Mario de Andrade no espelho da ficção

qui, 29/04/10
por Luciano Trigo |
categoria Todas

Mário Chamie combina fantasia e realidade no livro ‘Paulicéia dilacerada’

CapaMario ChamieÉ difícil classificar Paulicéia Dilacerada, de Mário Chamie (Funpec, 206 pgs. R$ 30). Com o subtítulo “Monólogo póstumo dialogado de Mario de Andrade”, o livro mistura memória e ficção. Chamie entra na pele de seu personagem para mostrar o impacto sofrido pelo autor de Macunaíma quando foi demitido do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo. Combinando fantasia e acontecimentos históricos, o livro investiga questões relevantes ligadas à própria identidade moderna brasileira.

Militante das vanguardas literárias do final dos anos 50, Chamie já faz parte da história da literatura brasileira. Seu livro de 1962, Lavra Lavra, inaugurou o chamado “poema-práxis”. Dissidente do Concretismo, foi apresentado assim por Gilberto Freyre: “A criatividade se apresenta tão dele e tão não somente dele que é como se palavras, ou relações entre palavras, nascessem com ele, como se fossem de todo inventadas”.

Chamie foi também secretário municipal de cultura e criou a Pinacoteca Municipal de São Paulo, o Museu da Cidade de São Paulo e o Centro Cultural São Paulo. Deu aulas e palestras em universidades dediversos países: em Harvard, um de seus alunos foi Jim Morrison, de quem guarda até hoje um conjunto de cartas. Chamie tem mais de 140 obras publicadas e já foi traduzido em 57 idiomas.

- O que te motivou a escrever ‘Paulicéia Dilacerada’?

 

MÁRIO CHAMIE: Quando assumi a secretaria de cultura da cidade de São Paulo, em 1979, uma das minhas primeiras iniciativas foi procurar amigos remanescentes de Mário de Andrade. Isto porque eu já conhecia bem os planos de atividades culturais que Mario, em 1935, começou a implantar na Paulicéia, quando ele era diretor do então chamado Departamento de Cultura da capital paulista. Eu queria saber melhor o que é que impedira, a partir de 1937, a continuação da aplicação daqueles planos. Conversei com várias pessoas, entre as quais, Paulo Duarte, o colaborador mais íntimo e mais próximo de Mario. Tomei conhecimento, através de Paulo Duarte, das tramas e ardis que o prefeito Prestes Maia, a serviço do Estado Novo getulista, punha em prática para barrar a ação de Mário de Andrade e criar, com isso, as condições de sua demissão. Claro que as informações documentadas de Paulo Duarte me serviram de alerta, e eu passei a cogitar que um dia, no futuro, talvez fosse interessante trazer à tona esses fatos de bastidores que tanto afetaram a pessoa e, de certo modo, a obra do autor de Macunaíma.

- Como você classifica o livro? Romance ou ensaio? Por que essa mistura de gêneros?

 

CHAMIE: O livro Paulicéia Dilacerada, por ser um “monólogo póstumo dialogado” transita de um gênero a outro, e tanto pode ser lido como uma sucessão de contos, ou como uma narrativa ficcional, ou ainda como um ensaio memorialístico, em que dados reais interagem com situações imaginárias e vice-versa. Nesse sentido, há o cidadão Mário de Andrade, há as suas personas, e há os personagens, propriamente ditos, criados por ele, em sua poesia e ficção. Essas várias “figuras” dialogam entre si e com outros interlocutores históricos (Bandeira, Drummond, Vinicius etc.) que comparecem nos dezessete “momentos” (mais um colofão) do livro Paulicéia Dilacerada. O espectro e o espelho desse livro poderiam estar na escrita de Macunaíma, que, por ser uma rapsódia polifônica, já transgride os gêneros literários e é, também, analogamente, composta de dezessete capítulos (mais um epílogo). Os gêneros fixos, às vezes, engessam. O monólogo plural de Mario extrapola limites rígidos e previsíveis de expressão.

- Como foi o episódio da demissão de Mário de Andrade do Departamento de Cultura de São Paulo, nos anos 30? O que provocou a demissão?

CHAMIE: O que, a meu ver, provocou a demissão foi, sobretudo, a incompatibilidade entre o projeto obreirista e predador dos prefeitos posteriores ao prefeito Fábio Prado e o projeto de Mário, que propunha um desenvolvimento cultural e urbano, com base na preservação ambiental da cidade. O discurso tecnicista dos empreiteiros e engenheiros, que assumiram o controle da administração pública paulistana, apostava na especulação imobiliária e no enganoso lema de que São Paulo não podia parar. Quanto à demissão em si, Pedro Nava a considerou uma espécie de “assassinato” cultural, puro e simples.

- Quais foram os principais momentos da passagem de Mário pelo Rio de Janeiro?

CHAMIE: No início, a passagem de Mário pelo Rio foi de alívio e bálsamo. Depois, ele foi dominado pelo sentimento de solidão e amargura. Nos primeiros meses, alguns momentos e algumas circunstâncias foram muito gratificantes para ele. Por exemplo: instalar-se num apartamento à rua Santo Amaro (esquina da rua do Catete); trabalhar com Rodrigo Melo Franco de Andrade; gozar do apoio e da solidariedade de “velhos” amigos (Nava e cia.); conquistar a amizade dos jovens da Revista Acadêmica (Murilo Miranda, Lúcio Rangel, Carlos Lacerda e outros); tomar chope com eles, na Taberna da Glória (perto da rua Santo Amaro); e mudar-se para uma boa residência, na ladeira de Santa Teresa. Todas essas gratificações pessoais, porém, não resistiram à saudade de sua biblioteca e de sua casa, à rua Lopes Chaves, onde, celibatário, vivia com a sua mãe. Aos poucos, a nostalgia do seu “lugar de trabalho”, no lar paulistano, aprofundou a angústia e o desespero moral que lhe causou a sua demissão do Departamento de Cultura, da quatrocentona Paulicéia.

- Há muitos trechos inventados em seu livro? Ou você procura ser fiel à verdade histórica?

