Reunindo 123 artistas, a exposição Como vai você, Geração 80?, realizada em 1984 no Parque do Lage, no Rio de Janeiro, foi um divisor de águas na arte brasileira, aglutinando dezenas de nomes que mais tarde se tornariam internacionalmente reconhecidos. Depois do rigor conceitual que prevaleceu nos anos 60 e 70, havia ali um impulso libertário, que se manifestava em novos caminhos da pintura e no diálogo livre com diferentes linguagens do passado e do cenário internacional. Cristalizava-se ali, por outro lado, a transição para um novo sistema da arte no Brasil, mais profissionalizado e vinculado às forças do mercado. Sinal dos tempos: com a redemocratização, o mesmo movimento de euforia que libertava a arte brasileira do papel de crítica social e política que ela exerceu durante a ditadura militar envolvia os artistas numa dinâmica neoliberal globalizada, que até hoje dá as cartas no mundo da arte.
Organizado pela crítica e curadora Ligia Canongia, o livro Anos 80 – Embates de uma geração (editora Barleu/Francisco Alves, 244 pgs. R$32) faz um balanço ambicioso e abrangente dessa geração. Reunindo reproduções de obras de artistas como Adriana Varejão, Beatriz Milhazes, Daniel Senise, Jorge Guinle, Leonilson, Luiz Zerbini, Nuno Ramos e Vik Muniz e textos de Agnaldo Farias, Fernando Cocchiarale, Frederico Morais, Ricardo Basbaum e Ronaldo Brito, além de um longo ensaio crítico da própria Ligia, também autora de O legado dos anos 60 e 70 (Jorge Zahar Editor, 96 pgs. R$19), entre outras obras fundamentais para se entender a arte brasileira hoje. O lançamento de Anos 80 – Embates de uma geração acontecerá nesta terça-feira, 23, na Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema, a partir das 19h.
Nesta entrevista, Ligia Canongia analisa a importância e as especificidades da Geração 80, discute a atividade da curadoria e comenta a crise do modelo das Bienais, entre outros temas. Fala, ainda, sobre o emergente mercado de livros de arte no país, no qual se insere o lançamento de Anos 80: a Barléu, editora criada por Carlos Leal e exclusivamente dedicada à arte brasileira, e já tem no prelo mais dez 12 títulos, dois deles reunindo as obras dos artistas José Bechara e Iole de Freitas.
- Você também é autora de um pequeno mas importante livro sobre o legado dos anos 60 e 70 nas artes plásticas. De que maneira a Geração 80 rompeu com esse legado, que novas práticas, questões e valores ela trouxe, e de que novas maneiras os artistas dessa geração se articularam com o mercado?
LIGIA CANONGIA: Os anos 80 pontuaram um momento mundial em que se recrudesceu o debate sobre os valores da modernidade, na tentativa de romper a evolução historicista que se estabeleceu no âmago mesmo do projeto moderno. Buscou-se discutir a legitimidade das autonomias e das especializações modernistas, com a contrapartida do ecletismo e do pluralismo, que visavam à crítica de certa intransigência das linguagens. A idéia era justamente desbloquear os ciclos autônomos do modernismo, e a estratégia imediata foi o rompimento da noção de “estilo”, com a conseqüente mistura e colisão dos gêneros da tradição. Não apenas o legado moderno estava em xeque, como ainda as neovanguardas recentes – a pop, a arte conceitual e o minimalismo, que vigoraram nas décadas precedentes. Era a entrada definitiva da noção de pós-modernidade, que já se esboçava desde a Pop americana. No Brasil, o movimento que mais se aproximava do espírito dos anos 80 era o Tropicalismo, com o qual muitos artistas se identificavam, e que já havia se insurgido contra os conceitos de pureza de meios e sistemas lingüísticos fechados. Com o Tropicalismo e os anos 80, compõem-se dois segmentos históricos brasileiros empenhados no fenômeno da hibridização dos estilos e na discussão do racionalismo moderno. O que entrava em jogo, então, era não somente o questionamento da estética moderna, mas o surgimento de um pós-capitalismo, atrelado ao consumo de massa, à tecnologia eletrônica e aos imperativos do mercado, que muitos consideravam, inclusive, estar ressonando negativamente sobre o próprio perfil artístico da época. O fato de a geração dos anos 80 ter sido assimilada rapidamente pelo mercado foi visto, naquele momento, e em caráter internacional, como reflexo da voracidade mercantil da era yuppie e da ideologia neoliberal, que absorveram a própria obra de arte no roldão do consumo desenfreado. Na verdade, os artistas dos anos 80, como também os das gerações que se seguiram até hoje, foram e estão sendo vítimas dessa avidez comercial.
