Ficção de Adriana Lisboa lança um olhar estrangeiro sobre o mundo

seg, 27/09/10
por Luciano Trigo |
categoria Todas

capaAdriana Lisboa

Será lançado na noite desta terça-feira, na Livraria da Travessa do Shopping Leblon, o novo romance da escritora carioca Adriana Lisboa, ‘Azul-Corvo’ (Rocco, 224 pgs). O título é inspirado num verso de Marianne Moore, e a história tem como protagonista Evangelina, jovem que, após a morte da mãe, viaja para os Estados Unidos, onde nasceu. em busca do pai e da própria identidade: a perda, o exílio e o pertencimento são os eixos temáticos da narrativa. Na companhia do ex-padrasto, Fernando, que participou da Guerrilha do Araguaia, e de um menino salvadorenho, Evangelina reinventa sua própria história a partir das memórias de personagens em trânsito, numa viagem pelo tempo e pelo espaço.

Graduada em música pela Uni-Rio e com doutorado em literatura comparada pela Uerj, Adriana  foi pesquisadora-visitante na Universidade do Texas e na Universidade do Novo México. Ganhadora do Prêmio José Saramago por seu romance de estréia, ‘Sinfonia em Branco’ (2001), ela já tem livros publicados em oito países. Vivendo nos Estados Unidos há quatro anos, Adriana se dedica regularmente à tradução e também está envolvida no projeto ‘A volta ao mundo em 190 histórias’, coletânea que adapta para o público infanto-juvenil lendas populares de diversos continentes, com organização de Celina Portocarrero. O primeiro volume, sobre a África, reunirá 60 ‘recontos’ e deve ser lançado em março do ano que vem.

- ‘Azul-Corvo’ é um romance marcado pela experiência de viver nos Estados Unidos. Fale sobre o processo de criação do livro e sua relação com o sentimento de ser estrangeira.

ADRIANA LISBOA: Na verdade, ‘Azul-corvo’ tenta ir além da minha própria experiência, e por isso escolhi como personagens principais uma adolescente, um ex-guerrilheiro de quase 60 anos e um menino de 9 – ou seja, “não-eus”. Embora a minha experiência seja minha, e o universo sobre o qual eu escrevo seja necessariamente aquele que passa pelos meus olhos ou pela minha imaginação, acho que o maior prazer em escrever ficção está em explorar situações que não são as da minha própria vida. Sobre ser estrangeira, é uma situação que hoje para mim tem dois significados. Sou estrangeira nos Estados Unidos, pelos motivos óbvios, embora viva lá já há quatro anos. E acabo virando, num certo sentido, meio estrangeira no Brasil também, porque morar fora significa perder a relação cotidiana com o país e seus hábitos – por mais que leia jornal brasileiro pela internet, por mais que escreva em português e fale português dentro de casa. Mas não é uma situação que me desagrade: ela me confere certo olhar curioso sobre um e outro países que de outro modo eu não teria, e eu me surpreendo com coisas que para outras pessoas talvez já tenham virado meros pressupostos.

- Como nasceram os personagens principais? Por exemplo, quem e que situações inspiraram Evangelina?

ADRIANA: Os três personagens do livro surgiram de um desejo de escrever sobre uma trinca de amigos improváveis. Investigar como eles se relacionariam com tantas diferenças de idade e história pregressa, e como seria entre eles esse afeto no osso, sem adereços, sem interesses óbvios em comum. A partir disso, e em busca de algo que justificasse a fuga de um deles do Brasil, tive a ideia do ex-guerrilheiro Fernando. Que me permitiu também olhar para um tema pelo qual sempre tive curiosidade, o da Guerrilha do Araguaia. Os outros dois personagens, Vanja e o salvadorenho Carlos, por serem também imigrantes, não perdem a capacidade de levar sustos diante do que vivem e vêem todos os dias. Vanja, que tem poucos elos com o mundo, está procurando o pai. E Carlos faz parte de uma família de imigrantes ilegais, com a qual são se identifica muito, e sua amizade com aqueles dois brasileiros é uma espécie bóia salva-vidas. Mas nenhum dos três foi inspirado por pessoas reais.

