Woody Allen faz a crônica da nova desordem amorosa

qui, 25/11/10
por Luciano Trigo |
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cena do filme

Os melhores filmes de Woody Allen não são necessariamente os mais engraçados, mas aqueles que conseguem conciliar humor e uma dose de amargura, como ‘Manhattan’, ‘Hannah e suas irmãs’ ou ‘Crimes e contravenções’. ‘Você vai conhecer o homem dos seus sonhos’ é mais um exemplo perfeito desse delicado equilíbrio: embora faça rir, e bastante, é um filme feito para adultos, um retrato bastante cético das relações afetivas no mundo em que vivemos hoje. Um retrato tão verdadeiro dessa nova ordem (ou desordem) amorosa que é difícil sair do cinema sem aquele tipo de desconforto provocado por situações assustadoramente familiares.

Basicamente a mensagem do filme é que, no terreno dos afetos, só existem duas alternativas: a ilusão e a frustração. Os personagens transitam entre esses dois pólos, em graus variados, às vezes de forma deliberada: um escritor mal-sucedido, sua esposa insatisfeita, a mãe dela, abandonada pelo marido, o pai, que se recusa a aceitar a velhice. Com algo de melancólico, a nublada Londres – onde o diretor também filmou o excelente ‘Match point’ – é um cenário adequado para o sombrio jogo de interesses e a sucessão de discretos mal-entendidos que compõem a trama.

Helena (a ótima Gemma Jones), está desorientada após o divórcio inesperado na terceira idade. Ela procura consolo em uma vidente – na qual todos enxergam uma picareta, mas que acaba acertando em quase tudo que diz. Alfie (Anthony Hopkins) tenta enganar o tempo se matriculando numa academia, fazendo bronzeamento artificial e… se casando com uma garota de programa (Lucy Punch). Infeliz no casamento com Roy (Josh Brolin), o escritor fracassado e desempregado, Sally (Naomi Watts, numa interpretação cheia de nuances), se apaixona pelo chefe, o charmoso galerista Greg (Antonio Banderas), mas não é correspondida. Roy, por sua vez, se envolve com uma jovem vizinha, Dia (Freida Pinto), que está noiva mas não tem certeza se quer mesmo se casar.

Nessa quadrilha, a narrativa de ‘Você vai conhecer o homem dos seus sonhos’ tem algo de teatral, não somente pela concisão dos diálogos, pela forma de apresentação dos personagens e pelo encadeamento das cenas, mas também por lembrar os enredos daquelas peças de Tennessee Williams ou Arthur Miller em que a verdadeira ação acontece de maneira subliminar, sob o véu das aparências e normalidade que os protagonistas se esforçam em preservar. Evoca, ainda, um filme da fase bergmaniana de Woody Allen, ‘Interiores’, também sobre centrado em desencontros amorosos e nas falsas expectativas que criamos – e nas mentiras que abraçamos – para enfrentar a realidade.

Roy passa tarde inteiras olhando pela janela para Dia, e quando, por fim, está no apartamento dela, seu olhar muda de mão: é sua ex Sally quem volta a atraí-lo. O objeto do desejo está sempre do outro lado do vidro. Ninguém está satisfeito com o que tem, e cada conquista traz inevitavelmente uma perda. Como escreveu Cesar Vallejo, há sempre algo que nos liga a quem nos abandona, e sempre algo que nos separa de quem fica conosco.

Anos 80: o necessário balanço de uma geração

seg, 22/11/10
por Luciano Trigo |
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capaReunindo 123 artistas, a exposição Como vai você, Geração 80?, realizada em 1984 no Parque do Lage, no Rio de Janeiro, foi um divisor de águas na arte brasileira, aglutinando dezenas de nomes que mais tarde se tornariam internacionalmente reconhecidos. Depois do rigor conceitual que prevaleceu nos anos 60 e 70, havia ali um impulso libertário, que se manifestava em novos caminhos da pintura e no diálogo livre com diferentes linguagens do passado e do cenário internacional. Cristalizava-se ali, por outro lado, a transição para um novo sistema da arte no Brasil, mais profissionalizado e vinculado às forças do mercado. Sinal dos tempos: com a redemocratização, o mesmo movimento de euforia que libertava a arte brasileira do papel de crítica social e política que ela exerceu durante a ditadura militar envolvia os artistas numa dinâmica neoliberal globalizada, que até hoje dá as cartas no mundo da arte.

