Ficção de Adriana Lisboa lança um olhar estrangeiro sobre o mundo
Será lançado na noite desta terça-feira, na Livraria da Travessa do Shopping Leblon, o novo romance da escritora carioca Adriana Lisboa, ‘Azul-Corvo’ (Rocco, 224 pgs). O título é inspirado num verso de Marianne Moore, e a história tem como protagonista Evangelina, jovem que, após a morte da mãe, viaja para os Estados Unidos, onde nasceu. em busca do pai e da própria identidade: a perda, o exílio e o pertencimento são os eixos temáticos da narrativa. Na companhia do ex-padrasto, Fernando, que participou da Guerrilha do Araguaia, e de um menino salvadorenho, Evangelina reinventa sua própria história a partir das memórias de personagens em trânsito, numa viagem pelo tempo e pelo espaço.
Graduada em música pela Uni-Rio e com doutorado em literatura comparada pela Uerj, Adriana foi pesquisadora-visitante na Universidade do Texas e na Universidade do Novo México. Ganhadora do Prêmio José Saramago por seu romance de estréia, ‘Sinfonia em Branco’ (2001), ela já tem livros publicados em oito países. Vivendo nos Estados Unidos há quatro anos, Adriana se dedica regularmente à tradução e também está envolvida no projeto ‘A volta ao mundo em 190 histórias’, coletânea que adapta para o público infanto-juvenil lendas populares de diversos continentes, com organização de Celina Portocarrero. O primeiro volume, sobre a África, reunirá 60 ‘recontos’ e deve ser lançado em março do ano que vem.
- ‘Azul-Corvo’ é um romance marcado pela experiência de viver nos Estados Unidos. Fale sobre o processo de criação do livro e sua relação com o sentimento de ser estrangeira.
ADRIANA LISBOA: Na verdade, ‘Azul-corvo’ tenta ir além da minha própria experiência, e por isso escolhi como personagens principais uma adolescente, um ex-guerrilheiro de quase 60 anos e um menino de 9 – ou seja, “não-eus”. Embora a minha experiência seja minha, e o universo sobre o qual eu escrevo seja necessariamente aquele que passa pelos meus olhos ou pela minha imaginação, acho que o maior prazer em escrever ficção está em explorar situações que não são as da minha própria vida. Sobre ser estrangeira, é uma situação que hoje para mim tem dois significados. Sou estrangeira nos Estados Unidos, pelos motivos óbvios, embora viva lá já há quatro anos. E acabo virando, num certo sentido, meio estrangeira no Brasil também, porque morar fora significa perder a relação cotidiana com o país e seus hábitos – por mais que leia jornal brasileiro pela internet, por mais que escreva em português e fale português dentro de casa. Mas não é uma situação que me desagrade: ela me confere certo olhar curioso sobre um e outro países que de outro modo eu não teria, e eu me surpreendo com coisas que para outras pessoas talvez já tenham virado meros pressupostos.
- Como nasceram os personagens principais? Por exemplo, quem e que situações inspiraram Evangelina?
ADRIANA: Os três personagens do livro surgiram de um desejo de escrever sobre uma trinca de amigos improváveis. Investigar como eles se relacionariam com tantas diferenças de idade e história pregressa, e como seria entre eles esse afeto no osso, sem adereços, sem interesses óbvios em comum. A partir disso, e em busca de algo que justificasse a fuga de um deles do Brasil, tive a ideia do ex-guerrilheiro Fernando. Que me permitiu também olhar para um tema pelo qual sempre tive curiosidade, o da Guerrilha do Araguaia. Os outros dois personagens, Vanja e o salvadorenho Carlos, por serem também imigrantes, não perdem a capacidade de levar sustos diante do que vivem e vêem todos os dias. Vanja, que tem poucos elos com o mundo, está procurando o pai. E Carlos faz parte de uma família de imigrantes ilegais, com a qual são se identifica muito, e sua amizade com aqueles dois brasileiros é uma espécie bóia salva-vidas. Mas nenhum dos três foi inspirado por pessoas reais.
- Li que o título foi inspirado num poema de Marianne Moore, “The Fish”, e de fato você tem em comum com essa poeta o cuidado na escolha das palavras. Outro livro seu, ‘Um beijo de Colombina’, é fortemente marcado pela poesia de Manuel Bandeira. Você considera que a sua prosa se aproxima da poesia? Já pensou em escrever poesia?
ADRIANA: Leio poesia sempre. Sou leitora e fã de vários poetas contemporâneos brasileiros. Manuel Bandeira deu o tom de ‘Um beijo de colombina’, Bashô deu o tom de ‘Rakushisha’, e acho que a poesia aparece na minha prosa através de, como você disse, um cuidado consciente com a escolha não só das palavras mas dos cortes, da pontuação etc. Eu também escrevo poesia, e desde muito cedo, mas ainda não pensei a sério na possibilidade de publicar.