- Li que o título foi inspirado num poema de Marianne Moore, “The Fish”, e de fato você tem em comum com essa poeta o cuidado na escolha das palavras. Outro livro seu, ‘Um beijo de Colombina’, é fortemente marcado pela poesia de Manuel Bandeira. Você considera que a sua prosa se aproxima da poesia? Já pensou em escrever poesia?

ADRIANA: Leio poesia sempre. Sou leitora e fã de vários poetas contemporâneos brasileiros. Manuel Bandeira deu o tom de ‘Um beijo de colombina’, Bashô deu o tom de ‘Rakushisha’, e acho que a poesia aparece na minha prosa através de, como você disse, um cuidado consciente com a escolha não só das palavras mas dos cortes, da pontuação etc. Eu também escrevo poesia, e desde muito cedo, mas ainda não pensei a sério na possibilidade de publicar.

- Seus cinco romances parecem compor um corpus bastante coerente. O que mudou para você, como escritora, desde ‘Sinfonia em branco’? Os motores da sua escrita continuam os mesmos?

ADRIANA: Embora você fale em coerência, e eu aprecie essa ideia, vejo também os cinco romances como obras bastante específicas, ligadas a momentos particulares da minha vida, das minhas leituras, das minhas ideias e de um desejo de lidar com “materiais” diferentes. Mas os motores da escrita não mudaram muito. Simplificaram-se, talvez. Hoje sou menos ambiciosa, em termos daquilo que escrevo, do que era quando publiquei meu primeiro livro, há 11 anos. De todo modo, escrever é olhar para o mundo e reciclar aquilo que vejo, é tentar não esquecer. Não é uma busca por respostas a nada, porque acho que elas não existem. A verdade é que falar sobre o que move a escrita é  mais difícil do que a própria escrita.

- Seus textos costumam ser pontuados por uma certa melancolia, talvez por lidarem bastante com a memória e com a recuperação/reinvenção do passado. Pessoalmente, além de delicadeza e elegância, você também passa uma vibração ligeiramente triste e nostálgica. Você concorda? Em que medida ficar mais velha está reforçando ou atenuando esse traço, na vida e na obra?

ADRIANA: Como diz com muita sabedoria o escritor André de Leones, a gente não escreve como quer, a gente escreve como pode. Não tenho qualquer intenção consciente de que meu texto seja de um jeito ou de outro, elegante ou não, melancólico ou não, e muitas vezes a própria palavra delicadeza me incomoda um pouco (não quando ela se aproxima da ideia de leveza, mas quando se aproxima da ideia de fragilidade). Mas assim como o timbre da minha voz é como é, e a cor dos meus olhos é como é, as características do meu texto são o que são, e eu as acompanho da melhor forma possível. O poder, o domínio que exerço sobre aquilo que escrevo não é absoluto. É possível que haja coisas que a gente conquista com a idade, sim, mas nem sempre envelhecer equivale a amadurecer. Conheço adolescentes de 40 anos… Amadurecimento não acontece naturalmente, ele se trabalha e se conquista. E dói.

- Fale sobre suas atividades paralelas, como tradutora, como roteirista, como fotógrafa e, segundo li, também como cantora..

ADRIANA: Começando do fim, o primeiro trabalho que tive na vida foi como cantora. Eu tinha 18 anos, morava na França e ganhava a vida cantando MPB na noite. Depois de um ano voltei para o Brasil, fiz faculdade de música com especialização em flauta transversa e trabalhei com isso durante dez anos, tocando e ensinando. Mas larguei a música e hoje só canto e toco raramente, e informalmente, entre amigos. A fotografia me encanta, talvez pela precisão do toque capaz de revelar algo que num livro custaria páginas inteiras, mas é também algo bem informal (e sem qualquer pretensão) na minha vida. Como roteirista, tive uma única experiência que nunca mais se repetiu. A tradução, sim, é uma atividade paralela que me acompanha cotidianamente há uma década. É um exercício de humildade, porque o texto que está em jogo não é o meu, e é preciso respeitá-lo. Também é um modo de me afastar das minhas temáticas e do meu estilo, e assim arejar a casa um pouco.