Organizado pela crítica e curadora Ligia Canongia, o livro Anos 80 – Embates de uma geração (editora Barleu/Francisco Alves, 244 pgs. R$32) faz um balanço ambicioso e abrangente dessa geração. Reunindo reproduções de obras de artistas como Adriana Varejão, Beatriz Milhazes, Daniel Senise, Jorge Guinle, Leonilson, Luiz Zerbini, Nuno Ramos e Vik Muniz e textos de Agnaldo Farias, Fernando Cocchiarale, Frederico Morais, Ricardo Basbaum e Ronaldo Brito, além de um longo ensaio crítico da própria Ligia, também autora de O legado dos anos 60 e 70 (Jorge Zahar Editor, 96 pgs. R$19), entre outras obras fundamentais para se entender a arte brasileira hoje. O lançamento de Anos 80 – Embates de uma geração acontecerá nesta terça-feira, 23, na Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema, a partir das 19h. 

Nesta entrevista, Ligia Canongia analisa a importância e as especificidades da Geração 80, discute a atividade da curadoria e comenta a crise do modelo das Bienais, entre outros temas. Fala, ainda, sobre o emergente mercado de livros de arte no país, no qual se insere o lançamento de Anos 80: a Barléu, editora criada por Carlos Leal e exclusivamente dedicada à arte brasileira, e já tem no prelo mais dez 12 títulos, dois deles reunindo as obras dos artistas José Bechara e Iole de Freitas.  

- Você também é autora de um pequeno mas importante livro sobre o legado dos anos 60 e 70 nas artes plásticas. De que maneira a Geração 80 rompeu com esse legado, que novas práticas, questões e valores ela trouxe, e de que novas maneiras os artistas dessa geração se articularam com o mercado?

LIGIA CANONGIA: Os anos 80 pontuaram um momento mundial em que se recrudesceu o debate sobre os valores da modernidade, na tentativa de romper a evolução historicista que se estabeleceu no âmago mesmo do projeto moderno. Buscou-se discutir a legitimidade das autonomias e das especializações modernistas, com a contrapartida do ecletismo e do pluralismo, que visavam à crítica de certa intransigência das linguagens. A idéia era justamente desbloquear os ciclos autônomos do modernismo, e a estratégia imediata foi o rompimento da noção de “estilo”, com a conseqüente mistura e colisão dos gêneros da tradição. Não apenas o legado moderno estava em xeque, como ainda as neovanguardas recentes – a pop, a arte conceitual e o minimalismo, que vigoraram nas décadas precedentes. Era a entrada definitiva da noção de pós-modernidade, que já se esboçava desde a Pop americana. No Brasil, o movimento que mais se aproximava do espírito dos anos 80 era o Tropicalismo, com o qual muitos artistas se identificavam, e que já havia se insurgido contra os conceitos de pureza de meios e sistemas lingüísticos fechados. Com o Tropicalismo e os anos 80, compõem-se dois segmentos históricos brasileiros empenhados no fenômeno da hibridização dos estilos e na discussão do racionalismo moderno. O que entrava em jogo, então, era não somente o questionamento da estética moderna, mas o surgimento de um pós-capitalismo, atrelado ao consumo de massa, à tecnologia eletrônica e aos imperativos do mercado, que muitos consideravam, inclusive, estar ressonando negativamente sobre o próprio perfil artístico da época. O fato de a geração dos anos 80 ter sido assimilada rapidamente pelo mercado foi visto, naquele momento, e em caráter internacional, como reflexo da voracidade mercantil da era yuppie e da ideologia neoliberal, que absorveram a própria obra de arte no roldão do consumo desenfreado. Na verdade, os artistas dos anos 80, como também os das gerações que se seguiram até hoje, foram e estão sendo vítimas dessa avidez comercial.

- Dá para dizer que a Geração 80 foi o último movimento coletivo importante na arte brasileira – em contraponto à pulverização/pluralidade da produção posterior? Que comparação é possível fazer entre a arte brasileira dos anos 80 e a dos anos 2000?

LIGIA: A pulverização e a pluralidade foram características, mesmo que não exclusivas, dos anos 80; as décadas posteriores apenas deram prosseguimento a questões já aventadas anteriormente. Não havia mais ali o intuito de configurar um movimento, pelo contrário, os anos 80 debateram-se contra regimes, estilos ou programas, tal como ocorrera na era moderna. A novíssima geração dos anos 2000 assemelha-se, sim, àquela dos 80, não apenas porque tornaram a revigorar a pintura, como, principalmente, por estarem envolvidos no reviramento da História da arte, acoplando referências e citações simultâneas e até contraditórias numa mesma obra. Como Jorge Guinle assinalou na década de 1980, a História tornou-se um banco de dados a ser reciclado livremente. Para isso, Hans Belting declara que a crítica contemporânea tem que se desgarrar dos parâmetros tradicionais e pensar-se, ela mesma, como uma “história em processo”.

