Mordidos pelo cinema

sex, 25/02/11
por Luciano Trigo |
categoria Todas

capaAutor de ambiciosas e bem documentadas biografias de François Truffaut e Jean-Luc Godard, o crítico e jornalista Antoine de Baecque é um profundo conhecedor do cinema francês, tendo integrado a equipe da revista Cahiers du Cinéma durante 15 anos, três deles como editor-chefe, além de assinar ensaios sobre a História cultural da França. Não se espere, contudo, de Cinefilia – Invenção de um olhar, História de uma cultura 1944-1968 (CosacNaivy, 472 pgs. R$82) uma obra sistemática, baseada numa pesquisa  exaustiva. Baecque não tem a pretensão de esgotar o tema, mas sim de refletir de forma bastante livre, numa linguagem altamente pessoal e até poética, sobre a cinefilia – entendida como um fenômeno específico de um determinado recorte no espaço e no tempo: a França entre o imediato pós-guerra e o fim da Nouvelle Vague. A rigor, os 12 ensaios do livro podem se lidos de forma independente, concentrados que estão em perfis biográficos (de André Bazin e Georges Sadoul, entre outros) ou em estudos sociológicos de casos relevantes (como a recepção do cinema de Hitchcock na França).

Nascido em 1962, Baecque parte do reconhecimento de que chegou “tarde demais à festa”, quando já não é mais possível descobrir gênios subestimados ou movimentos revolucionários: “Tudo já tinha acontecido”. Hpje só resta recapitular um período único, no qual um grupo de jovens críticos e cineastas (em muitos casos, críticos que viraram cineastas) repensou radicalmente o cinema, a começar pela defesa entusiasmada de determinadas produções americanas vistas como comerciais e vulgares pela elite cultural da época. Esse grupo, desvnculado das instâncias habituais de legitimação cultural ( como a universidade) foi responsável por uma alteração radical da sensibilidade do público e da atividade crítica. Godard, Truffaut, Eric Rohmer, Jacques Rivette e poucos outros iluminados estabeleceram assim uma espécie de pedagogia do olhar, cujos princípios eles próprios levariam às telas durante a Nouvelle Vague, movidos por uma imensa paixão pelo cinema.

Baecque não se detém, contudo, na análise dos filmes, mas na vida que se viveu em torno deles: isto é, está mais interessado na cinefilia como um fenômeno sociológico, que envolve determinadas práticas, valores, rituais e comportamentos – que ele descreve, desencantado, como “irremediavelmente mortos”. O cinema não era apenas visto, mas também lido de forma voraz: o prazer do leitor das centenas de textos que redefiniam a compreensão do cinema rivalizava com o do espectador. Cineastas e críticos, filmes e textos eram igualmente sacralizados, com uma intensidade e uma inocência que, afirma Baecque (e eu concordo), hoje parece ridículo imitar. No contexto radicalmente diverso de hoje, mais interessante que tentar fetichizar à moda antiga filmes e autores contemporâneos é dirigir um olhar para a situação do cinema, buscando entender suas novas relações de força e suas novas formas de consumo, num cenário de globalização e convergência.

Cineasta da transgressão, Carlos Reichenbach anuncia ‘filme da aposentadoria’

