Mario de Andrade no espelho da ficção
Mário Chamie combina fantasia e realidade no livro ‘Paulicéia dilacerada’
É difícil classificar Paulicéia Dilacerada, de Mário Chamie (Funpec, 206 pgs. R$ 30). Com o subtítulo “Monólogo póstumo dialogado de Mario de Andrade”, o livro mistura memória e ficção. Chamie entra na pele de seu personagem para mostrar o impacto sofrido pelo autor de Macunaíma quando foi demitido do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo. Combinando fantasia e acontecimentos históricos, o livro investiga questões relevantes ligadas à própria identidade moderna brasileira.
Militante das vanguardas literárias do final dos anos 50, Chamie já faz parte da história da literatura brasileira. Seu livro de 1962, Lavra Lavra, inaugurou o chamado “poema-práxis”. Dissidente do Concretismo, foi apresentado assim por Gilberto Freyre: “A criatividade se apresenta tão dele e tão não somente dele que é como se palavras, ou relações entre palavras, nascessem com ele, como se fossem de todo inventadas”.
Chamie foi também secretário municipal de cultura e criou a Pinacoteca Municipal de São Paulo, o Museu da Cidade de São Paulo e o Centro Cultural São Paulo. Deu aulas e palestras em universidades dediversos países: em Harvard, um de seus alunos foi Jim Morrison, de quem guarda até hoje um conjunto de cartas. Chamie tem mais de 140 obras publicadas e já foi traduzido em 57 idiomas.
- O que te motivou a escrever ‘Paulicéia Dilacerada’?
MÁRIO CHAMIE: Quando assumi a secretaria de cultura da cidade de São Paulo, em 1979, uma das minhas primeiras iniciativas foi procurar amigos remanescentes de Mário de Andrade. Isto porque eu já conhecia bem os planos de atividades culturais que Mario, em 1935, começou a implantar na Paulicéia, quando ele era diretor do então chamado Departamento de Cultura da capital paulista. Eu queria saber melhor o que é que impedira, a partir de 1937, a continuação da aplicação daqueles planos. Conversei com várias pessoas, entre as quais, Paulo Duarte, o colaborador mais íntimo e mais próximo de Mario. Tomei conhecimento, através de Paulo Duarte, das tramas e ardis que o prefeito Prestes Maia, a serviço do Estado Novo getulista, punha em prática para barrar a ação de Mário de Andrade e criar, com isso, as condições de sua demissão. Claro que as informações documentadas de Paulo Duarte me serviram de alerta, e eu passei a cogitar que um dia, no futuro, talvez fosse interessante trazer à tona esses fatos de bastidores que tanto afetaram a pessoa e, de certo modo, a obra do autor de Macunaíma.
- Como você classifica o livro? Romance ou ensaio? Por que essa mistura de gêneros?
CHAMIE: O livro Paulicéia Dilacerada, por ser um “monólogo póstumo dialogado” transita de um gênero a outro, e tanto pode ser lido como uma sucessão de contos, ou como uma narrativa ficcional, ou ainda como um ensaio memorialístico, em que dados reais interagem com situações imaginárias e vice-versa. Nesse sentido, há o cidadão Mário de Andrade, há as suas personas, e há os personagens, propriamente ditos, criados por ele, em sua poesia e ficção. Essas várias “figuras” dialogam entre si e com outros interlocutores históricos (Bandeira, Drummond, Vinicius etc.) que comparecem nos dezessete “momentos” (mais um colofão) do livro Paulicéia Dilacerada. O espectro e o espelho desse livro poderiam estar na escrita de Macunaíma, que, por ser uma rapsódia polifônica, já transgride os gêneros literários e é, também, analogamente, composta de dezessete capítulos (mais um epílogo). Os gêneros fixos, às vezes, engessam. O monólogo plural de Mario extrapola limites rígidos e previsíveis de expressão.
- Como foi o episódio da demissão de Mário de Andrade do Departamento de Cultura de São Paulo, nos anos 30? O que provocou a demissão?
CHAMIE: O que, a meu ver, provocou a demissão foi, sobretudo, a incompatibilidade entre o projeto obreirista e predador dos prefeitos posteriores ao prefeito Fábio Prado e o projeto de Mário, que propunha um desenvolvimento cultural e urbano, com base na preservação ambiental da cidade. O discurso tecnicista dos empreiteiros e engenheiros, que assumiram o controle da administração pública paulistana, apostava na especulação imobiliária e no enganoso lema de que São Paulo não podia parar. Quanto à demissão em si, Pedro Nava a considerou uma espécie de “assassinato” cultural, puro e simples.