- Nos anos 60 e 70, até por circunstâncias históricas, o engajamento político dos artistas foi intenso. Mesmo os artistas conceituais vinculavam sua produção a um comentário sobre a realidade do país (o que foi aliás uma característica da arte conceitual em toda a América Latina, na época). A Geração 80 não representou uma alienação da arte em relação à política?

LIGIA: Acho que a geração dos anos 80 não estava, absolutamente, desvinculada de um processo histórico ou político; essa é, inclusive, uma das questões que trabalho no livro. O contexto social do país era outro, e as obras de arte não tinham mais por que refletir a opressão das décadas da ditadura. A produção dos anos 80 assumiu uma postura diversa no plano ideológico, que se conjugava com a redemocratização. Sua ideologia não estava mais comprometida com a crítica social, no sentido estrito, mas com a questão cultural, que é sempre social em visada mais ampla. O que se discutia era a dispersão das imagens contemporâneas, a velocidade da comunicação na era das redes e do multiculturalismo, e a simultaneidade das referências históricas, que não cabiam mais nos paradigmas do passado. Além disso, não considero que a obra de arte é política apenas quando aborda explicitamente o plano político, aliás, o parti-pris dessa última Bienal. Ela é política em sua natureza, como qualquer outra manifestação do homem no contexto da História; o discurso político não precisa ser literal. Os artistas dos anos 80 desconcertaram os parâmetros da crítica modernista e a legitimação de valores que se pretendiam universalmente válidos, o que mexeu profundamente com a “política” da própria arte, de forma anárquica e desconcertante. Sua “revolta” era outra. Isso tinha a ver não somente com a desconstrução das idéias de hierarquia e hegemonia, mas também com o funcionamento das novas sociedades globalizadas, cujos efeitos já se tornavam incontornáveis.

- Qual era a situação da pinturabrasileira no momento da emergência da Geração 80, e o que explica o retorno à pintura promovido por muitos de seus artistas?

LIGIA: Como um dos objetivos críticos da década de 1980 era operar uma reversão de valores na tradição histórica, a pintura oferecia-se como o ponto nodal para o debate, justamente por ser o gênero mais tradicional. Ela significava não somente um retorno ao contato manual e corporal do artista com seus meios – em rebatimento aos aparatos tecnológicos, como um contra-golpe nas convenções pictóricas ocidentais, através de um desabusado ecletismo. Isto já se sentia desde os anos 60, como, por exemplo, nas telas de Rauschenberg, quando ele uniu aspectos expressionistas à realidade mundana e impessoal da Pop. No Brasil, a pintura não foi um ponto forte no período precedente, ao contrário, os anos 70 primaram pelo experimentalismo com as novas mídias e a produção de objetos e instalações. O retorno à pintura, de alguma forma, também representou certo esgotamento do caráter eminentemente conceitual anterior, que Guinle, de maneira irônica, chamou de “brinquedos cerebrais”.

- O percurso posterior dos protagonistas da geração 80 foi uniforme? Se não, quais os diferentes caminhos seguidos mais relevantes?

LIGIA: Quando vemos hoje o desdobramento da obra dos artistas dos anos 80, constatamos que, na maioria das vezes, não houve alterações estruturais nas questões que já lançavam na época. Se observarmos, por exemplo, o trabalho de Zerbini, Barrão ou Nuno Ramos, encontraremos certamente, não um percurso linear, mas determinados procedimentos estéticos e formulações que não contrariam de forma alguma suas premissas originais. Tirando-se o amadurecimento natural que toda obra jovem apresenta ao longo de sua trajetória, podemos perceber que já havia, à época, segurança no que propunham. Adriana Varejão nunca se desligou de sua referência ao barroco; Beatriz Milhazes continua se reportando à estética popular brasileira e ao decorativismo matissiano; Barrão, Marcos Chaves e Leda Catunda mantêm-se fiéis ao imaginário pop e às questões da urbanidade, para citar apenas alguns artistas.