TRECHO DE ‘AZUL-CORVO’

‘O ano começou em julho. O lugar era estranho. O suor corria por dentro, por trás da pele – eu suava e meu corpo continuava seco. Era como se o ar fosse duro, sólido, um ar de pedra. Eu bebia um copo d’água depois do outro até sentir a barriga estufada e pesada mas era sempre isso, o suor seco e o ar duro e o sol com um ferrão em cada raio. Não havia nenhuma brisa, nenhum hálito que viesse me aliviar um pouco entrando pelas frestas da blusa, levantando a barra da saia ou sacudindo meu cabelo com promessas de salvação.

Em compensação, eu nunca via baratas.

Barata americana: Periplaneta americana. Li certa vez que elas têm a capacidade de se auto-regenerar, dependendo da gravidade da injúria. Eu as conhecia intimamente, de convívio e de fama (as únicas capazes de sobreviver a uma hecatombe nuclear etc.), de encontros-surpresa na cozinha e no hall do elevador de serviço. Em Copacabana, elas estavam em toda parte. Mas ali eu não via baratas. Era até possível que elas existissem, e conseguissem tolerar a constante falta de umidade e a seriedade do inverno, quando fosse inverno. Mas eram bem mais discretas.

Eu tinha treze anos. Ter treze anos é como estar no meio de lugar nenhum. O que se acentuava devido ao fato de eu estar no meio de lugar nenhum. Numa casa que não era minha, numa cidade que não era minha, num país que não era meu, com uma família de um homem só que não era, apesar das interseções e das intenções (todas elas muito boas), minha.’

Memórias de Chacal: longa jornada poesia adentro

ter, 07/09/10
por Luciano Trigo |
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Chacal

É estranho pensar que Ricardo de Carvalho Duarte, o Chacal, está perto de completar 60 anos: é que, permanecendo fiel ao espírito jovem, irreverente  e contestador que marcou a sua primeira produção, na década de 70,  época da Nuvem Cigana e da geração-mimeógrafo, ele continua escrevendo e vivendo como quem começa, e não como quem conclui, um livro ou uma aventura. Antecipando-se ao número redondo e talvez assustador, Chacal está lançando o livro de memórias Uma história à margem (Editora 7 Letras, 264 pgs.R$39), um balanço informal de sua trajetória como poeta e agitador cultural. A noite de autógrafos no Rio de Janeiro acontece nesta quinta-feira, a partir das 19h, na Livraria da Travessa de Ipanema.

Uma história à margem é o complemento perfeito e em prosa a Belvedere (Cosac & Naify, 384 pgs. R$59), volume que reúne sua poesia completa – 13 títulos ao todo, lançados entre 1971 e 2007. Recapitulando com franqueza as circunstâncias nem sempre fáceis de cada criação, com destaque especial para suas inúmeras viagens (interiores e exteriores), Chacal faz de suas memórias um documento quase sociológico sobre uma geração que, nas brechas e no contrapé da repressão política, conseguiu produzir uma obra relevante e arrojada, levando a poesia para a vida e a vida para a poesia (gente como Cacaso, Ana Cristina César, Waly Salomão etc). Nesta entrevista, Chacal fala um pouco mais sobre sua história e os prazeres e desafios de ser poeta.

capa

- Apesar de todos os percalços, a geração de poetas que apareceu nos anos 70 – você, Cacaso, Francisco Alvim, Ana Cristina César etc – construiu uma obra que teve uma grande repercussão social e cultural. Hoje a impressão que eu tenho é que a poesia dos jovens autores, por melhor que seja, repercute menos. Você concorda? Como analisa isso?

CHACAL: Difícil comparar épocas, contextos diferentes. Talvez a poesia naquele período estivesse muito formal, distante das pessoas e leitores em geral. Então, sem o compromisso com a regra e o cânone, mais próximo do cotidiano nos temas e no tom, em meio a um mar de censura e repressão, nossa poesia aconteceu. simplificando, nossa poesia atingia as pessoas, embora a academia, de uma forma geral, não achasse graça nenhuma. Creio que hoje esse processo se inverteu. os poetas são a própria academia e escrevem para seu pequeno grupo, uma poesia intertextual e canônica. Por outro lado, a poesia das periferias, ligadas ao rap e ao hip hop, falam também de seu gueto e não se universaliza. Ainda assim, são ainda os únicos lugares onde a poesia vigora.

