educação e formação, mas não é, porque ela é usada como um mecanismo do capital. Por isso eu defendo a democratização dos meios de produção da imagem, porque só na contramão do capital que é a exploração do ser humano é que haverá mais inteligência, criatividade e liberdade para as pessoas. E, claro, a televisão, do jeito que ela é feita, proíbe a imaginação das pessoas pela repetição de imagens. Isso acaba com a chance de reflexão e, assim, de emancipação.

- Muito se fala sobre o poder de alienar ou de iludir da televisão, ou de informar de forma distorcida. Mas ela também desempenha um papel importante no sentido de consolidar uma identidade nacional, de afirmar determinados padrões culturais e comportamentais que de outra forma poderiam ser esmagados pelo conteúdo audiovisual estrangeiro. Como você analisa isso?

 MARCIA: As televisões de monopólios são contra a liberdade individual em qualquer tempo e lugar. Acho triste que a televisão, do jeito político-ideológico com que é manipulada, seja formadora da “identidade nacional”. A única identidade que ela cria é a do consumismo, que é uma identidade negativa. Em um país livre as comunidades e pessoas criariam a própria TV. Televisão não seria só uma empresa para enganar as massas, mas um veículo de comunicação, informação e formação, como deveria ser também o livro. Infelizmente, não é assim. Mas sou otimista, acho que aos poucos as pessoas, o povo, vão se dando conta deste seu poder.

 - Quais são os principais autores com quem você dialoga no livro ‘Olho de Vidro’?

 MARCIA: Há mais de 80 livros na bibliografia. Livros que li para saber o que se dizia sobre TV. Dos brasileiros, Arlindo Machado e Muniz Sodré foram bem importantes na minha pesquisa. E, dos estrangeiros, Theodor Adorno, Giorgio Agambem, Régis Debray. Mas meu livro não é um conjunto de resenhas, é um ensaio e, como você bem nota, um diálogo, que busca criar conceitos para que possamos entender a experiência da televisão em nossos dias como experiência cultural, antropológica e de conhecimento.

- Como você explica o sucesso duradouro dos reality shows na TV brasileira? O que esse fenômeno diz sobre a sociedade brasileira?

 MARCIA: Sinceramente, acho o ápice da experiência empobrecedora promovida pela televisão.No meu livro falei bastante sobre o voyeurismo e a inveja como experiências do olhar. Acho que o reality show toca na inveja como caráter predador da visão. O que chamei no livro de ‘Fome do Olho’. Os brasileiros são muito invejosos e a televisão é o aparelho que tanto administra quanto fomenta esta inveja, este desejo desmedido de ver. Há, é claro, a crença básica do voyeurista quando assiste a estes programas: ele acredita que, finalmente vai ver “tudo”, que vai ver até o fim. Há um gozo da visão que está em jogo em uma sociedade que não pode mais que isso.

- Você faz uma análise inventiva do papel da bunda no filme O Cheiro do Ralo. Por que tem tanta bunda na nossa TV? Você como intelectual e mulher sente que a TV reforça a imagem feminina como objeto de consumo?

 MARCIA: Aí você toca em um ponto perigoso deste livro. Eu quis dizer que o filme é uma boa metáfora sobre o sentido do olhar, com o olho do telespectador que olha para o Olho de Vidro da TV. Lembra a cena em que o protagonista do filme pega um olho de vidro e tenta olhar a bunda da moça? Pois era o olho com o olho. Minha preocupação não era com as bundas das mulheres, embora elas compareçam com este sentido metonímico na TV brasileira. Como diz a música da Rita Lee, nem toda brasileira é bunda, mas é assim que muitos tentam representar a mulher brasileira. Mas pior do que isso é pensar que um olho quer ver outro olho. E que olho é esse? Ora, deixemos que o leitor descubra e continue vendo TV depois, se tiver coragem.

- As formas de se consumir audiovisual estão se multiplicando: hoje as pessoas vêem TV no computador, no celular etc. ao mesmo tempo, com a expansão da TV por assinatura e da internet, a autonomia do espectador aumenta muito. Como você analisa esse processo?

MARCIA: Para além do que é produzido para ser consumido, penso que muitos processos se tornam democráticos. Gosto muito de pensar que as pessoas estão se tornando videomakers, inventando seus vídeos, criandos seus jornais pela internet. Não sei onde isso vai dar e penso que os educadores devem ficar atentos, sobretudo quando se trata de jovens, mas a democracia, mesmo com seus problemas e defeitos, é o que de melhor podemos fazer em termos políticos, e espero que o processo avance. Escrevi Olho de Vidro desejando contribuir para que haja lucidez neste campo de ação.

- Recentemente você participou em Belo Horizonte de um seminário intitulado ‘Felicidade?’ Que idéias você apresentou sobre o tema? O que é felicidade para você?

 MARCIA: Em BH queríamos desmistificar a felicidade. Salvar a felicidade filosófica da Indústria Cultural da felicidade, da idéia publicitária de felicidade. Foi um seminário para falar de felicidade, de política, da dor dos outros, da violência e do mal-estar na cultura. Bom, espero que os participantes, muita gente, tenham ficado com uma pulga atrás da orelha e com amor pela crítica. Pois foi uma experiência de crítica social e autocrítica.

- Que relação você consegue estabelecer entre a banda Legião Urbana e o pensamento de Michel Foucault – tema de outra projeto seu?

 MARCIA: Estamos com um projeto no CCBB de São Paulo e do Rio, que vai de março a novembro e que se chama Filosofia do Rock.  São conversações filosóficas entre mim e alguns músicos para pensar a importância cultural do rock como prática de subjetivação. Analisamos sempre as questões de um ponto de vista crítico tentando ver o que há nesta experiência estética. Há política, há ética? A idéia é buscar diálogos, assim elegi sempre um músico ou banda e uma corrente filosófica ou um filósofo que pudesse auxiliar no processo. É claro que é um projeto um tanto herege, se considerarmos a igreja acadêmica. Já conversamos sobre Dylan e Benjamin, Beatles e Wittgenstein, Feminismo e Rock, etc. No caso de Legião Urbana, vamos usar Foucault pra pensar poder e subjetividade.



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