- Uma pergunta provocativa: diversos artistas da Geração 80 têm hoje uma boa inserção no mercado internacional, mas me parece difícil estabelecer uma relação direta entre a qualidade estética de suas obras e as suas respectivas posições nos rankings de cotações. O mercado, numa certa medida, acaba sendo o principal árbitro das artes, e muitas vezes o êxito de um artista depende mais de sua capacidade de participar de uma determinada rede de relacionamentos que da relevância propriamente dita de sua obra (se é que uma obra tem relevância propriamente dita). Você concorda? Fale sobre isso

LIGIA: Não concordo que o mercado seja o principal árbitro da qualidade de obra alguma, em tempo algum, embora todos saibamos de sua capciosa infiltração na cultura, nos dias de hoje. Isso seria admitir a falência total da crítica. A demanda voraz do mercado pode, sim, dispersar a concentração e a capacidade reflexiva de um artista, na medida em que ele se deixe ser compelido a produzir compulsivamente para atendê-la. Mesmo assim, não acho que essa seja uma prerrogativa exclusiva do mercado, pois também museus e instituições participam hoje dessa demanda contumaz. O artista de agora tem que encontrar um equilíbrio, que o faça estar no mercado, sem perder a honestidade da obra.

- Você já escreveu/editou diversos livros de arte. Considera que a nossa bibliografia sobre arte e história da arte no Brasil ainda é escassa? Teve dificuldades em sua pesquisa para o livro geração 80 por falta de literatura publicada sobre o tema?

LIGIA: Se considerarmos tempos ainda bem recentes, podemos constatar que houve avanços consideráveis na editoria de livros de arte no Brasil. A bibliografia ainda é escassa, sem dúvida, principalmente quando pensamos que artistas do porte de Hercules Barsotti, por exemplo, não têm nada publicado. As editoras brasileiras começaram tarde, mas acho que o filão foi aberto e vai perdurar; há público consumidor, o que elas talvez não acreditassem. Na pesquisa para o meu livro, de fato deparei-me com pouca literatura disponível, principalmente no que concerne ao debate da pós-modernidade, que se manteve como eixo do discurso. Para isso, tive que recorrer a publicações internacionais. O que falta, precisamente, no Brasil, é a consciência das editoras para a parte teórica, e não apenas para os chamados “livros de arte”, cujo destino, muitas vezes, é a mesinha de centro da sala dos bacanas.

- Você desenvolve uma atividade regular como curadora. Fale sobre a sua trajetória na curadoria, o que te levou para esse caminho e como você entende o papel do curador hoje, sobretudo no Brasil?

LIGIA: O trabalho de curadoria vem sendo bastante questionado nos últimos tempos, principalmente pelo fato de alguns curadores se arvorarem o direito de ser, eles também, “artistas”, ou de interferir autoritariamente na leitura das obras. Não faz muito tempo, vi uma exposição no Pompidou, que me assustou: “Air de Paris”. Logo na entrada, havia uma sala com a obra de mesmo título, de Duchamp, colocada no centro da parede principal. Na mesma parede, como pano de fundo, o grafitti de outro artista; na frente, quase impedindo a visibilidade do trabalho de Duchamp, uma instalação com fios pendurados do teto; nas laterais, outro conjunto de obras que quase se fundiam umas às outras, enfim, um emaranhado que impedia a fruição de cada obra em particular e que, a meu ver, era quase um desrespeito aos próprios artistas e ao público. Em outra oportunidade, e na mesma instituição, vi uma exposição de fotografia, em que o curador dispôs um grupo enorme de fotos, coladas umas às outras, e do teto ao chão, ou seja, ele fez a sua própria “instalação”. Enfim, essas licenças poéticas deveriam ser, no mínimo, mais cuidadosas. Não sei se isso revela uma tendência na curadoria mundial, mas tem acontecido frequentemente. Não que eu seja contra saltos dados no tempo, trabalhos em vários gêneros ou outras associações curatoriais, como se percebe ultimamente, muito a reboque da redescoberta do pensamento de Aby Warburg, mas as coisas têm limite. Particularmente, tento manter meu oficio de curadora com a preocupação de certo rigor, que não se ajusta a tantas liberdades; elas não fazem parte, pelo menos até agora, de meus princípios. Espero que meu próprio trabalho tenha demonstrado isso.

- Como você enxerga a privatização do sistema da arte, com o crescimento de instituições privadas e a decadência dos museus públicos? A que você atribui esse fenômeno, quais são seus pontos negativos e positivos?