CHAMIE:  Os trechos inventados ou de imaginação fictícia de meu livro não se desvinculam dos episódios reais e históricos que lhes dão fundamento e credibilidade.

- Mario de Andrade construiu deliberadamente uma imagem para a posteridade? De que maneira seu livro desconstrói essa imagem?

CHAMIE: A prosa narrativa e a poesia de Mário de Andrade é um arcabouço de máscaras e despistamentos. Ao declarar-se que não era um, mas “trezentos-e-cincoenta”, ele sinaliza a sua preocupação em esconder o cidadão e promover a imagem do mito em que se converteria. No seu monólogo, ele bem o diz: “quem inventa a imagem ignora o homem”. Ora, em vários momentos, trato desse astuto expediente em meu livro Paulicéia Dilacerada, colocando a pessoa de Mário diante dos inúmeros “eus” que ele próprio pendurou em torno de seu “ego”.

- De que maneira o Brasil contemporâneo ainda reflete o Brasil de Mário de Andrade? Que questões permanecem?

CHAMIE: De certo modo, Mário emblematizou o Brasil na figura de Macunaíma. Podemos nos perguntar se, ainda hoje, somos mais ou menos macunaímicos. Talvez, no centro desse emblema, resta a questão da nossa Amazônia, de onde provém o nosso “herói sem nenhum caráter”. A peregrinação dramática de ida-e-volta que Macunaíma faz do Uraricoera a São Paulo não nos adverte de que, antes do destino do mundo, o que está em jogo na Amazônia é, primeiro, o destino do Brasil?

- Mudando de assunto, como poeta com uma obra importante e experimental, como voe vê a poesia brasileira hoje? Há novos talentos? Por que a poesia não repercute como antes?

CHAMIE: A poesia brasileira merece que apostemos nela, sempre e renovadamente, mesmo que ela passe por períodos em que a renovação de seus talentos não seja tão visível. De fato, no universo das diversas linguagens, o discurso poético tem perdido o seu poder de repercussão e ressonância. Quem sabe, um dos motivos disso seja o fato de que a poesia pede mais uma leitura de introspecção reflexiva. Pede uma leitura de refluxo e de meditação. O mercado utilitarista das leituras de fluxo imediato e pragmáticas não se dá bem com isso.

- Ainda é possível a emergência de uma nova vanguarda na literatura? Por quê?

CHAMIE: A vanguarda, hoje, em termos de projeto e sistema radical de transformação coletiva da literatura, me parece improvável. Em tempos pós-modernos e “fractais”, como o nosso, a inovação artística e literária passa, antes de tudo, pela subjetividade livre e individual de cada autor.

- Com que escritores vivos o senhor dialoga? E com quais prefere não dialogar?

CHAMIE: No meu exílio doméstico, eu dialogo mais com os textos do que com os seus autores, estejam eles vivos ou mortos.

Diários da inocência perdida

dom, 18/04/10
por Luciano Trigo |
categoria Todas

O cotidiano, os sonhos e os medos de seis adolescentes de vida nada fácil

capaParece difícil imaginar que exista alguma poesia na rotina de adolescentes sexualmente exploradas, mas é esta a primeira surpresa que se tem na leitura de As Meninas da Esquina, da jornalista Eliane Trindade (Record, 420 pgs. R$ 47,90). Geralmente relegadas ao silêncio e ao anonimato, as protagonistas desse drama social ganham voz e vida nos relatos reunidos no livro. E mostram – outra surpresa – que são muito parecidas, na forma de sentir e pensar, com garotas de outras classes sociais – apesar de conhecerem, desde muito cedo, uma realidade marcada por abusos, pobreza e violência.

As histórias contadas por Natasha, Britney, Milena, Yasmin, Vitória e Diana não são nada inocentes: uma delas começou a se prostituir aos 9 anos, outra se relaciona com um presidiário e é mantida por uma facção criminosa, outra sofreu abusos do padrasto, na infância. E o mais grave é pensar que esses enredos continuam a ser vividos rotineiramente no país. Nesta entrevista, Eliane Trindade fala sobre a gênese de As meninas da esquina e a difícil tarefa de retratar com delicadeza uma de nossas tragédias sociais.

O livro deu origem ao filme Sonhos roubados, da cineasta Sandra Werneck, que estreia esta semana nas principais capitais do país. Assista aqui ao trailer:

Sonhos roubados – Trailer oficial from Thiago Lacaz on Vimeo.

- Fale sobre a gênese do livro As Meninas da Esquina. Como surgiu a idéia, e como ela se materializou?

ELIANE TRINDADE: Acompanhar a rotina de meninas prostituídas por meio de diários surgiu como uma ideia de pauta a ser proposta a uma revista feminina. Mas nem cheguei a propor a reportagem, quando me dei conta de que tamanho esforço de apuração seria melhor aproveitado no formato de livro. Busquei apoio de uma ONG ligada ao tema, a Childhood Foundation (WCF-Brasil), que me colocou em contato com instituições em diferentes estados em três regiões (Norte, Nordeste e Sudeste). Assim, seis meninas com idades entre 14 e 19 anos na época, concordaram em participar do projeto e durante um ano fizeram diários – escritos e gravados – para o livro, sob a minha supervisão.

- Qual o grau de edição dos relatos das adolescentes reunidos no livro? Que critérios você seguiu? O livro tem uma “mensagem”?

ELIANE: As meninas me mandavam cópias dos diários e as fitas a cada mês. Com o material bruto em mãos, eu voltava a falar com elas, por telefone ou pessoalmente, para preencher as lacunas dos relatos, de forma a contextualizar fatos e esclarecer passagens mais obscuras. Fazia, então, uma edição do texto, tentando deixá-lo o mais coloquial possível, numa linguagem mais próxima da oral. O livro não tinha “uma mensagem”, mas o desejo de dar voz a meninas que não costumam ser ouvidas. Nas próprias palavras delas, os diários relatam as suas histórias, contemplando não só a questão da exploração sexual, como também todas as outras que permeiam a vida destas seis garotas brasileiras.