- Dá para dizer que a Geração 80 foi o último movimento coletivo importante na arte brasileira – em contraponto à pulverização/pluralidade da produção posterior? Que comparação é possível fazer entre a arte brasileira dos anos 80 e a dos anos 2000?
LIGIA: A pulverização e a pluralidade foram características, mesmo que não exclusivas, dos anos 80; as décadas posteriores apenas deram prosseguimento a questões já aventadas anteriormente. Não havia mais ali o intuito de configurar um movimento, pelo contrário, os anos 80 debateram-se contra regimes, estilos ou programas, tal como ocorrera na era moderna. A novíssima geração dos anos 2000 assemelha-se, sim, àquela dos 80, não apenas porque tornaram a revigorar a pintura, como, principalmente, por estarem envolvidos no reviramento da História da arte, acoplando referências e citações simultâneas e até contraditórias numa mesma obra. Como Jorge Guinle assinalou na década de 1980, a História tornou-se um banco de dados a ser reciclado livremente. Para isso, Hans Belting declara que a crítica contemporânea tem que se desgarrar dos parâmetros tradicionais e pensar-se, ela mesma, como uma “história em processo”.
- Nos anos 60 e 70, até por circunstâncias históricas, o engajamento político dos artistas foi intenso. Mesmo os artistas conceituais vinculavam sua produção a um comentário sobre a realidade do país (o que foi aliás uma característica da arte conceitual em toda a América Latina, na época). A Geração 80 não representou uma alienação da arte em relação à política?
LIGIA: Acho que a geração dos anos 80 não estava, absolutamente, desvinculada de um processo histórico ou político; essa é, inclusive, uma das questões que trabalho no livro. O contexto social do país era outro, e as obras de arte não tinham mais por que refletir a opressão das décadas da ditadura. A produção dos anos 80 assumiu uma postura diversa no plano ideológico, que se conjugava com a redemocratização. Sua ideologia não estava mais comprometida com a crítica social, no sentido estrito, mas com a questão cultural, que é sempre social em visada mais ampla. O que se discutia era a dispersão das imagens contemporâneas, a velocidade da comunicação na era das redes e do multiculturalismo, e a simultaneidade das referências históricas, que não cabiam mais nos paradigmas do passado. Além disso, não considero que a obra de arte é política apenas quando aborda explicitamente o plano político, aliás, o parti-pris dessa última Bienal. Ela é política em sua natureza, como qualquer outra manifestação do homem no contexto da História; o discurso político não precisa ser literal. Os artistas dos anos 80 desconcertaram os parâmetros da crítica modernista e a legitimação de valores que se pretendiam universalmente válidos, o que mexeu profundamente com a “política” da própria arte, de forma anárquica e desconcertante. Sua “revolta” era outra. Isso tinha a ver não somente com a desconstrução das idéias de hierarquia e hegemonia, mas também com o funcionamento das novas sociedades globalizadas, cujos efeitos já se tornavam incontornáveis.
- Qual era a situação da pinturabrasileira no momento da emergência da Geração 80, e o que explica o retorno à pintura promovido por muitos de seus artistas?
LIGIA: Como um dos objetivos críticos da década de 1980 era operar uma reversão de valores na tradição histórica, a pintura oferecia-se como o ponto nodal para o debate, justamente por ser o gênero mais tradicional. Ela significava não somente um retorno ao contato manual e corporal do artista com seus meios – em rebatimento aos aparatos tecnológicos, como um contra-golpe nas convenções pictóricas ocidentais, através de um desabusado ecletismo. Isto já se sentia desde os anos 60, como, por exemplo, nas telas de Rauschenberg, quando ele uniu aspectos expressionistas à realidade mundana e impessoal da Pop. No Brasil, a pintura não foi um ponto forte no período precedente, ao contrário, os anos 70 primaram pelo experimentalismo com as novas mídias e a produção de objetos e instalações. O retorno à pintura, de alguma forma, também representou certo esgotamento do caráter eminentemente conceitual anterior, que Guinle, de maneira irônica, chamou de “brinquedos cerebrais”.
- O percurso posterior dos protagonistas da geração 80 foi uniforme? Se não, quais os diferentes caminhos seguidos mais relevantes?
LIGIA: Quando vemos hoje o desdobramento da obra dos artistas dos anos 80, constatamos que, na maioria das vezes, não houve alterações estruturais nas questões que já lançavam na época. Se observarmos, por exemplo, o trabalho de Zerbini, Barrão ou Nuno Ramos, encontraremos certamente, não um percurso linear, mas determinados procedimentos estéticos e formulações que não contrariam de forma alguma suas premissas originais. Tirando-se o amadurecimento natural que toda obra jovem apresenta ao longo de sua trajetória, podemos perceber que já havia, à época, segurança no que propunham. Adriana Varejão nunca se desligou de sua referência ao barroco; Beatriz Milhazes continua se reportando à estética popular brasileira e ao decorativismo matissiano; Barrão, Marcos Chaves e Leda Catunda mantêm-se fiéis ao imaginário pop e às questões da urbanidade, para citar apenas alguns artistas.