dom, 06/02/11
por Luciano Trigo |
categoria Todas

Carlos Reichenbach

Gaúcho radicado em São Paulo desde a infância, Carlos Reichenbach construiu ao longo de quatro décadas uma filmografia ousada e altamente transgressora, na forma e no conteúdo. Depois de estudar cinema com Luiz Sérgio Person e Paulo Emilio Salles Gomes,  dirigiu na chamada Boca do Lixo filmes de produção rápida, baixíssimo orçamento e grandes doses de erotismo,  como A Ilha dos Prazeres Proibidos. Enveredou em seguida por pesquisas de linguagem altamente pessoais, que associaram seu nome ao Cinema Marginal ou a rótulos como “cinema de invenção” ou “cinema pós-novo”. Esse processo culminou em Filme Demência, de 1985, projeto ambicioso mas fracassado nas bilheterias. Desde então, Carlão, como é conhecido, se aproximou de uma temática mais social, retratando a periferia de São Paulo (Anjos do Arrabalde) ou mergulhando no cotidiano das mulheres operárias (Garotas do ABC, Falsa Loura). Premiado em inúmeros festivais internacionais, dirigiu também filmes mais intimistas, de investigação das relações afetivas e familiares, como Dois córregos. Com a rotina de trabalho prejudicada por uma catarata, Reichenbach relembra nesta entrevista a sua trajetória e anuncia seus próximos projetos: Um Anjo Desarticulado, já em desenvolvimento, e o filme com que pretende encerrar sua carreira como diretor: O Mar das Mulheres Finais.

- Como o cinema entrou na sua vida? Quais foram os filmes que marcaram a sua juventude, e por quê?

CARLOS REICHENBACH: Sou filho, neto e sobrinho de industriais gráficos e editores. Eu nasci para seguir o ramo da família, mas perdi o pai muito cedo, um dia antes de completar 14 anos. Por razões naturais, minha formação foi essencialmente literária. Convivi desde cedo com escritores e jornalistas, e meu projeto de vida na pré-adolescencia era viver de escrever. Como meu pai era amigo do cineasta Oswaldo Sampaio [de Sinhá Moça e A Estrada], pude testemunhar, aos 10 anos, a leitura do roteiro cinematográfico que Sampaio havia escrito para Jovita, de Dinah Silveira de Queiroz. Sampaio leu o roteiro com tanta emoção e intensidade que resolvi naquele momento que aquela seria minha forma de expressão. Mas, logicamente, meu pai tinha outros planos: eu iria para um colégio alemão, em Rio Claro, aprender a língua e depois ir estudar artes gráficas no exterior. Aos 11 anos, ele me presenteou com um mimeógrafo a tinta, um luxo para a época. Por isso, acabei sendo editor de quase todos os jornais dos colégios onde estudei. Com a morte do meu pai, houve um desvio de rota na minha vida, mas escrever roteiros não me saía da cabeça. Escrevi alguns, dos 12 aos 15 anos, e um deles será ponto de partida para aquele que planejo ser meu filme “de aposentadoria”, O Mar das Mulheres Finais. Nesse meio tempo, além da literatura, a música também me interessava muito. Voltei esporadicamente a estudar e praticar o piano. Com o tempo fui me dando conta de que o cinema somava todos os meus interesses na área da expressão individual. A partir dos 16 anos fui me transformando num cinéfilo obsessivo.

Hoje, com a devida distância, percebo que meu gosto cinematográfico foi sendo afinado nas sessões duplas e triplas dos cinemas do centro de São Paulo. Os preconceitos possíveis com gêneros específicos de filmes, eu perdi muito cedo. Outra coisa que aprendi muito cedo, por freqüentar a Aliança Brasil-Japão, foi ver filmes sem legendas. Foi na sala da Aliança que vi Intendente Sansho, de Mizoguchi, sem legendas e – graças a um panfleto mimeografado escrito pelo José Fioroni Rodrigues – pude entender tudo que se passava na tela. Esse filme foi, de certa maneira, um divisor de águas na minha vida. Fiz meu primeiro exercício filmado em 8 milímetros inspirado nele; chamava-se Fuga própria. Com 17 anos comecei freqüentar a Sociedade Amigos da Cinemateca, e a sala do Museu, na Rua Sete de Abril, em São Paulo. Conheci Paulo Emílio Salles Gomes, que viria ser meu professor na Escola Superior de Cinema São Luiz. Fiz um curso com ele sobre cinema russo e outros cursos esporádicos, sobre Expressionismo alemão e cinema brasileiro.