‘Apenas uma delas hoje tem uma fonte de renda e saiu das ruas. Trabalha como merendeira. Uma morreu atropelada e outra está desaparecida há mais de um ano. As demais continuam vulneráveis e sobrevivendo a duras penas’

- Você voltou a ter contato com essas meninas recentemente? A vida delas mudou?

ELIANE: Não tenho mais um contato continuado com todas elas, mas procuro saber periodicamente como estão. Desde o começo, era claro para elas e para mim que o livro não era um projeto “redentor”. Para mudar a vida de uma menina da esquina é preciso bem mais, embora os direitos autorais do livro tenham sido doados integralmente a elas. Apenas uma delas hoje tem uma fonte de renda e saiu das ruas. Trabalha como merendeira. Uma delas morreu atropelada e outra está desaparecida há mais de um ano. As demais continuam vulneráveis e sobrevivendo a duras penas. Enfrentam enormes dificuldades para buscar alternativas, uma vez que mal sabem escrever.

- Os desejos e sonhos das meninas são muito próximos dos das garotas de classe média da mesma idade, mas os medos e angústias são muito diferentes. Fale sobre isso.

ELIANE: O livro mostra o quanto as meninas da esquina são próximas de qualquer outra da mesma idade. São adolescentes que dividem sonhos e angústias próprios de uma fase sempre muito difícil, com o agravante de que elas precisam batalhar para sobreviver. Como estão em uma situação de vulnerabilidade extrema, as emoções também são superlativas. Seja quando amam, quando sofrem ou quando se divertem.

- O livro evita rótulos e julgamentos morais. Você considera que a questão moral não deve fazer parte do debate sobre a exploração sexual de meninas?

ELIANE: Ao final da leitura, espero que os julgamentos fáceis e apressados sejam deixados de lado. A complexidade do tema dispensa moralismos. Todos os aspectos devem ser levados em conta para enfrentar um problema que exige comprometimento de todos os envolvidos – tanto das próprias meninas, quanto de suas famílias, do governo e da sociedade.

- Qual você acha que deve ser a responsabilidade das famílias, do Estado e da mídia para se lidar com esse problema de forma mais eficaz?

ELIANE: No capítulo final do livro, foram listados 100 temas tirados dos diários e que dizem respeito a todas as esferas da vida das meninas. Gravidez na adolescência, acesso aos serviços de saúde, falência da educação pública, precariedade de moradia, uso de drogas, violência doméstica, abuso de autoridade. A lista é enorme e elas denunciam cotidianamente o quanto os seus direitos básicos não estão minimamente garantidos. Cabe à mídia denunciar e também cobrar dos governos políticas públicas eficientes para esta parcela da população. A desestrutura familiar também é outro importante aspecto. Os pais são os grandes ausentes dos diários das meninas da esquina.

- O que você achou do filme “Sonhos roubados”? Participou da adaptação?

ELIANE: Não participei diretamente da adaptação, embora tenha acompanhando todo o processo. A tarefa de Sandra Werneck de levar para a telona um tema tão árido era difícil. Mas a diretora conseguiu tratar com delicadeza um tema que poderia facilmente ser apelativo. Como obra de ficção, “Sonhos Roubados” passa o recado e ao mesmo tempo aproxima o espectador da realidade das meninas da esquina, em um tom próximo do documental.

Arte contemporânea e BBB: tudo a ver?

qui, 15/04/10
por Luciano Trigo |
categoria Todas

Ex-BBB Fani e fotógrafo J.R.Duran são criticados por ‘censura’ a obra de arte

FaniUm artista, Alexandre Vogler, concebeu a seguinte obra: recolher cartazes da revista Playboy da ex-BBB Fani espalhados pelas bancas de jornais da cidade, depois de eles sofrerem diversos tipos de intervenção popular: desenhos, rabiscos, rasgos, mensagens, perfurações etc. Um dos cartazes está reproduzido aqui do lado, para o leitor avaliar. Pois bem, convidado a participar de uma exposição no Museu de Arte Moderna de São Paulo, foi informado de que os cartazes não poderiam ser expostos, por violar direitos de imagem: o departamento jurídico do museu não obteve autorização nem de Fani nem do fotógrafo J.R.Duran. O artista, indignado, acusou o museu de censura, recebendo o apoio imediato de dezenas de pessoas, numa rede social.

O episódio já chegou as páginas dos jornais. No Segundo Caderno de O Globo de hoje, Vogler declara: “A assessora da Fani disse que o trabalho não agregava coisas boas à imagem dela, como se ela pudesse autorizar ou não a realização de uma obra de arte.”

Compreendo o ponto de vista do artista, que se referencia em exemplos passados de arte participativa, de apropriações e outros procedimentos incorporados à prática artística contemporânea. Mas a declaração de Vogler me pareceu ingênua, reveladora de um certo descompasso com o mundo real. Já classificar esse episódio de censura é um equívoco completo.

Evidentemente, a liberdade artística não se sobrepõe às leis – caso contrário diversos crimes poderiam ser cometidos sob a proteção do “campo artístico”. Para dar um exemplo extremo, uma obra que incentive abertamente a violência, ou a pedofilia, ou a discriminação racial, sexual ou religiosa deve ser exposta num museu ou galeria? Podem até existir pessoas que acham que deve, mas a lei diz que não.

No caso em questão, trata-se da legislação relativa ao direito de imagem. Ora, Fani e J.R.Duran têm todo o direito de não autorizar a apropriãção das fotografias, feitas sob contrato para determinado tipo de uso – exploração comercial pela revista Playboy. Pessoalmente, posso até achar que depois de ela posar nua, depois de participar do BBB etc, essa atitude é criticável, mas é um direito dela e do fotógrafo. Fani e Duran não teriam nenhum controle sobre o resultado da obra artística, e dá para imaginar o que os “populares” escreveram e/ou desenharam nos cartazes…

Criticou-se também o departamento jurídico do MAM, alegando que ele deveria tomar partido da “liberdade artística”. Mais uma leitura equivocada das coisas: na vida real, instituições, públicas e privadas, contratam advogados para que eles defendam seus interesses e evitem litígios; se não fosse assim, o MAM não teria departamento jurídico, ou estaria jogando dinheiro fora. Ora, o departamento fez a consulta, as parte envolvidas disseram não, e a lei as ampara. O que existe de extraordinário nisso? Quem discordar das leis deve lutar para modificá-las, mas gritar “censura!” soa a nostalgia de tempos em que, justamente, as leis eram desrespeitadas a todo momento, atropelando direitos individuais.