- Seus cinco romances parecem compor um corpus bastante coerente. O que mudou para você, como escritora, desde ‘Sinfonia em branco’? Os motores da sua escrita continuam os mesmos?
ADRIANA: Embora você fale em coerência, e eu aprecie essa ideia, vejo também os cinco romances como obras bastante específicas, ligadas a momentos particulares da minha vida, das minhas leituras, das minhas ideias e de um desejo de lidar com “materiais” diferentes. Mas os motores da escrita não mudaram muito. Simplificaram-se, talvez. Hoje sou menos ambiciosa, em termos daquilo que escrevo, do que era quando publiquei meu primeiro livro, há 11 anos. De todo modo, escrever é olhar para o mundo e reciclar aquilo que vejo, é tentar não esquecer. Não é uma busca por respostas a nada, porque acho que elas não existem. A verdade é que falar sobre o que move a escrita é mais difícil do que a própria escrita.
- Seus textos costumam ser pontuados por uma certa melancolia, talvez por lidarem bastante com a memória e com a recuperação/reinvenção do passado. Pessoalmente, além de delicadeza e elegância, você também passa uma vibração ligeiramente triste e nostálgica. Você concorda? Em que medida ficar mais velha está reforçando ou atenuando esse traço, na vida e na obra?
ADRIANA: Como diz com muita sabedoria o escritor André de Leones, a gente não escreve como quer, a gente escreve como pode. Não tenho qualquer intenção consciente de que meu texto seja de um jeito ou de outro, elegante ou não, melancólico ou não, e muitas vezes a própria palavra delicadeza me incomoda um pouco (não quando ela se aproxima da ideia de leveza, mas quando se aproxima da ideia de fragilidade). Mas assim como o timbre da minha voz é como é, e a cor dos meus olhos é como é, as características do meu texto são o que são, e eu as acompanho da melhor forma possível. O poder, o domínio que exerço sobre aquilo que escrevo não é absoluto. É possível que haja coisas que a gente conquista com a idade, sim, mas nem sempre envelhecer equivale a amadurecer. Conheço adolescentes de 40 anos… Amadurecimento não acontece naturalmente, ele se trabalha e se conquista. E dói.
- Fale sobre suas atividades paralelas, como tradutora, como roteirista, como fotógrafa e, segundo li, também como cantora..
ADRIANA: Começando do fim, o primeiro trabalho que tive na vida foi como cantora. Eu tinha 18 anos, morava na França e ganhava a vida cantando MPB na noite. Depois de um ano voltei para o Brasil, fiz faculdade de música com especialização em flauta transversa e trabalhei com isso durante dez anos, tocando e ensinando. Mas larguei a música e hoje só canto e toco raramente, e informalmente, entre amigos. A fotografia me encanta, talvez pela precisão do toque capaz de revelar algo que num livro custaria páginas inteiras, mas é também algo bem informal (e sem qualquer pretensão) na minha vida. Como roteirista, tive uma única experiência que nunca mais se repetiu. A tradução, sim, é uma atividade paralela que me acompanha cotidianamente há uma década. É um exercício de humildade, porque o texto que está em jogo não é o meu, e é preciso respeitá-lo. Também é um modo de me afastar das minhas temáticas e do meu estilo, e assim arejar a casa um pouco.
TRECHO DE ‘AZUL-CORVO’
‘O ano começou em julho. O lugar era estranho. O suor corria por dentro, por trás da pele – eu suava e meu corpo continuava seco. Era como se o ar fosse duro, sólido, um ar de pedra. Eu bebia um copo d’água depois do outro até sentir a barriga estufada e pesada mas era sempre isso, o suor seco e o ar duro e o sol com um ferrão em cada raio. Não havia nenhuma brisa, nenhum hálito que viesse me aliviar um pouco entrando pelas frestas da blusa, levantando a barra da saia ou sacudindo meu cabelo com promessas de salvação.
Em compensação, eu nunca via baratas.
Barata americana: Periplaneta americana. Li certa vez que elas têm a capacidade de se auto-regenerar, dependendo da gravidade da injúria. Eu as conhecia intimamente, de convívio e de fama (as únicas capazes de sobreviver a uma hecatombe nuclear etc.), de encontros-surpresa na cozinha e no hall do elevador de serviço. Em Copacabana, elas estavam em toda parte. Mas ali eu não via baratas. Era até possível que elas existissem, e conseguissem tolerar a constante falta de umidade e a seriedade do inverno, quando fosse inverno. Mas eram bem mais discretas.
Eu tinha treze anos. Ter treze anos é como estar no meio de lugar nenhum. O que se acentuava devido ao fato de eu estar no meio de lugar nenhum. Numa casa que não era minha, numa cidade que não era minha, num país que não era meu, com uma família de um homem só que não era, apesar das interseções e das intenções (todas elas muito boas), minha.’