- Você escreve que, no início dos anos 70, os caminhos dados eram a luta armada ou o sistema, ambos impossíveis de trilhar. De que forma esse impasse afetou a sua vida e a sua poesia, na época?

CHACAL: Trazendo a poesia para a vida. A arma do poeta é o poema, tenha ele cunho social ou não. Nossa atitude diante da poesia, apresentando ela ao vivo em grandes artimanhas que se misturavam com o carnaval e o dia-a-dia, nosso contato direto com o leitor /ouvinte, nossa estratégia de evitar as editoras, o sistema oficial elitizado da produção literária, com todos os vícios da produção capitalista de exploração da mão de obra do autor e do apadrinhamento compulsivo. Lutamos sem pegar em armas, sabotamos o sistema pelas bordas, pelas margens.

- Hoje, que não existe mais luta armada (só o sistema), quais são os caminhos possíveis para os jovens? Existem ainda margens para ocupar ou todos os espaços já foram ocupados pela lógica do consumo? Ou, para usar uma metáfora sua, é mais difícil combater o espantalho ou o agrotóxico?

CHACAL: O espantalho é um falso inimigo. Está do lado de fora e não questiona nossos vacilos e fraqueza. Derrotá-lo é uma questão de força, inteligência e persistência. Já o agrotóxico, a droga do mundo pós-industrial, dessa cultura líquida, como quer Bauman, é muito mais difícil de vencer. Ele é invisível, inodoro e letal. Quando assimilado, se transforma em cinismo, em auto-indulgência. Quando você vê, já está usando a voz do dono. Mas creio que com saúde, discernimento e entusiasmo, você consiga achar de novo sua voz. Os jovens de todas as idades saberão sempre onde o calo dói e inventarão seu jeito de dar um jeito.

- Você vai fazer 60 anos em 2011. Como lida com a perspectiva da velhice? O que a idade traz de bom e de ruim, para a vida e para a obra?

CHACAL: A idade faz mal aos olhos. Em compensação encorpa a voz. Nossas paranóias da juventude se transformam em tiques nervosos. O tempo é fundamental para você adensar sua obra, capinar seu caminho de pregos e espinhos. depois de um tempo, é só juntar tudo, colocar num saco, jogar fora e virar vilão de teatro infantil. Mmmoooouuuuhhhhh!!!!!

- A questão das drogas, associadas na época da ditadura à contestação e a uma atitude libertária, contracultural, hoje é inseparável da questão do tráfico como crime organizado. Como você analisa isso?

 CHACAL: As drogas continuam por aí. O que mudou foi nossa crença em mudar o mundo. Antes a droga era combustível para tal. Hoje, com o mundo mudado, a droga se transformou em mais uma mercadoria, uma forma terminal de tapar o imenso vazio.

- De todas as viagens que você narra no livro, quais foram as mais marcantes para você, e por quê?

CHACAL: A viagem para a Inglaterra em 1972/73 foi uma delas. Por ter visto Allen Ginsberg, o melhor do rock na época e ter vivido em um país rico e civilizado, meu sonho da contracultura. Mas toda viagem é uma viagem. Depende dos seus óculos.

- Sobre o episódio da queda no Jóquei, no qual você foi parar no hospital, que lição ficou? [em 1987, depois de uma "noite de saideiras" com Cazuza, Chacal teve a ideia de pular o muro do Jóquei Club.Trancafiado numa sala por um segurança, saltou da janela e foi parar no Miguel Couto]

CHACAL: Quando cair de uma certa altura, flexione os joelhos. Antes de querer voar, aprenda a andar na terra.

- O problema do desafio de viver, materialmente falando, da poesia, atravessa todo o livro, com crises e dívidas recorrentes. Ao longo das décads isso mudou? A literatura está mais profissionalizada hoje, ou a realidade continua inviável? Como essa situação poderia melhorar?