Paradoxalmente (e significativamente), o episódio todo está servindo como marketing não somente para a ex-BBB Fani, mas também para o artista plástico autor da obra. Sinal, talvez, de que cada vez mais a arte e os artistas se valem de expedientes outrora restritos à publicidade e à indústria do espetáculo. Arte contemporânea e BBB têm cada vez mais a ver um com o outro.

Verdades e mentiras sobre a televisão

qua, 14/04/10
por Luciano Trigo |
categoria Todas

Newton Cannito analisa em livro o impacto da convergência digital na TV

NCcapaQuais são os desafios da televisão na era digital? Qual será o impacto da Internet sobre o hábito de se ver TV? Qual é o futuro da narrativa televisiva? Que desdobramentos terá a interatividade? Quais serão as consequências da convergência tecnológica, e que novos modelos de negócios surgirão? Newton Cannito responde questões como essas – e desfaz vários mitos sobre o futuro da TV – no livro A televisão na era digital (Summus, 264 pgs. R$ 63,90) . Cannito é um ativo roteirista e diretor de cinema e televisão – 9 Milímetros, Cidade dos Homens, Violência SA,  Quanto vale ou é por quilo?, Alô alô Teresinha – além de diretor do IETV – Instituto de Estudos de Televisão e da Fábrica de Idéias Cinemáticas. É também autor de Manual do Roteiro e do livro de contos Novos monstros.  O lançamento de A televisão na era digital no Rio de Janeiro acontece hoje, na Livraria da Travessa do Leblon, a partir das 19h.

- Vou começar repetindo uma pergunta que você mesmo faz no livro: qual seria a televisão ideal?

NEWTON CANNITO: É uma televisão inovadora e que trabalhe com o especifico televisivo. A televisão não é cinema, nem internet. Sempre que ela tenta copiar outra mídia, ela não realiza todos seus potenciais. A televisão está mais para o circo, do que para a literatura. E tal como o circo a televisão trabalha com a estética do espetáculo popular interativo. A televisão também pode ser o veiculo para difusão de bons folhetins (as atuais novelas e seriados) que vão além do circo.

- Você relativiza um pouco o impacto da internet e da convergência sobre o hábito de assistir televisão. Mas as novas gerações, que já crescem habituadas a ver audiovisuais no computador, com o poder de escolher o quê e quando assistir, não podem provocar efetivamente uma crise da televisão tal como a conhecemos hoje?

CANNITO: Não. Esse papo de “nova geração” é muitas vezes enganoso. Muitos dizem que a nova geração está acostumada aos jogos eletrônicos e por isso o futuro vai ser jogos. Mas uma observação mais atenta mostra que os jovens – desde a Idade da Pedra – sempre jogaram mais que os adultos. Eu mesmo jogava muito e hoje quase nunca jogo. Os jogos eletrônicos concorrem mais com os jogos do mundo físico do que com a televisão. Pois a televisão tem outra função. Agora você falou na pergunta algo que tem mais a ver. O poder de escolher o que vai assistir. Isso vai sem dúvida aumentar muito. É a televisão de “arquivo”, em contraposição ao “fluxo”. Ou seja, vou poder assistir minhas séries favoritas na hora que eu quiser. Isso vai mudar várias coisas, sempre para melhor. Pois dará poder maior ao público de escolha real. Mas isso nunca acabará com a televisão de fluxo. A maior parte da programação ainda é (e sempre será) de fluxo. São notícias, humorísticos (ligados à realidade do dia), show, serviços, games televisivos, coisas assim. Muitas coisas ao vivo ou simulando um ao vivo. Essa estética é fundamental e é diferente do arquivo. O público vai sempre querer ligar a televisão sem saber o que quer assistir. Seria muito chato ter que sempre saber o que quero assistir. E tiraria a novidade do mundo e da minha vida. Sempre haverá o momento que eu quero assistir a televisão para ver o “que está rolando”. Por isso, acho que o principal problema da televisão hoje é esse: tudo que rola é parecido. Eu tenho uns 80 canais, zapeio, zapeio e não vejo nada inusitado. Isso é o que temos que resolver.

- A quê você atribui o enorme sucesso do Big Brother no Brasil? Os reality shows tendem a se exaurir ou vieram para ficar?

CANNITO: Vieram para ficar. O sucesso é por vários motivos. Um deles é que é um formato especificamente televisivo e já pensado para ser transmidiático. Isso é característica de sucesso. Além disso, o Big Brother responde a demandas imaginárias do momento e dialoga com a estética da cultura digital. No livro mostro como ele é um simulacro do universo do “sucesso” no Brasil, como trabalha com temas da novela (amor e ascensão social), como é um “metamelodrama”, pois é um melodrama debatido etc..

- Como explica o sucesso de Lost e outros seriados?

CANNITO: Lost, especificamente, é outro caso analisado em meu livro de forma bastante ampla. Vou tentar resumir. Primeiro dado importante: ele é uma série pensada desde o inicio para ser transmidiatica. Ainda antes da televisão ser “digital”, Lost tem a principal característica do digital: atua em várias mídias de forma criativa. Não é que as outras mídias são complementos a televisão. As outras mídias são parte fundamental do universo. Lost criou um jogo de decodificação que tem pistas espalhadas por todas as mídias. Tem, inclusive, ações em mídias físicas (como intervenções ficcionais de personagens em feiras “reais” de fãs de séries). Isso tudo é fundamental. Tem gente que ainda pensa no transmídia apenas como uma forma de ter novas fontes de renda. É claro que pode ser isso também. Mas é muito mais. O transmídia é o que fideliza o espectador à série e garante o sucesso. A “impressão de real” hoje é dada – também – pela sensação de estar em todas as mídias. Isso ajuda a imersão do espectador dentro do enredo. Um único exemplo: o site da fundação ficcional citado na televisão já estava registrado há tempos e existia na internet. Quando um espectador googla o nome da fundação na internet ele encontra um site (ficcional) que “parece” um site real. Isso – para o fã – é uma prova de “realidade”. Por isso tudo, Lost conseguiu brincar de realidade com seu espectador e fez imenso sucesso.