LIGIA: Um dia, Paulo Herkenhoff, quando ainda era curador do MoMA de Nova Iorque, me disse que a função de um curador de um museu daquele porte era também a de passar o pires pelas empresas americanas. Uma artista francesa amiga, Catherine Rebois, também disse que, cada vez mais, na França, o poder público não suporta as despesas com a cultura, e que a iniciativa privada vem sendo regularmente requisitada. Ela chegou a comentar que o modelo brasileiro do patrocínio incentivado acabaria sendo uma tendência imperiosa das instituições mundiais. Ora, não podemos ser anacrônicos e continuar a pensar o Estado como o único provedor, embora isso não justifique, absolutamente, a ausência do governo na condução das políticas públicas. As leis de incentivo fiscal ainda precisam ser aprimoradas, e essa discussão na sai da pauta da comunidade artística, mas não deixa de ser um caminho, e esse caminho não deve, ou não deveria, significar a total privatização do sistema de arte. Para isso, exatamente, o Estado seria regulador. Os interesses do marketing cultural é que devem ser rediscutidos, re-encaminhados, para que se evite problemas como o da decadência dos museus e se crie uma verdadeira consciência pública nesses agentes. Os intelectuais brasileiros estão mais operantes e temos assistido à sua pressão sobre os órgãos governamentais. Antigamente, o Ministério da Cultura era um organismo de segunda linha, porque a cultura era um território inteiramente desprezado, mas acho que isso está mudando, ou será que sou otimista?

- Qual você acha que deve ser o papel do Estado em relação ás artes plásticas? Que lições você traz de sua experiência profissional no MAM e na Funarte?

LIGIA: O MAM e a Funarte foram minhas escolas; todo o conhecimento de gestão e curadoria veio dessa experiência, pelo menos na parte de eficiência profissional. Mas eu considero que minha formação propriamente dita é quase autodidata e que se fez pelo caminho, em um aprendizado lento e cumulativo, que não se restringiu ao período acadêmico. A rigor, quem lida com a arte está sempre diante de um universo infinito de conhecimento, essa é a grande aventura. Mas a Funarte daquele tempo, por exemplo, acabou; hoje é uma instituição inexpressiva, sem rumos definidos, sem finalidade. Não se justifica que um órgão como a “Fundação Nacional de Arte” seja inoperante, sem vocação ou função na sociedade. Esses episódios ainda revelam a nossa pobreza institucional, a ineficácia do Estado; são as nossas vergonhas.

- Tendo escrito crítica de arte no jornal O Globo nos anos 80, você considera que de lá para cá a relevância da crítica na imprensa aumentou ou diminuiu, e por quê?

LIGIA: A crítica de arte na imprensa diminuiu muito por uns tempos, principalmente no Rio de Janeiro, mas parece estar sendo resgatada. Luiza Duarte e Marisa Florido trouxeram um olhar jovem e bem articulado para o Segundo Caderno de O Globo, por exemplo… tomara que permaneçam.

- A crítica, de uma forma geral, não perdeu poder no sistema da arte?

LIGIA: Não existe sistema de arte sem a crítica, isso seria paradoxal, já que a crítica é um dos pilares de sustentação desse sistema. Ele inclui a obra, a sua circulação e a sua crítica. Se retirarmos uma das partes, o sistema se desmantela. Não acho também que a crítica tenha perdido poder no sistema da arte atual, se é que podemos compreender sua ação como poder. Prefiro ver a crítica como um exercício do pensamento sobre a obra, e isso está muito além das atribuições de “formação de opinião”, com que é confundida corriqueiramente. Nas universidades, nas publicações, nos seminários, nacionais e internacionais, nunca se exerceu tanto a crítica como na era contemporânea; os pensadores da questão da arte e a dinâmica de suas formulações não cessam de se multiplicar.

- A penúltima Bienal foi muito criticada, e a atual recebeu um público bem inferior ao esperado. O modelo das Bienais está em crise? Por quê?

LIGIA: Na verdade, os grandes espetáculos, como as bienais, sempre foram estafantes. E, no fundo, não sabemos até que ponto são contribuições verdadeiras para o saber ou a formação do olhar do grande público. Eu, que sou da área, me sinto perdida, com a atenção pulverizada e sem capacidade de absorver tudo aquilo. Talvez as platéias estejam rejeitando esses grandes eventos, nos quais submergem atordoadas, sem assimilar o sentido mesmo do que vêm. Os milhões de dólares que são despejados nas bienais, principalmente em países periféricos como o Brasil, poderiam ter outro destino, como a aparelhagem dos museus, por exemplo. A megalomania, afinal, não abafa o sentido da pequenez que se esconde atrás dela.

Literatura feita de miudezas

qui, 18/11/10
por Luciano Trigo |
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Livia Garcia-Roza trabalha sempre com os mesmos e inesgotáveis temas: o universo feminino e os conflitos familiares. Em seu novo romance, O sonho de Matilde (Record, 160 pgs. R$32), ela mostra como o transtorno psicótico de uma personagem tem impacto numa família aparentemente tranqüila do interior de Minas, nos anos 60. Psicanalista de formação – como seu marido, o escritor de romances policiais Luiz Alfredo Garcia-Roza – Livia está bem equipada para trabalhar com essa matéria-prima.