CHACAL: Acho que a performance trouxe novo oxigênio para a poesia. Assim com o rap e a música popular, tem um público não-especializado, de não-literatos. Isso abre o mercado para o poeta. Mas para aumentar a demanda teria que ter uma ação conjunta, estado-escola-mídia-editoras-poetas. O Estado, com o PNBE (Programa Nacional de Biblioteca Escolar), ajuda mais as editoras que propriamente a popularização da poesia. Poetas, escritores de diversos estilos e gerações, têm que ir às escolas, conversar com os alunos, falar de seus trabalhos e ouvir os trabalhos dos alunos, estimulados pela escola a ler e criar. Essa troca é fundamental. Ela criou o CEP 20.000, um sarau multimídia, que é um excelente modelo de disseminação poética. Educação e cultura são uma coisa só. Aumentando o interesse pela poesia, a mídia e as editoras vão se interessar em programá-la e publicá-la. Como aconteceu com o rap. Os poetas poderiam ajudar se tivessem um pouco mais intenção de se comunicar do que apenas expressar suas caraminholas.

- Com que poetas vivos você dialoga hoje? Como enxerga a produção poética brasileira contemporânea, de uma forma geral?

CHACAL: O poeta é bicho difícil de dialogar, mas gosto de vez ou outra encontrar com o Gullar, o Cícero, o Eucanaã, o Carlito Azevedo, o Arnaldo Antunes, o Heitor Ferraz, o Chico Alvim, o Zuca Sardana, o Ricardo Aleixo, a Angélica Freitas. A produção contemporânea vai bem, obrigado. A exuberância do CEP, depois de 20 anos, é reflexo disso. A nova geração está conseguindo juntar as experiências de vida dos anos 70 e o acabamento mais elaborado do novo milênio.

- Tem outro livro a caminho? tem algum poema inédito que você possa antecipar?

CHACAL: Tenho escrito volta e meia. Um dos poemas que gosto de fase mais recente e que ainda está em processo é:

FELIZ 2008

narrar um assassinato é quase tão
difícil como dizer que te amo
como falar do sangue que se esvai ou
vc cantarolando numa aléia do horto de vestido florido
como descrever o terror dos olhos e o grito sequelado ou
vc vendo tv de calcinha de algodão
ou como dizer da arma ainda quente ou
seu corpo mole na cama
essas coisas do amor e do ódio
são impossíveis de narrar.

(CHACAL)

Carlos Vergara: ‘A pintura funciona como uma música sem letra’

sáb, 04/09/10
por Luciano Trigo |
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Sagrado Coração V (2008)
Prestes a inaugurar uma nova exposição individual na Galeria Bergamin, no dia 11 de setembro, com telas de grandes dimensões, e a participar da Bienal de São Paulo, numa sala onde exibirá as fotografias sobre o Carnaval carioca realizadas nos anos 70, Carlos Vergara é um artista versátil, que soma a uma pintura investigativa e inquieta, sempre em busca de novos rumos, incursões consistentes pela gravura, pela fotografia, pela instalação e pelo desenho. Parte significativa dessa produção, que concilia profundidade e espírito de aventura, está representada no livro Carlos Vergara – A Dimensão Gráfica: Uma outra energia silenciosa (Aeroplano, 200 pgs. R$80), que nasceu de uma abrangente exposição no MAM do Rio de Janeiro, em 2009, com mais de 200 trabalhos reunidos pelo colecionador George Kornis com a ajuda do pesquisador João Vergara, filho do artista. Já os ensaios fotográficos sobre o Carnaval foram reunidos no livro Carlos Vergara: Rio de Janeiro 1972-1976, com texto de Paulo Sergio Duarte (Silvia Roesler Edições, 156 pgs. R$90).

Coroa (2008)Cruz I (2008)

Vergara foi aluno de Iberê Camargo, com quem aprendeu as lições da disciplina e do rigor – valores nem sempre em alta num contexto em que a própria pintura ocupa um lugar relativamente discreto,  no sistema da arte contemporânea. Já na década de 60, participou da coletiva Pare: Vanguarda Brasileira, organizada por Frederico Morais; da mostra Opinião 65, ao lado de Antonio Dias, Rubens Gerchman, Roberto Magalhães e Helio Oiticica, entre outros artistas.; e da exposição Nova Objetividade Brasileira. Nos anos 70, mergulha na fotografia e no Carnaval do Rio, com um trabalho quase sociológico sobre o bloco Cacique de Ramos.  Nos anos 80, abandona a figuração para iniciar uma pesquisa pictórica e cromática profunda, enriquecida por periódicas viagens ao interior do Brasil, em buscas de resíduos históricos e de marcas da natureza.