‘A televisão é o espaço do genérico, das altas audiências, e a internet é o espaço ideal para o segmentado’

- Qual é, em linhas gerais a sua análise do fenômeno Youtube, e qual seu impacto sobre a televisão?

CANNITO: O YouTube revolucionou o conteúdo audiovisual, pois criou uma possibilidade de difusão de conteúdo amador gratuito e permitiu a criação de uma imensa videoteca. Ele foi muito mais bem sucedido que as Web TVs, pois entendeu a lógica da Web 2.0 que é: Todo poder ao usuário. Ao invés de ser um produtor, ele se “contentou” em ser uma plataforma para o usuário colocar seus próprios conteúdos, seja produção caseira, seja trechos que o usuário gravou da televisão ou cinema. Ou seja, o Youtube abriu mão de ser uma produtora para ser “apenas” um canal de distribuição. Mas conceitualmente o YouTube não concorre com a televisão. É outro tipo de conteúdo e outro tipo de uso. É uma economia de cauda longa, e a televisão nunca será cauda longa. É claro que, nesse momento especifico, os conteúdos audiovisuais na web tiraram algum público da televisão. Era uma demanda contida por acesso a conteúdos de difícil acesso. A televisão era hegemônica demais, queria ser tudo e atender sempre a todos. Isso nunca mais acontecerá. Mas os programas de televisão sempre terão mais audiência do que programas disponíveis no YouTube. Por um motivo simples: se fizer sucesso na internet vai acabar indo para a televisão. A televisão é o espaço do genérico (das altas audiências), a internet é o espaço ideal para o segmentado. E isso não é critério qualitativo. Ambas as coisas são importantes e vão conviver na Era Digital. O genérico é o que dá assunto comum ao grupo social, e isso será sempre importante.

- Experiências já estão sendo feitas com a televisão em 3D. Você acha que ela vai pegar?

CANNITO: Não. É claro que poderá ter momentos aonde vamos querer ver televisão em 3D. Mas é um investimento altíssimo para poucos momentos. É claro que se puder investir em tudo a gente investe em tudo. Mas investir em tudo é jogar dinheiro fora. É importante ter prioridades e eu não priorizaria isso. Há grandes chances de ser mais uma daquelas tecnologias que fracassam, pois interessam apenas ao público “novidadeiro” e nunca cheguem ao grande público. Ou que sejam muito caras. É claro que se baratear muito e muito ele pode ser uma tecnologia opcional. Mesmo assim será usada apenas nos momentos em que iremos assistir a programas que tem a ver com isso, um filme, um Jogo, etc… Pode ser que seja apenas para conteúdo Premium. No cotidiano da programação não tem sentido. Pois o 3D ajuda a imersão tipicamente cinematográfica. É uma tecnologia de imagem similar ao som dolby. No livro eu explico bem a diferença da imersão cinematográfica e a forma de recepção televisiva, que é mais interativa e menos imersiva.

- Quais são os impactos da pirataria sobre a TV digital, e como você acha que esse problema pode ser enfrentado?

CANNITO: A pirataria é imensamente nociva, obviamente. Ainda tem gente que pensa que é “revolucionário” pois puniria as “corporações”. Isso obviamente é um erro conceitual. Primeiro porque não podemos roubar de alguém apenas porque ele é grande. Podemos lutar para outros crescerem, mas não se luta roubando nada, se luta montando novas empresas que disputem com as corporações. Além disso, a pirataria prejudica também os autores, que são os indivíduos criativos, que deixam de ser renumerados. O problema pode ser enfrentado com ações punitivas, é claro. Mas também ações de dialogo e reformulação de modelos de negocio. Temos que entender o que move quem compra pirataria. Podemos pensar modelos que atenda eles de forma legalizada, barateando preços, diminuindo a janela e tudo mais. No caso da TV Digital e de conteúdos transmidiáticos é importante criar sistemas que calculem automaticamente a audiência em novas mídias, como internet e celular. E criar caminhos para que esse recurso vá para os autores.

- A base de assinantes da TV paga no Brasil ainda é relativamente pequena, e ao mesmo tempo o ritmo de crescimento da programação em alta definição é bem menor do que se esperava. O Blu Ray também está demorando a pegar. Como você analisa esses fenômenos?