- Uma pergunta provocativa: diversos artistas da Geração 80 têm hoje uma boa inserção no mercado internacional, mas me parece difícil estabelecer uma relação direta entre a qualidade estética de suas obras e as suas respectivas posições nos rankings de cotações. O mercado, numa certa medida, acaba sendo o principal árbitro das artes, e muitas vezes o êxito de um artista depende mais de sua capacidade de participar de uma determinada rede de relacionamentos que da relevância propriamente dita de sua obra (se é que uma obra tem relevância propriamente dita). Você concorda? Fale sobre isso
LIGIA: Não concordo que o mercado seja o principal árbitro da qualidade de obra alguma, em tempo algum, embora todos saibamos de sua capciosa infiltração na cultura, nos dias de hoje. Isso seria admitir a falência total da crítica. A demanda voraz do mercado pode, sim, dispersar a concentração e a capacidade reflexiva de um artista, na medida em que ele se deixe ser compelido a produzir compulsivamente para atendê-la. Mesmo assim, não acho que essa seja uma prerrogativa exclusiva do mercado, pois também museus e instituições participam hoje dessa demanda contumaz. O artista de agora tem que encontrar um equilíbrio, que o faça estar no mercado, sem perder a honestidade da obra.
- Você já escreveu/editou diversos livros de arte. Considera que a nossa bibliografia sobre arte e história da arte no Brasil ainda é escassa? Teve dificuldades em sua pesquisa para o livro geração 80 por falta de literatura publicada sobre o tema?
LIGIA: Se considerarmos tempos ainda bem recentes, podemos constatar que houve avanços consideráveis na editoria de livros de arte no Brasil. A bibliografia ainda é escassa, sem dúvida, principalmente quando pensamos que artistas do porte de Hercules Barsotti, por exemplo, não têm nada publicado. As editoras brasileiras começaram tarde, mas acho que o filão foi aberto e vai perdurar; há público consumidor, o que elas talvez não acreditassem. Na pesquisa para o meu livro, de fato deparei-me com pouca literatura disponível, principalmente no que concerne ao debate da pós-modernidade, que se manteve como eixo do discurso. Para isso, tive que recorrer a publicações internacionais. O que falta, precisamente, no Brasil, é a consciência das editoras para a parte teórica, e não apenas para os chamados “livros de arte”, cujo destino, muitas vezes, é a mesinha de centro da sala dos bacanas.
- Você desenvolve uma atividade regular como curadora. Fale sobre a sua trajetória na curadoria, o que te levou para esse caminho e como você entende o papel do curador hoje, sobretudo no Brasil?
LIGIA: O trabalho de curadoria vem sendo bastante questionado nos últimos tempos, principalmente pelo fato de alguns curadores se arvorarem o direito de ser, eles também, “artistas”, ou de interferir autoritariamente na leitura das obras. Não faz muito tempo, vi uma exposição no Pompidou, que me assustou: “Air de Paris”. Logo na entrada, havia uma sala com a obra de mesmo título, de Duchamp, colocada no centro da parede principal. Na mesma parede, como pano de fundo, o grafitti de outro artista; na frente, quase impedindo a visibilidade do trabalho de Duchamp, uma instalação com fios pendurados do teto; nas laterais, outro conjunto de obras que quase se fundiam umas às outras, enfim, um emaranhado que impedia a fruição de cada obra em particular e que, a meu ver, era quase um desrespeito aos próprios artistas e ao público. Em outra oportunidade, e na mesma instituição, vi uma exposição de fotografia, em que o curador dispôs um grupo enorme de fotos, coladas umas às outras, e do teto ao chão, ou seja, ele fez a sua própria “instalação”. Enfim, essas licenças poéticas deveriam ser, no mínimo, mais cuidadosas. Não sei se isso revela uma tendência na curadoria mundial, mas tem acontecido frequentemente. Não que eu seja contra saltos dados no tempo, trabalhos em vários gêneros ou outras associações curatoriais, como se percebe ultimamente, muito a reboque da redescoberta do pensamento de Aby Warburg, mas as coisas têm limite. Particularmente, tento manter meu oficio de curadora com a preocupação de certo rigor, que não se ajusta a tantas liberdades; elas não fazem parte, pelo menos até agora, de meus princípios. Espero que meu próprio trabalho tenha demonstrado isso.
- Como você enxerga a privatização do sistema da arte, com o crescimento de instituições privadas e a decadência dos museus públicos? A que você atribui esse fenômeno, quais são seus pontos negativos e positivos?