Lilian M. - Relatório Confidencial

Já naquela época me irritava o preconceito contra a chanchada. Aprendi a gostar de chanchada no breve tempo que morei no Rio de Janeiro, no ano seguinte à morte do meu pai. No Rio, freqüentei com assiduidade um cinema no Leme, chamado Danúbio, que exibia muitas chanchadas. O único gênero que não me atraia em especial eram os filmes de guerra, afinal minha mãe – que era estoniana – tinha sido vítima da primeira, quando passou fome e perdeu dois irmãos; ela veio ao Brasil aos 17 anos, para buscar a irmã mais velha, que havia fugido com um alemão. Quando estourou a Segunda Guerra, e a Estônia foi “negociada” por Roosevelt com Stalin, ela nunca mais pôde voltar e rever a família. Conto esses detalhes porque pouca gente sabe que tudo isso, em algum momento, vai aparecer nos meus filmes. Por exemplo: as palavras exatas do brinde que Roosevelt fez para Stalin, quando a Estónia, a Lituânia e a Letônia foram entregues aos soviéticos, eu repeti em O império do desejo, num brinde-saudação que a maoísta do filme faz para o personagem anarco-canibal.

- Você foi aluno de Luiz Sérgio Person e Paulo Emílio Salles Gomes. Fale sobre esse período e sobre a importância de Person e Paulo Emílio.

REICHENBACH: Estimulado por um amigo – João Callegaro – prestei vestibular no segundo ano da Escola Superior de Cinema São Luiz: o primeiro curso de cinema de nível universitário que foi fundado em São Paulo. De certa maneira, é possível se afirmar hoje que o chamado Cinema Marginal, Experimental ou De Invenção surgiu nos corredores da São Luiz e suas imediações. A São Luiz ficava a uma quadra do Cine Belas Artes e de dois bares muito freqüentados pela inteligência da época: o Rivieira e o Ponto Quatro. O Cinema Pós-Novo, como alcunharam os ingleses, nasceu neste quadrilátero São Luiz – Belas Artes – Riviera – Ponto Quatro.

Na São Luiz, fora colegas como Callegaro, Carlos Ebert, Hideo Nakayama, Miguel Chaia e outros, para, mim pessoalmente, foi essencial o contato com esses dois professores: Luis Sergio Person e Paulo Emílio Salles Gomes. Paulo Emílio ficou muito impressionado com o meu conhecimento e interesse pelos pensadores libertários. Eu e um colega líamos avidamente os anarquistas russos, Daniel Guerin, Enrico Malatesta, e éramos fascinados por Proudhon. Hoje, com a distância, percebo com clareza que o anarquismo salvou a minha convivência diária com a minha mãe. Minha mãe não teria perdoado um filho militando no Partido Comunista. Paulo Emílio me ajudou a entender melhor o pensamento que me interessava, inclusive me emprestando livros raríssimos. Já Person foi quem me empurrou para a prática cinematográfica. Eu dizia que queria ser roteirista, ele afirmava que eu tinha que dirigir. Por que, não tenho a menor idéia. Aí ele me obrigou a dirigir um curta metragem, Esta Rua Tão Augusta. Arrumou câmera, negativo e me impôs o desafio de comandar uma equipe de neófitos, como eu. Eu dizia: “Eu não sei trabalhar em grupo. Eu faço tudo sozinho; sou um roteirista, não sei lidar com gente. Ele: “Aprende!”.

O curta só foi concluído dois anos depois, e aí deu para perceber na pele a importância de dominar todas as áreas técnicas da prática cinematográfica. Aprendi a fotografar e operar a câmera, trabalhando em filmes de colegas, e a planejar toda a realização do filme no papel, com antecedência. Curiosamente, nunca me interessei em montar meus filmes, ou filmes de terceiros. Sempre achei que a montagem exigia uma parceria cúmplice, e até hoje enxergo o montador como uma espécie de co-roteirista. Com exceção da montagem, penso até hoje que é mais fácil – e rápido – mostrar como eu imagino as coisas do que simplesmente tentar explicar verbalmente. Apesar de ser zen em algumas coisas, me exaspera não conseguir me fazer entender. Prefiro ir lá e mostrar como eu quero, seja para o ator, para o fotógrafo, para o músico. São três áreas que aprendi a dominar pela força das circunstâncias. E, sinceramente, não gosto nada de ouvir, um ator, o fotógrafo ou o músico dizer “eu não consigo fazer isso”. Em Alma corsária, por exemplo, fui produtor, diretor, roteirista, diretor de fotografia, operador de câmera e compus, executei e gravei toda a trilha musical na minha casa. Por sorte, tive uma montadora, a Cristina Amaral, que foi meu esteio criativo, e me ajudou a desenhar, reinventar e encontrar o ritmo daquele vôo livre.