CANNITO: Foram ótimos exemplos de erros de modelo que não podem se repetir. Primeiro é bom lembrar: nem toda tecnologia cola no público. Temos que escolher em qual investir. O caso da TV é um exemplos aonde as grandes empresas erraram em tentar manter o total controle. Ao invés de abrir para conteúdo local e nacional e permitir a surgimento de canais independentes, as corporações brasileiras tentaram manter o controle sobre todos os canais. Deu no que deu. ´Somos um dos países com mais baixo índice de assinantes de TV Paga. Muitas pessoas assinam e abandonam. Pois concluem que não “tem nada para ver”. Outras assinam apenas para assistir TV comercial. Só fica na TV paga mesmo quem é fã de series americanas. Agora surgiu alguns programas legais e inovadores na Canal Brasil. Mas é pouco. Outros canais são todos também da mesma empresa. Temos 80 canais, todos do mesmo dono. Isso não é diversidade e isso não conquista o público. Canais como o “Canal Brasil” deveriam existir vários e em diferentes linhas. E todos independentes e indo em caminhos diferentes. As empresas, inclusive as grandes empresas, tem que ser mais generosas e menos centralizadoras. Eu sei que o objetivo de uma empresa comercial é ganhar mais dinheiro. Não critico isso, acho importante o empreendedorismo privado. Mas quero um verdadeiro empreendedorismo. E o verdadeiro empreendorismo prima pela inovação.E a inovação é também a coragem de abrir espaço para novos talentos. Não é o acontece. É sempre a mesma turma. O erro da TV paga esta podendo se repetir agora na TV Digital. A insistência na alta definição pode ser um erro. E um erro que decorre da mesma vontade de centralização das grandes empresas. Historicamente sempre foi assim. Quando surgiu os cinemas novos com tecnologia que permitia a popularização (nos anos 60), o cinema americano quis impor um novo padrão de imagem: o cinemascope! A industria sempre tenta inventar uma tecnologia que os “pobres” não possam seguir. A alta definição é novamente essa tentativa. O custo aumenta muito (não só de câmera, mas também de cenário, maquiagem e outras coisas). Se o público exigir alta definição é uma forma das corporações manterem o controle e evitarem a difusão do poder entre muitos produtores. O problema é que isso não vai mais acontecer. Cada vez as tecnologias ficam mais disponíveis. Um software de ponta de efeitos especiais da industria americana está em poucos anos disponível para o público amador. Isso vai acelerar. Não tem mais como tentar centralizar a produção apenas na tecnologia. Na verdade o que as corporações vão ter que entender é que : não tem mais como centralizar totalmente a produção. Elas vão ter que perceber que vai ser necessário abrir para outros produtores e para a inovação. Resumindo: pode até ter alta definição. Mas para produtos que realmente exijam isso, como filmes, series, jogos de futebol.

- Estudos sérios sobre a televisão ainda são escassos no Brasil. Com que autores e teóricos você dialogou para escrever o livro?

CANNITO: O livro é resultado de pesquisas que faço desde a faculdade e desde a época que eu escrevia a Revista Sinopse, uma revista de audiovisual editada pelo CINUSP (cinema da USP). Em termos bibliográficos destaco livros ligados a cultura digital (Cultura da Convergência, de Jenkins) e a publicações internacionais de autores como François Jost. Alguns desses autores foi traduzido para a revista do IETV (www.ietv.org.br). Mas nem toda a reflexão veio de outros livros. É um livro feito “a quente”, sobre um tema muito debatido, mas com pouca bibliografia. Por isso usei muito de material retirado em entrevistas que fiz e/ou em seminários que organizei para o IETV.

LEIA TAMBÉM, DE NEWTON CANNITO:
capa 3Manual do Roteiro – Ou Manuel, o primo pobre dos manuais de cinema (com Leandro Saraiva. Conrad, 236 pgs.)

Segundo os próprios autores, este é um Manual que já nasceu com crise de identidade. Na verdade, os próprios autores desconfiam bastante da maioria dos manuais de roteiro que existem por aí. Para Leandro Saraiva e Newton Cannito, a escrita de um roteiro depende basicamente de processos individuais e que não podem ser reduzidos a regras absolutas. Segundo os autores do livro, os manuais de roteiro americanos costumam confundir roteiro com auto ajuda, ou manuais do tipo ‘Faça você mesmo’. Esse livro segue outro caminho e ao invés de impor regras, ensina o roteirista a criar suas próprias regras.

CAPA 2Novos monstros (Geração Editorial, 192 pgs. R$ 24,90)

Uma fábula darwinista sobre a sobrevivência das espécies econômicas tupiniquins. Um semifamoso – ator descamisado da indústria cultural entra em transe em meio a programa de auditório adolescente apresentado por senhor de cinquenta anos. Um sócio-laranja faz uma defesa da ética oculta dos corruptos brasileiros. Esses e outros Novos Monstros estão presentes neste livro.

A fotografia reinventada

dom, 11/04/10
por Luciano Trigo |
categoria Todas

André Rouillé investiga as relações entre a arte e a imagem fotográfica

capaEnsaio tão ambicioso quanto original, A fotografia – Entre documento e arte contemporânea (Senac, 484 pgs. R$85,90) não se limita a inventariar os múltiplos usos, papéis e leituras da fotografia, desde os primórdios até o seu  relativamente recente estatuto de obra de arte (como objeto de coleções públicas e particulares, de exposições em museus e galerias e de um próspero mercado). André Rouillé – professor de Arte e Filosofia da Universidade Paris VIII, que está no Brasil para uma série de conferências sobre o livro – propõe uma reinterpretação radical do fenômeno fotográfico, num momento em que transformações tecnológicas modificam a própria forma de lidarmos com as imagens e as representações do mundo. Na era da sociedade informacional, das redes digitais e da internet, afirma Rouillé, emergem novas imagens, mais adaptadas às novas condições em que vivemos, ameaçando suplantar a fotografia – mas ao mesmo tempo libertando-a do peso das funções que tradicionalmente lhe foram impostas. “No final do século 20, o mundo se tornou complexo demais para a fotografia”, escreve o autor.

O livro de Rouillé se descola assim de uma longa tradição do pensamento sobre a fotografia que, desde os primeiros textos de Charles S.Peirce até os já clássicos A câmara clara, de Roland Barthes, e Sobre a fotografia, de Susan Sontag, fixou e repetiu à exaustão determinadas questões  que tomavam como modelo a pintura, ligadas à representação ao registro documental – considerando, assim, a fotografia apenas pelo seu lado avesso, sugere Rouillé.  A imagem fotográfica, longamente percebida apenas como registro da existência prévia das coisas (como no “isso foi” de Barthes, ou no culto do “instante decisivo” de Cartier-Bresson), ficou assim encarcerada numa camisa-de-força teórica. Na realidade, afirma Rouillé, desde as suas origens a fotografia fabricou e produziu realidades incessantemente. Essa reflexão se torna particularmente necessária no presente, quando assistimos ao declínio da fotografia como documento – declínio associado à crescente desconfiança em relação às imagens (e em relação à própria realidade) – e à consolidação da fotografia como prática artística. Não por coincidência, no Brasil e no exterior, no topo da lista dos artistas contemporâneos mais valorizados estão nomes que trabalham diretamente com a imagem fotográfica, como o americano Richard Prince e o brasileiro Vik Muniz.