LIGIA: Um dia, Paulo Herkenhoff, quando ainda era curador do MoMA de Nova Iorque, me disse que a função de um curador de um museu daquele porte era também a de passar o pires pelas empresas americanas. Uma artista francesa amiga, Catherine Rebois, também disse que, cada vez mais, na França, o poder público não suporta as despesas com a cultura, e que a iniciativa privada vem sendo regularmente requisitada. Ela chegou a comentar que o modelo brasileiro do patrocínio incentivado acabaria sendo uma tendência imperiosa das instituições mundiais. Ora, não podemos ser anacrônicos e continuar a pensar o Estado como o único provedor, embora isso não justifique, absolutamente, a ausência do governo na condução das políticas públicas. As leis de incentivo fiscal ainda precisam ser aprimoradas, e essa discussão na sai da pauta da comunidade artística, mas não deixa de ser um caminho, e esse caminho não deve, ou não deveria, significar a total privatização do sistema de arte. Para isso, exatamente, o Estado seria regulador. Os interesses do marketing cultural é que devem ser rediscutidos, re-encaminhados, para que se evite problemas como o da decadência dos museus e se crie uma verdadeira consciência pública nesses agentes. Os intelectuais brasileiros estão mais operantes e temos assistido à sua pressão sobre os órgãos governamentais. Antigamente, o Ministério da Cultura era um organismo de segunda linha, porque a cultura era um território inteiramente desprezado, mas acho que isso está mudando, ou será que sou otimista?
- Qual você acha que deve ser o papel do Estado em relação ás artes plásticas? Que lições você traz de sua experiência profissional no MAM e na Funarte?
LIGIA: O MAM e a Funarte foram minhas escolas; todo o conhecimento de gestão e curadoria veio dessa experiência, pelo menos na parte de eficiência profissional. Mas eu considero que minha formação propriamente dita é quase autodidata e que se fez pelo caminho, em um aprendizado lento e cumulativo, que não se restringiu ao período acadêmico. A rigor, quem lida com a arte está sempre diante de um universo infinito de conhecimento, essa é a grande aventura. Mas a Funarte daquele tempo, por exemplo, acabou; hoje é uma instituição inexpressiva, sem rumos definidos, sem finalidade. Não se justifica que um órgão como a “Fundação Nacional de Arte” seja inoperante, sem vocação ou função na sociedade. Esses episódios ainda revelam a nossa pobreza institucional, a ineficácia do Estado; são as nossas vergonhas.
- Tendo escrito crítica de arte no jornal O Globo nos anos 80, você considera que de lá para cá a relevância da crítica na imprensa aumentou ou diminuiu, e por quê?
LIGIA: A crítica de arte na imprensa diminuiu muito por uns tempos, principalmente no Rio de Janeiro, mas parece estar sendo resgatada. Luiza Duarte e Marisa Florido trouxeram um olhar jovem e bem articulado para o Segundo Caderno de O Globo, por exemplo… tomara que permaneçam.
- A crítica, de uma forma geral, não perdeu poder no sistema da arte?
LIGIA: Não existe sistema de arte sem a crítica, isso seria paradoxal, já que a crítica é um dos pilares de sustentação desse sistema. Ele inclui a obra, a sua circulação e a sua crítica. Se retirarmos uma das partes, o sistema se desmantela. Não acho também que a crítica tenha perdido poder no sistema da arte atual, se é que podemos compreender sua ação como poder. Prefiro ver a crítica como um exercício do pensamento sobre a obra, e isso está muito além das atribuições de “formação de opinião”, com que é confundida corriqueiramente. Nas universidades, nas publicações, nos seminários, nacionais e internacionais, nunca se exerceu tanto a crítica como na era contemporânea; os pensadores da questão da arte e a dinâmica de suas formulações não cessam de se multiplicar.
- A penúltima Bienal foi muito criticada, e a atual recebeu um público bem inferior ao esperado. O modelo das Bienais está em crise? Por quê?
LIGIA: Na verdade, os grandes espetáculos, como as bienais, sempre foram estafantes. E, no fundo, não sabemos até que ponto são contribuições verdadeiras para o saber ou a formação do olhar do grande público. Eu, que sou da área, me sinto perdida, com a atenção pulverizada e sem capacidade de absorver tudo aquilo. Talvez as platéias estejam rejeitando esses grandes eventos, nos quais submergem atordoadas, sem assimilar o sentido mesmo do que vêm. Os milhões de dólares que são despejados nas bienais, principalmente em países periféricos como o Brasil, poderiam ter outro destino, como a aparelhagem dos museus, por exemplo. A megalomania, afinal, não abafa o sentido da pequenez que se esconde atrás dela.