Alma Corsária

Pouca gente sabe que eu pagava meu aprendizado de cinema na extinta São Luiz, onde também lecionavam Roberto Santos, Anatol Rosenfeld, Mario Chamie, Décio Pignatari etc, como tecladista do grupo TNT4. Eram os fins de semana e os mingaus no Santa Mônica de Campo e Náutica, no Clubinho da Nestlé, no CMTC Clube, que bancavam meus estudos de cinema.

- Você começou a dirigir no final dos na os 60. Qual era a sua relação com o Cinema Novo? E com o chamado Cinema Marginal?

REICHENBACH: Todos nós, que fomos estudar cinema na São Luiz, o fizemos por influência do Cinema Novo; achávamos que poderíamos mudar o país com o cinema. Quem disser que não pensava, na época, fazer o grande filme cinema revolucionário e participante, vai estar mentindo. No meu caso, percebo que houve influência do cinema brasileiro como um todo: da chanchada, do cinema mineiro de Humberto Muro, do filme policial carioca, dos filmes de cangaço baratos, do cinema da Vera Cruz – em especial, de Oswaldo Sampaio, Tom Payne, Lima Barreto e Abílio Pereira de Almeida. Já o Cinema Marginal (ninguém gosta mais deste clichê) surgiu, como eu já disse, nos corredores da São Luiz, e no quadrilátero da Avenida Paulista com a Rua da Consolação. Dali para a Boca-do-Lixo foram questões de meses. O Cinema Marginal surge com o Manifesto do Cinema Cafajeste, de João Callegaro. E pouca gente sabe que o termo só foi “oficializado” com uma entrevista do Antônio Lima para o Jornal do Brasil, em 1968/69, durante o lançamento de Audácia, filme do qual fui diretor de um dos episódios.

- Nos seus filmes dos anos 70 e início dos anos 80, há quase sempre um componente erótico forte. O erotismo era uma válvula de escape para a repressão política?

REICHENBACH: Desde meu primeiro episódio em longa metragem ["Alice" em As Libertinas, de 1967], a questão do desejo era tão importante quanto o veio transgressivo e político. O componente libertário sempre esteve presente nos meus filmes, bons e ruins. Sou da geração 68, que adolesceu sob a égide de Wilhelm Reich, Herbert Marcuse e Erich Fromm, os marxistas freudianos: eros e revolução como palavras de ordem. Quando aceitei realizar duas assumidas pornochanchadas [A Ilha dos Prazeres Proibidos e O Império do Desejo], foi para retrabalhar o repertório conservador habitual do gênero para subvertê-lo. A Ilha é um elogio ao hedonismo, e Império é quase um panfleto anarco-libertário. Mas, ambos são filmes essencialmente políticos – claro, usando a metáfora como estratégia. Império é, inclusive, um dos meus filmes preferidos.

A Ilha dos Prazeres Proibidos

- Você acha que o cinema atual “encaretou” em relação ao erotismo? A que atribui isso?

REICHENBACH: A arte, em geral, ficou mais conservadora. A Aids e o politicamente-correto foram responsáveis por isso. Há também, no caso do Brasil, o fenômeno da atomização do cristianismo e o surgimento avassalador das ramificações evangélicas. È inegável que os anos 60 e 70 foi o período em que a fé de viés espiritualista teve seu apogeu no Brasil, especialmente aquelas de forte influência africana, onde o componente ritualístico e erótico é muito forte. Nos anos 60 e 70 a repressão era de teor político, e na virada da década a repressão tomou outra cara, tão intolerante ou até mais que a anterior. Sobretudo, no quesito comportamental. Antes o foco da repressão era a liberdade política; hoje, é o livre arbítrio.