A transição do documento à expressão artística é complexa, envolvendo diferentes graus de aderência entre o real e a imagem, entre o decalque e a pura subjetividade. Rouillé enfatiza, em todo caso, a necessidade da distinção entre a “arte dos fotógrafos” e a “fotografia dos artistas” – sem a qual uma enorme confusão se instaura na análise das relações entre a fotografia e a arte, já que as concepções e práticas artísticas diferem radicalmente das concepções e práticas fotográficas: “A arte dos fotógrafos designa um procedimento artístico interno ao campo fotográfico, enquanto a foografia dos artistas remete à prática ou à utilização da fotografia por atistas.”

Rouillé lembra que, até chegar ao estágio atual de material pleno da arte contemporânea, a fotografia precisou superar diversos estágios: depois de rejeitada pela arte (na época dos Impressionistas), foi entendida como paradigma da arte (com Marcel Duchamp), como ferramenta da arte (com Francis Bacon e Andy Warhol) e como vetor de práticas artistas (com a Arte Conceitual, a Body Art e a Land Art). Passou, assim, de ferramenta subalterna ou acessória a material central da produção artística, a ponto de fazer surgir “uma outra arte dentro da arte”.

Por outro lado, a própria arte rompeu, a partir das últimas vanguardas, nos anos 60 e 70,  com diversos postulados e ideais modernistas, desvalorizando o “fazer autoral” e a própria mão do artista, em meio a um processo de desestetização e desmaterialização da arte que ocasionou o declínio do objeto na arte e das noções convencionais de talento, unicidade, originalidade e técnica. “A fusão arte-fotografia aparece como resultado de um longo declínio dos valores materiais e artesanais da arte; como efeito de um processo que leva obras-objetos, feitas para o olhar, rumo a propostas sem forma material definida, feitas para o pensamento ou para suscitar atitudes”, escreve Rouillé.

TRECHO

“Os anos 1980 assistiram à concretização da aliança, durante muito tempo inconcebível, entre a arte e a fotografia, anunciada pelas fotomontagens e pelos fotogramas dos anos 1920. Não somente o uso do procedimento fotográfico como ferramenta ou vetor da arte, mas a adoção da fotografia como matéria (muitas vezes) exclusiva das obras.

Essa aliança define uma nova versão da arte, que designaremos pelo termo “arte-fotografia”. Enquanto prática artística antes de ser prática fotográfica, evidentemente a arte da fotografia se distingue da arte dos fotógrafos. A arte-fotografia rompe radicalmente com todas as práicas artísticas anteriores, para apoiar-se no emprego – assumido, plenamente dominado, e muitas vezes exclusivo – da fotografia, enquanto confere à fotografia um status original de material artístico.”

LEIA TAMBÉM:

CAPA 2

Estética da Fotografia de François Soulages. Senac, 384 pgs. R$ 75

De forma complementar ao ensaio de André Rouillé,  o livro Estética da fotografia – Perda e permanência François Soulages estabelece os contornos de uma estética da fotografia, enfocando questões teóricas e práticas a partir da análise de diversas obras fotográficas. O livro se articula em torno de três grandes eixos: que relações a fotografia mantém com o real? Qual é a especificidade de uma obra fotográfica? De que forma a arte fotográfica está no centro das discussões sobre a arte contemporânea? Soulages é professor na Universidade Paris VIII e diretor do Instituto Nacional de História de Arte, em Paris. É também criador e diretor do grupo de pesquisa internacional RETINA Internacional – Recherches Esthétiques ET Théorétiques sur les Images Nouvelles & Anciennes.

SERVIÇO:

seminário
O Instituto de Humanidades da Universidade Candido Mendes (UCAM), no Rio de Janeiro, promove, no dia 12 de abril, às 19h, um seminário com o francês André Rouillé, professor de arte e filosofia da Universidade Paris-8, especialista em fotografia e arte contemporânea. O seminário A fotografia: entre documento e arte contemporânea recebe como convidados os fotógrafos Andreas Valentin, professor e diretor do Instituto de Humanidades da UCAM; Milton Guran, pesquisador e coordenador do FotoRio; Patricia Gouvêa, diretora do Ateliê da Imagem; e o crítico de arte Paulo Sergio Duarte, diretor do Centro Cultural Candido Mendes.

- Seminário A fotografia: entre documento e arte contemporânea
12/04, às 19h. Local: Teatro João Teothonio (Rua da Assembleia, 10, subsolo – Centro)

- Lançamento do livro no Rio de Janeiro:
13/4, às 18h. Local: Livraria da Travessa (Travessa do Ouvidor, 17 – Centro)

O cinema em seus fundamentos

ter, 06/04/10
por Luciano Trigo |
categoria Todas

Guia clássico de Joseph Mascelli apresenta conceitos e técnicas de filmagem

capaCorte, composição, close-ups, continuidade e câmera são os 5 Cs do título dessa obra clássica de Joseph V.Mascelli, lançada originalmente em 1965 e considerada uma Bíblia do gênero. Até hoje adotado em escolas de cinema nos Estados Unidos, em contínuas reedições, Os 5 Cs da Cinematografia (Summus, 288 pgs. R$89) apresenta com clareza e alguma profundidade os conceitos e técnicas fundamentais para quem faz cinema, abordando temas como o tempo e o espaço cinematográfico; as regras de composição; o ponto de vista; a altura e o ângulo de câmera; as cenas master; os diferentes tipos de edição e a direção da imagem. A tradução brasileira teve revisão técnica do cineasta Francisco Ramalho Jr.

Mascelli (1917-1981) começou a fazer filmes durante a Segunda Guerra e, nos anos 50 e 60, foi diretor de fotografia de diversos longas-metragens, chegando a dirigir a ficção científica Monstrosity (1964) (com um enredo bizarro: uma milionária idosa e inescrupulosa que contrata um cientista para transplantar seu cérebro para o corpo de uma jovem bonita e sexy). Mas sua maior realização foi mesmo escrever este manual, ilustrado com mais de 500 imagens, finalmente lançado no Brasil.