- Quais foram os principais momentos da passagem de Mário pelo Rio de Janeiro?
CHAMIE: No início, a passagem de Mário pelo Rio foi de alívio e bálsamo. Depois, ele foi dominado pelo sentimento de solidão e amargura. Nos primeiros meses, alguns momentos e algumas circunstâncias foram muito gratificantes para ele. Por exemplo: instalar-se num apartamento à rua Santo Amaro (esquina da rua do Catete); trabalhar com Rodrigo Melo Franco de Andrade; gozar do apoio e da solidariedade de “velhos” amigos (Nava e cia.); conquistar a amizade dos jovens da Revista Acadêmica (Murilo Miranda, Lúcio Rangel, Carlos Lacerda e outros); tomar chope com eles, na Taberna da Glória (perto da rua Santo Amaro); e mudar-se para uma boa residência, na ladeira de Santa Teresa. Todas essas gratificações pessoais, porém, não resistiram à saudade de sua biblioteca e de sua casa, à rua Lopes Chaves, onde, celibatário, vivia com a sua mãe. Aos poucos, a nostalgia do seu “lugar de trabalho”, no lar paulistano, aprofundou a angústia e o desespero moral que lhe causou a sua demissão do Departamento de Cultura, da quatrocentona Paulicéia.
- Há muitos trechos inventados em seu livro? Ou você procura ser fiel à verdade histórica?
CHAMIE: Os trechos inventados ou de imaginação fictícia de meu livro não se desvinculam dos episódios reais e históricos que lhes dão fundamento e credibilidade.
- Mario de Andrade construiu deliberadamente uma imagem para a posteridade? De que maneira seu livro desconstrói essa imagem?
CHAMIE: A prosa narrativa e a poesia de Mário de Andrade é um arcabouço de máscaras e despistamentos. Ao declarar-se que não era um, mas “trezentos-e-cincoenta”, ele sinaliza a sua preocupação em esconder o cidadão e promover a imagem do mito em que se converteria. No seu monólogo, ele bem o diz: “quem inventa a imagem ignora o homem”. Ora, em vários momentos, trato desse astuto expediente em meu livro Paulicéia Dilacerada, colocando a pessoa de Mário diante dos inúmeros “eus” que ele próprio pendurou em torno de seu “ego”.
- De que maneira o Brasil contemporâneo ainda reflete o Brasil de Mário de Andrade? Que questões permanecem?
CHAMIE: De certo modo, Mário emblematizou o Brasil na figura de Macunaíma. Podemos nos perguntar se, ainda hoje, somos mais ou menos macunaímicos. Talvez, no centro desse emblema, resta a questão da nossa Amazônia, de onde provém o nosso “herói sem nenhum caráter”. A peregrinação dramática de ida-e-volta que Macunaíma faz do Uraricoera a São Paulo não nos adverte de que, antes do destino do mundo, o que está em jogo na Amazônia é, primeiro, o destino do Brasil?
- Mudando de assunto, como poeta com uma obra importante e experimental, como voe vê a poesia brasileira hoje? Há novos talentos? Por que a poesia não repercute como antes?
CHAMIE: A poesia brasileira merece que apostemos nela, sempre e renovadamente, mesmo que ela passe por períodos em que a renovação de seus talentos não seja tão visível. De fato, no universo das diversas linguagens, o discurso poético tem perdido o seu poder de repercussão e ressonância. Quem sabe, um dos motivos disso seja o fato de que a poesia pede mais uma leitura de introspecção reflexiva. Pede uma leitura de refluxo e de meditação. O mercado utilitarista das leituras de fluxo imediato e pragmáticas não se dá bem com isso.
- Ainda é possível a emergência de uma nova vanguarda na literatura? Por quê?
CHAMIE: A vanguarda, hoje, em termos de projeto e sistema radical de transformação coletiva da literatura, me parece improvável. Em tempos pós-modernos e “fractais”, como o nosso, a inovação artística e literária passa, antes de tudo, pela subjetividade livre e individual de cada autor.
- Com que escritores vivos o senhor dialoga? E com quais prefere não dialogar?
CHAMIE: No meu exílio doméstico, eu dialogo mais com os textos do que com os seus autores, estejam eles vivos ou mortos.