- Qual era a sua relação, na época, com a EMBRAFILME, e que avaliação você faz hoje daquele modelo?

REICHENBACH: Minha única experiência com a EMBRAFILME, como coprodutora, foi com Filme Demência, e posso afirmar que foi traumática. O filme tinha como tema a despersonalização do ser humano pela inflação, e eu e meu sócio Eder Mazini vivemos na pele as vicissitudes do nosso protagonista. O país atravessava a sua pior crise econômica, e a Embrafilme não conseguia cumprir seus contratos dentro dos prazos previstos. Nós interrompemos as filmagens três vezes. Na segunda vez, precisei dispensar o diretor de fotografia, José Roberto Eliezer, e tive que liberá-lo para filmar com os alemães. Terminei o filme fazendo câmera, fotografia, dirigindo etc. No final, acabei entrando até em cena, para dar a “mensagem final” ao protagonista. Aliás esse filme só foi concluído porque tive dois atores-protagonistas extraordinários, criativos e cúmplices, que não abandonaram o barco. Com Ênio Gonçalves e Emílio di Biasi, que são dramaturgos e diretores de teatro, aprendi realmente a amar e entender os atores. Com eles descobri o segredo de Joseph Mankiewcz, o maior diretor de atores do cinema americano. Nós, que escrevemos, concebemos e dirigimos o filme, somos o corpo e o espírito da obra; os atores são a alma.

Filme Demência

- Filme Demência, de 1985, parece marcar uma inflexão na sua obra. Fale sobre o significado desse filme na sua trajetória.

REICHENBACH: Filme Demência, só eu sei, é meu “acerto de contas” com o pai que perdi muito cedo. É um filme sobre o mito de Faetonte, filho de Apolo, aquele que perdeu o “carro de fogo” paterno. Assim como os outros dos meus filmes de que mais gosto – Lilian M., Alma Corsária e O Império do Desejo – fiz Demência pensando em mim como espectador. Todos os meus filmes, de alguma forma, falam de experiências vividas: alguns mais explicitamente, como Alma Corsária e Dois Córregos. Mas, por exemplo, minha mulher – que talvez seja a pessoa que melhor me conheça – diz que a minha cara e a minha mente estão em O Paraíso Proibido. Sei lá, sempre achei que eu nunca seria a pessoa certa para avaliar meus filmes, e que se eu pensar muito neles deixo de fazer cinema. Pode parecer uma metáfora babaca, mas eu enxergo Filme Demência como um “filho autista”, que só eu serei capaz de amar e compreender.

- Você se considera um cineasta realista, focado principalmente na temática social, como sugerem os filmes Anjos do ArrabaldeGarotas do ABC e Falsa Loura? Como a questão social se atualizou, ao longo da sua obra, e que questões sociais seria preciso discutir hoje?

Falsa Loura

REICHENBACH: Nunca me considerei um cineasta realista, aliás vivo sendo criticado pelo viés surrealista inesperado dos meus filmes. O ponto de partida pode ser até realista, porque me interessam e muito as mulheres proletárias. Devo ser um degenerado, mas me excita mais – como homem – ver a entrada e saída de garotas da periferia num show do cantor Belo, por exemplo, com suas calças justas, os seios grandes, sem silicone, ligeiramente caídos, aparecendo no decote, do que presenciar qualquer desfile de moda ou biquíni num ambiente burguês. Em suma, eu sou apaixonado por essas personagens, e me irrita ler que num ambiente operário é difícil enxergar a beleza das mulheres.