Múltiplas vozes se entrelaçam na narrativa, que explora a tensão entre o sonho e a realidade, entre a convenção social e a desordem emocional: mais importante que o enredo – duas jovens irmãs que realizam o sonho de conhecer o Rio de Janeiro – é o delicado trabalho de linguagem que caracteriza a ficção de Livia desde a sua estréia, em 1995, com Quarto de menina. Nesta entrevista, Livia fala sobre o seu processo de criação e sobre a relação entre psicanálise e literatura.

- De onde nascem suas histórias? Fale sobre o processo de criação de O sonho de Matilde e de que maneira esse romance se articula com suas outras obras.

LIVIA GARCIA-ROZA: Qualquer fonte pode servir para o nascimento de uma história: um acontecimento, uma idéia, um sentimento, uma lembrança… É extremamente variável esse nascedouro. Matilde nasceu de um desejo de fazer uma abordagem literária da questão da psicose. Apesar de ter sido psicanalista durante muitos anos, somente após ter escrito alguns livros me senti à vontade para me aproximar do tema. Não vejo articulação direta desse livro com minhas obras anteriores, mas, pensando agora, é possível que esse tema já tivesse se insinuado em um ou outro livro, como em Cine Odeon, por exemplo.

- Suas narrativas são feitas de miudezas, e seus personagens são gente comum, as tramas importam pouco. Isso tem a ver com o fato de você estar mais interessada na linguagem em si do que nas tramas que sustentam a maioria dos romances?

LIVIA: O mundo nos oferece coisas e acontecimentos. E os acontecimentos das nossas vidas diárias não são “grandes acontecimentos.” São grandes dependendo da afetividade neles implicada, mas em si, são ordinários, no sentido do cotidiano. E a vida, na verdade, é essa miudeza. Coisas miúdas e acontecimentos miúdos. A parte isso, é na  linguagem que reside o meu maior interesse no fazer literário.

- Matilde é inspirada em alguém? Em que medida você usa a vida real como matéria-prima?

LIVIA: Matilde era uma ilustre desconhecida. Nasceu nas páginas de um caderno e depois foi alçada, já como personagem, à tela do computador. Quanto ao ato de escrever, costumo fazer um apossamento das miudezas do real, do que ocorre ao meu redor, e vou fazendo anotações para depois recolher essas miudezas, para, a partir delas e com elas, construir meus personagens e a própria história.

- Os laços familiares são um ingrediente forte da trama, bem como o sonho das duas irmãs, que vivem no interior, de conhecer o Rio de Janeiro. Como você enxerga as transformações na família? É uma instituição em crise? Da mesma maneira, os sonhos das moças do interior continuam os mesmos de 20 ou 30 anos atrás? por quê?

LIVIA: Os laços familiares são o meu tema por excelência. Meus romances são centrados nas relações familiares; e os conflitos familiares são inesgotáveis. Digamos que a família é a nossa pedra de Sísifo. Quanto às transformações da família, são lentas, porque apesar de ela ser o lugar das crises, é também o lugar de perpetuação dos valores; ela é conservadora, por princípio. Em função da televisão, da internet etc, os anseios das moças do interior sofreram transformações, mas apesar disso o ideal romântico do casamento e da maternidade permanecem.

- A sua prosa é altamente delicada e poética, o que provoca a antiga questão da existência de uma literatura especificamente feminina. É difícil imaginar seus textos sendo escritos por um homem. O que você acha disso? Com que autoras ou autores você dialoga e em que medida o gênero influencia o seu (deles) estilo? 

LIVIA: O feminino participa de ambos os gêneros. Só que a alma feminina de alguns homens não veio à tona, assim como a de algumas mulheres, diga-se de passagem. Sendo assim, a literatura não tem sexo, o que não impede a mulher de ter sua temática própria. Conscientemente não dialogo com outros autores, apesar das muitas leituras que fiz e continuo fazendo, certamente alguns deles me influenciaram, mas não sou capaz de identificá-los. A verdadeira influência é silenciosa.

- Uma das personagens é psicótica. Fale sobre a relação da sua ficção com a psicanálise. Em que medida a sexualidade, o erotismo e o desejo – e também os medos – são ingredientes importantes de suas histórias?