Mó de São Miguel III (2008)Piso (2008)
Hoje, aos 68 anos, Vergara permanece fiel a esse projeto, que vem aprofundando ao longo das últimas duas décadas – e que resultaram na série de Monotipias e pinturas de técnica reunidas na exposição da Galeria Bergamin, em São Paulo (veja mais aqui). Nesta entrevista, Vergara fala sobre o início de sua trajetória e diz que, em qualquer geração de artistas, “tem caldo ralo e tem caldo denso”. É inegável que ele se encaixa na segunda categoria.

Carlos VergaraSerigrafia sem título, 1967
- Nos anos 60, quais eram as suas preocupações, como artista?

CARLOS VERGARA: Em 1960 eu tinha 19 anos e queria que a arte estivesse misturada com a vida. As mudanças passavam por incorporar assuntos banais ao imaginário da chamada “grande arte”.

- De que maneira você se relacionava com outros artistas de sua geração? E que importância tiveram as exposições Opinião 65 e Nova Objetividade Brasileira, em 67?

VERGARA: Era simples, havia interesses comuns e a ideia de abrir espaço para uma nova voz. Essas exposições nos colocaram dentro do pequeno circuito de arte existente, com a nossa cara e nossas idéias. E percebemos que, em outros lugares, tinha gente que pensava como nós.

- Qual foi a importância de Iberê Camargo na sua formação?

VERGARA: Foi muito grande pois ele era um homen de rigor implacavel com o trabalho e acreditava que o olho era uma entrada para o cérebro. Acreditava no pensamento autônomo da arte. Era um semeador louco a atirar sementes…

- A temática do Carnaval – como a série sobre o Cacique de Ramos, que estará na Bienal de S.Paulo –  e a criação de obras integradas a grandes espaços arquitetônicos foram características de sua produção nos anos 70. Fale sobre isso.

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VERGARA: Arte se faz olhando para fora e olhando para dentro. É o resultado dessa alternância que faz um trabalho não-autista, fora de uma ego-trip. Um pensamento, e não uma “grife”.

- Como você e a sua geração lidaram com a repressão política nessa década?

VERGARA: Usando as brechas e não perdendo a noção do atraso que nos propunham.

- Nos anos 80 você se distancia da figuração e passa a desenvolver pesquisas sobre a linguagem e os materiais da pintura. O que determinou essa mudança?

VERGARA: Tentar ver como uma pintura pode funcionar como uma música sem letra. Não uma canção, mas uma música que te pega por áreas mais sutis.

- Como você via na época e como avalia hoje a Geração 80?

VERGARA: Lá e agora vejo que tem caldo ralo e caldo denso. Como em qualquer geração. Ninguem fala muito, mas teve uma Geração 70 da pesada. Minha geração aprendeu mais com a geração de 50 e a de 70.

- Como você avalia o sistema da arte hoje? E o mercado da arte? De que maneira mudou o papel dos curadores, dos galeristas, dos marchands e dos críticos nas últimas décadas?

VERGARA: Não sei quem falou, mas eu concordo que o último ismo é o curadorismo. O mercado creceu, e um jovem pode viver de arte sem ter que arranjar emprego como antes. Como nada é só bom, comercialismos, oportunismos e carreirismos tambem cresceram. Tem muita coisa boa e um circuito de arte que, se você tiver critério, vai perceber que há vida inteligente no Brasil.

- Com que artistas você dialoga hoje?

VERGARA: Eu dialogo com artistas que me “animam” e me desafiam a continuar andando pra frente.

- Tendo participado de diversas Bienais, você considera que o modelo da Bienal está em crise? Por quê?

VERGARA: Crise é risco e oportunidade.Acho que o papel das Bienais é mostrar a crise constante da arte.

- O que você entende por arte pós-moderna, e de que maneira se relaciona com esse conceito?

VERGARA: Na verdade não penso arte em categorias. Isso é operação de mercado, para apresentar produtos como um sabão que lava mais branco. Penso como aquele artista que nem me lembro o nome: “Subo uma montanha porque ela está lá e faço arte porque ela não está lá.”

Altar Mor (2008)



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