Garotas do ABC

Sempre me interessou fazer dialogar o repertório popular e o erudito. Durante muito tempo eu busquei me livrar da pecha de CDF. É claro que, como filho de um erudito, eu tivesse uma formação mais intelectual que o normal. Aos 9 anos, ao contrário dos meus colegas, eu lia Sommerset Maugham e John Steinbeck. Isso, aos 14 anos, viria a se tornar um problema, porque me chamavam de blasé e coisas piores. No colégio interno fui entender o truísmo do poeta, editor e pensador anarquista Roberto das Neves: “È preciso conservar sempre um mínimo de má reputação”.

Há muitas questões sociais a discutir hoje e que deveriam servir de excelente material dramatúrgico. Me interessa muito fazer uma varredura a respeito da “nova direita brasileira”. Tenho ensaiado concluir dois livros (não filmes) intitulados Formosa e Reacionária e Sensual e Cascagrossa (eram quatro no projeto inicial), que estão rascunhados e já possuem um editor à espera.

- Que avaliação você faz do cinema brasileiro hoje, em termos de mercado, qualidade artística, comunicação com o público e originalidade?

REICHENBACH: Hoje o cinema vive uma dicotomia; de um lado com produções mastrodônticas e dependentes da parceria e da estética da televisão; de outro, o filme de baixíssimo custo, o popular BO [Baixo Orçamento], confinado a sessões de favor no cinema de arte e ensaio. A terceira via me parece a mais interessante de todas; é o que poderíamos chamar de “filme dirigido”, que são aqueles que buscam atingir um público específico, pré-definido e limitado. Encaixam-se nessa via, alguns dos melhores filmes da safra recente: Raízes do Brasil, Uma Noite em 67, Justiça, os documentários do João Moreira Salles, do Eduardo Coutinho, Belair, Cidadão Boilesen e até Surf Adventures. Acho terrível não vislumbrar uma quarta via, a chamada “produção média”, os filmes de gênero, que sempre foram a sobrevivência do comércio e da produção de filmes.

Na seara da originalidade e invenção, ainda bem que existem Carlos Adriano, Sergio Bernardes (falecido), Arthur Omar, Dennison Ramalho e alguns poucos outros que fazem um audiovisual visionário e demiúrgico, que provoca e estimula a sensibilidade e a inteligência do espectador. Acho que foi Henry Miller quem disse – se referindo ao leitor (espectador), que todo leitor (espectador) é, por principio, um fraco (como os intelectuais), porque trai quando é acuado, incapazes de entender o que lê. Parafraseando Miller, o espectador é um traidor em potencial. É preciso chacoalhá-lo sem piedade, provocá-lo com enigmas, encantamento, idiossincrasias, angústia e impudência.

- Fale sobre os seus próximos projetos.

REICHENBACH: Se der, filmo até o final do ano, Um Anjo Desarticulado, um projeto pessoalíssimo que rascunhei no curta metragem Equilíbrio e Graça, produzido pela Petrobrás. Se Filme Demência era sobre o encontro de Fausto com Mefisto, esse filme é sobre o encontro de um agnóstico com o Deus escondido. Por isso quero voltar a filmar com Ênio Gonçalves, que – como eu – viveu uma intensa experiência com a proximidade da morte. Não é por menos que os cineastas em atividade que mais me interessam hoje, sejam Paul Schrader, o Bresson americano, o Marco Bellocchio de A Hora da Religião, e Jean-Claude Brisseau, que é obcecado pelo êxtase.

Fora os livros que venho rascunhando [dois romances e dois livros sobre cinema - um deles sobre erotismo e pornografia], gostaria ainda de filmar dois pequenos filmes intimistas, um sobre a amizade ágape entre mulheres e um musical (à Jacques Demy), totalmente composto, musicado, escrito e dirigido por mim, com cantoras e atrizes que admiro (Virgínia Rosa e Mariana de Moraes, entre elas), com arranjos e direção musical de Nelson Ayres e Marcos Levy (que trabalharam comigo em Garotas do ABC e Falsa Loura). E encerrar a carreira de cineasta com um inventário pessoal dos meus erros em vida, chamado O Mas das Mulheres Finais, inspirado em um roteiro rascunhado aos 14 anos de idade.