LIVIA: Uma das personagens do livro é afetada pela doença. A psicose não atinge apenas um membro da família, ela desestrutura todo o ambiente familiar. O que resta é a intranqüilidade, quando não o desespero. Essa é a história de O sonho de Matilde. Meu esforço como escritora — além do mencionado interesse primordial pela linguagem —, é procurar manter separadas as duas práticas: a psicanalítica e a literária. A morte e a sexualidade — o que inclui o medo e o desejo — são a matéria-prima não só das minhas histórias, mas da literatura em geral.

- Em que medida a internet e as novas tecnologias estão afetando o fazer literário e a relação do escritor com seus leitores?

LIVIA: A internet é uma rede sem dono, sem locus, pura articulação de usuários, um universo amplo e ao mesmo tempo limitado, onde dispomos de poucos caracteres para escrever – estou pensando aqui apenas nas redes de relacionamento, no Twitter, no Facebook etc. Sem dúvida ela afetou o fazer literário, de diversas maneiras. Produzindo novos leitores, e também escritores. Pessoas que antes não se arriscavam a escrever atualmente estão tentando fazê-lo, pela facilidade que a internet proporciona. Não necessariamente os textos redundam em literatura, mas pelo menos a escrita passou a fazer parte do mundo delas. Na internet escreve-se, de maneira geral, para desconhecidos. É uma aventura da escrita. Sem contar que para nós, escritores, é um lugar de divulgação do próprio trabalho, como também de retorno, numa experiência direta e na maioria das vezes cotidiana.

- Como você avalia a evolução da sua literatura desde a estréia com Quarto de Menina, em 1995?

LIVIA: Faço uma avaliação positiva do meu trabalho. O que eu sinto desde o primeiro livro até o mais recente foi que houve um aprimoramento dos meus textos e ao mesmo tempo a construção de uma temática própria, uma árdua e persistente aprendizagem de contar histórias, na tentativa de, através delas, alcançar a excelência da arte.

TRECHO:

“Durante o percurso até a clínica mal nos aguentávamos; a mãe, caída para trás, com a boca aberta, largada dentro do carro, nem se incomodara com a saia, que ficara levantada acima dos joelhos ao entrar no táxi. Com cuidado, puxei-a para baixo, e ela nem notou. O pai tapava o rosto com a mão, gesto que fazia quando dormia fora da cama, e a cabeça recostara-se contra o vidro da janela. O motorista caía com o carro em quase todos os buracos, fazendo a cabeça do pai trepidar contra o vidro; nesses momentos, ele acordava e dizia que o Rio de Janeiro era uma metrópole cheia de altos e baixos.”

Livros discutem o cinema brasileiro como negócio

qua, 10/11/10
por Luciano Trigo |
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A boa fase que o cinema brasileiro atravessa, com índices inéditos de ocupação das salas num mercado tradicionalmente dominado pelo produto estrangeiro, não se deve apenas à qualidade ou ao apelo comercial de filmes como Tropa de Elite 2, de José Padilha, ou Nosso Lar, de Wagner de Assis, que juntos já fizeram mais de 12 milhões de espectadores. Ela se explica também pela consolidação da indústria e pela profissionalização e amadurecimento de seus agentes, em todos os elos da sua cadeia econômica – produção, distribuição e exibição. Mas a literatura sobre cinema no Brasil, além de pequena, é quase totalmente dominada pela discussão sobre seus aspectos estéticos, a linguagem cinematográfica ou a análise crítica da filmografia de determinados diretores. Mesmo nos cursos de graduação e pós-graduação, aborda-se o cinema sobretudo como arte, raramente como negócio.

Essa deficiência começa aos poucos a ser sanada pela própria necessidade de se abastecer o mercado com profissionais tecnicamente qualificados para lidar com os complexos desafios do setor audiovisual. Sinal desse movimento é o lançamento simultâneo de dois livros: Film Business – O Negócio do Cinema, de Iafa Britz, Rodrigo Saturnino Braga e Luiz Gonzaga Assis de Luca, e Tudo que você queria saber sobre a comercialização de filmes nacionais, mas não tinha a quem perguntar, de Marta Machado.

Nascido de um curso promovido pela Fundação Getúlio Vargas já há sete anos,  Film Business – O Negócio do Cinema (Campus Elsevier, 208 pgs. R$55) é escrito por três especialistas da área: a produtora Iafa Britz, o diretor geral da Sony Pictures no Brasil Rodrigo Saturnino Braga e Luiz Gonzaga de Luca, com passagens pela Embrafilme e pelo Grupo Severiano Ribeiro. Com um texto bastante pessoal, Iafa fala sobre a difícil atividade da produção cinematográfica, que requer planejamento, organização e persistência, além da capacidade de lidar com equipes que chegam muitas vezes a 150 pessoas, e de conhecimentos profundos sobre legislação autoral e de mecanismos de captação de recursos.