FILMOGRAFIA (LONGAS-METRAGENS):

1972 – A corrida em busca do amor
1975 – Lilian M., relatório confidencial
1979 – Sede de amar
1979 – A ilha dos prazeres proibidos
1980 – Império do desejo
1981 – Amor, palavra prostituta
1981 – O paraíso proibido
1984 – Extremos do prazer
1986 – Filme demência
1987 – Anjos do arrabalde
1994 – Alma corsária
1999 – Dois Córregos
2004 – Garotas do ABC
2005 – Bens Confiscados

2007 – Falsa Loura

Sofia Coppola mostra a beleza do vazio e do tédio

qua, 02/02/11
por Luciano Trigo |
categoria Todas

cena do filme

O drama de Johnny Marco, protagonista de Um lugar qualquer, é ser um personagem. “Não sou nem sequer um ser humano”, ele diz para a ex-mulher ao telefone, no único momento do filme em que se permite externar alguma emoção mais profunda.  No resto do tempo, ele cumpre sua agenda profissional como estrela hollywoodiana, faz sexo com mulheres lindas,  dirige sua Ferrari e dá alguma atenção à sua adorável filha de 11 anos, Cleo, antes de despachá-la para uma colônia de férias – uma vida não exatamente ruim, vamos combinar.

Um lugar qualquer começa com uma Ferrari  andando em círculos, uma metáfora óbvia para o sentimento de deriva que predomina ao longo do filme. Em seu quarto longa-metragem (depois de As virgens suicidas, Maria Antonieta e Encontros e desencontros), Sofia Coppola não cai na armadilha de satanizar o estilo de vida dos ricos e famosos, nem  se esforça para mostrar Johnny como vítima ou herói, nem está interessada em qualquer em narrar qualquer processo de redenção. Ela simplesmente registra o cotidiano de Johnny,  cuja condição não é exatamente de crise, mas de suspensão – suspensão de expectativas e do sentido das coisas, o que provoca uim ligeiro impulso de partir, de estar em outro lugar ou, num sentido mais profundo, de ser outra pessoa.

Johnny é interpretado pelo ator Stephen Dorff  com uma adequada economia de recursos, que beira a catatonia. Não é alguém particularmente esperto ou simpático, nem tem nada de heróico: ele segue roboticamente um roteiro que cabe a um astro, para quem todas as vontades são imediatamente realizáveis, reduzindo a própria dimensão erótica a coisa consumível e descartável. Mesmo na relação com sua filha (interpretada de forma delicada por Elle Fanning), seu afeto é limitado por uma espécie de distanciamento, imposto pelo seu estilo de vida, no qual não há espaço para qualquer vida interior. Mas esse vazio não chega a provocar um movimento de real ruptura: o tédio e a pequena angústia de Johnny, no fim das contas, não são mais que componentes adicionais de seu charme.

A narrativa é deliberadamente fragmentada e desamarsada, com vários fios soltos – como as mensagens ofensivas que Johnny recebe no celular e que ficam inexplicadas (ele não é o sujeito de uma ação, mas quase um espectador, como nós). A atmosfera é mais importante que o enredo,  e a composição da imagem traz mais informações que os diálogos, o que aproxima Sofia Coppola do cinema de Michelangelo Antonioni.  A diferença, talvez, é que os personagens de Antonioni tinham questões interiores que não conseguiam comunicar, enquanto em Um lugar qualquer não existe interioridade: as coisas são vividas em sua superfície, e não parece existir nada além ou abaixo dela: um retrato da condição humana numa certa pós-modernidade, na qual a ideia de um futuro se perdeu. Mas será que isso é tão ruim?, Johnny parece se perguntar quando sorri no final de Um lugar qualquer. Talvez o vazio e o tédio possam ser bonitos e prazerosos como a paisagem do sul da Califórnia, ou uma suíte do hotel Chateau Marmont – ou, aliás, como um filme de Sofia Coppola, onde nada acontece e tudo acontece.



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