Rodrigo traça um panorama abrangente da distribuição no Brasil, com uma esclarececora retrospectiva histórica e uma análise fria de conflitos entre distribuidores e exibidores que levaram mais de uma empresa à falência, no passado. Aborda, também, o impacto do m ultiplex no setor e a importância crescente do mercado de vídeo doméstico, em transformação acelerada e com um a perspectiva de mudanças radicais provocadas pela convergência digital, que abre novas possibilidades de consumo de obras audiovisuais. Por fim, Gonzaga de Luca comenta variados aspectos da atividade de exibição nas salas de cinema, sua lógica econômica e a influência de fatores como a meia-entrada, a cota de tela para filmes nacionais e até a venda de pipoca  sobre o negócio.

Para o diagnóstico ficar completo, faltou talvez um quarto capítulo, sobre a participação do Estado na viabilzação econômica da atividade cinematográfica – que assumiu caraterísticas diferentes ao longo da História e continua sendo um fator decisivo para indústria. Ainda assim, trata-se de  um livro  muito útil, por compartilhar experiências e conhecimentos indispensáveis para quem quiser entender a situação do cinema brasileiro e suas perspectivas futuras.

Organizado na forma de perguntas e respostas que cobrem as dúvidas mais comuns ligadas á distribuição e exibição de filmes de longa-metragem,  Tudo que você queria saber… nasceu da experiência de Marta Machado, produtora da Otto Desenhos Animados, na comercialização do longa de animação Wood & Stock – Sexo, orégano e Rock’n'roll, em 2007. Aflita com a escassa bibliografia sobre o assunto, Marta decidiu ela própria escrever um guia, com base em entrevistas com profissionais da área. Ao todo são 141 perguntas, com respostas altamente esclarecedoras, porque fundamentadas na prática da autora. Sinal de que também o ramo editorial atravessa um momento de transição em suas formas de comercialização, o livro de Marta pode ser comprado no site www.tudosobrefimenacional.com.br em versões impressa, digital e áudio-livro.

Olinda e Ouro Preto preparam duas festas para a literatura

dom, 07/11/10
por Luciano Trigo |
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Duas cidades históricas, duas festas literárias. A partir desta quarta-feira, e até o feriado de 15 de novembro, Olinda e Ouro Preto vão ser palcos de dois eventos que já fazem parte, ao lado da FLIP, em Paraty , da agenda de programas culturais obrigatórios ligados às letras: A FLIPORTO e o Fórum das Letras.

Fliporto

Já em sua sexta edição, a FLIPORTO – Festa Literária Internacional de Pernambuco tem nova sede – Olinda no lugar de Porto de Galinhas – e homenageará este ano a escritora Clarice Lispector, além de dedicar várias mesas ao tema ‘Literatura e presença judaica no mundo ibero-americano’. Como uma programação caprichada, o evento reunirá autores estrangeiros, como Ricardo Piglia, Alberto Manguel, Benjamin Mozer, Camille Paglia e Eva Schloss, e nacionais, como Moacyr Scliar, Milton Hatoun, Tatiana Salemn, Alberto Dines, Contardo Calligaris, Edney Silvestre, Guilherme Fiúza e Marcia Tiburi.

A expectativa dos organizadores é atrair a Olinda de 25 mil a 30 mil pessoas, o que consolidaria a FLIPORTO como o maior evento literário do país. Além das 20 mesas agendadas na Tenda montada no Parque do do Carmo, o Cine Fliporto, a Fliporto Criança, a Fliporto Gastronomia e a Fliportinho oferecerão atrações em diversos pontos da cidade.

A programação completa das mesas principais e dos eventos paralelos da FLIPORTO 2010 pode ser consultada aqui.

Fórum das Letras

Já o Fórum das Letras, este ano dedicado ao tema ‘África e países de língua portuguesa’ levará a Ouro Preto João Ubaldo Ribeiro, Adélia Prado, Ferreira Gullar, Mia Couto, Affonso Romano de Sant’Anna, Luandino Vieira, Laurentino Gomes, Raimundo Carrero, Paulo Lins, João Paulo Cuenca, Paulo Markun e Ondjaki.

Promovido há seis anos pela Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP e idealizado pela professora Guiomar de Grammont, o Fórum das Letras também promove diversos eventos paralelos, como a Via Sacra Poética e o Ciclo Bravo! de Jornalismo e Literatura.

A programação completa do Fórum das Letras pode ser conferida aqui.



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