Apesar de datado em alguns detalhes e no próprio projeto gráfico, Os 5 Cs da Cinematografia continua sendo um livro altamente recomendável para estudantes de cinema no Brasil, pois Masceli se preocupa em explicar não apenas o “como” mas também o “porquê” das escolhas que determinam se um filme será bom ou ruim. Se as tecnologias mudam, as questões de linguagem e técnica que movem o trabalho de um cineasta (e o sentido mais profundo de sua atividade) permanecem os mesmos.

Masceli esclarece seu objetivo logo no início do livro: “É importante que os cineastas primeiro aprendam as regras, antes de transgredi-las. Conheçam a maneira certa de filmar, aprendam modelos aceitáveis, entendam como o público se envolve com a história do filme – e entendam que os espectadores foram condicionados a aceitar tais regras durante anos de ida ao cinema. Experimente; seja ousado; filme de forma pouco ortodoxa. Mas, primeiro, aprenda a forma correta, não o faça apenas de forma ‘nova’ – que, muito provavelmente, era nova há 30 anos! – por falta de conhecimento ou de técnicas adequadas.”

LEIA TAMBÉM:

capa 2 Outro livro indispensável para estudantes de cinema – este sim levando em consideração os constantes avanços da tecnologia de captação e edição de imagens e som – é Técnicas de Edição para Cinema e Vídeo – História, Teoria e Prática, de Ken Dancyger (Campus Elsevier, 260 pgs. R$129), já em sua quarta edição. Além de fazer um competente resumo histórico, desde os primórdios da montagem, o autor mostra como a revolução digital está provocando grandes transformações na produção e na pós-produção, no cinema e na televisão. O “estilo MTV” e a montagem não-linear são alguns dos temas desenvolvidos por Dancyger, professor do Departamento de Filme e Televisão da New York University.

Uma discussão relevante proposta pelo autor diz respeito ao impacto da manipulação das imagens digitais sobre os próprios conceitos de real/irreal no cinema e as mudanças do gênero documentário (por exemplo, nos filmes de Michael Moore, como Fahrenheit 911, que combinam informação e entretenimento, ou na recente onda de “documentários fake”, isto é, filmes de ficção que optam pela formato de um documentário). As fronteiras entre os gêneros se tornam mais tênues, enquanto o estilo tende a prevalecer sobre o conteúdo.

“O filme documentário cada vez mais se mescla com valores de entretenimento, assim como o filme dramático brinca com os valores do documentário”, escreve o autor. “Quando os formatos didáticos e de entretenimento adaptam os valores um do outro, e como isso influencia a escolha da montagem?”

Dancyger discorre ainda sobre práticas e princípios estéticos da montagem, e seus impactos na imagem e no som. Analisando dezenas de filmes clássicos e contemporâneos, Técnicas de Edição para Cinema e Vídeo investiga como o estudante e o profissional diretor de cinema devem compreender as ferramentas visuais à sua disposição, além de contextualiar historicamente as escolhas narrativas que o montador deve fazer em sua prática cotidiana.

Em algum lugar do passado

sex, 02/04/10
por Luciano Trigo |
categoria Todas

Ensaio de Robert Rosenstone discute a relação entre o cinema e a História

capaA relação nem sempre amigável entre o cinema e a História já rendeu diversos livros interessantes, como Passado imperfeito, dedicados em sua maioria a apontar as pequenas ou grande infidelidades cometidas pelos cineastas em detrimento da “verdade” histórica. A abordagem de A História nos filmes, os filmes na História, de Robert A.Rosenstone (Paz e Terra, 262 pgs. R$35) é diferente. A experiência nos sets de filmagens – iniciada com a consultoria que prestou a Warren Beatty no filme Reds, baseado no livro Os dez dias que abalaram o mundo, de John Reed - permite a Rosenstone relativizar a suposta incapacidade do cinema de retratar, com a devida profundidade, acontecimentos e personagens históricos.

É bem verdade que outros historiadores, como Eric Hobsbawm. Michel Vovelle e Marc Ferro, já tinham apontado o impacto do cinema, como “arte de massa” (em oposição às “artes de elite”), na maneira como as pessoas percebem e estruturam o mundo à sua volta. Ferro lembra que, em seus primórdios, o cinema era pouco mais que uma atração de feira, inadequada para documentar assuntos sérios. Resíduos desse preconceito atravessaram as décadas, de forma que mesmo hoje persiste uma desconfiança dos profissionais da História em relação aos cineastas (e também aos jornalistas, diga-se de passagem). A originalidade de Rosenstone está em mostrar o equívoco dessa suspeitar: afinal de contas, afirma, cinema e História têm vocabulários e gramáticas próprios, que exigem ritérios diferentes de avaliação.

Warren Beatty em Além disso, argumenta o autor, filmes históricos já fazem pare da própria História, em mais de um sentido. O fato de o cinema alcançar um público infinitamente maior que os estudos acadêmicos inevitavelmente afetou, geração após geração, a interpretação do passado “real”. Além disso, os filmes se tornaram eles próprios fontes indispensáveis para pesquisadores. Por fim, de Júlio César a Gandhi, passando por Joana D’Arc, diversos personagens históricos estão definitivamente associados, para a maioria das pessoas, às suas encarnações cinematográficas.

(Coloco entre aspas palavras como “verdade” e “real” porque, no fundo,  esses próprios conceitos são colocados em questão por Rosenstone. Nas entrelinhas, ele sugere que toda narrativa histórica é, também, uma ficção, fabricada ao sabor dos valores e correntes de pensamento que prevalecem em cada momento. De fato, são inúmeros os exemplos de releituras da História: esta vai sendo, assim, infinitamente reescrita – não mais com  a pretensão de ser uma expressão fidedigna da realidade, mas com a consciência de ser mais uma leitura, entre outras possíveis, daquilo que de fato aconteceu).

Cena de Para citar dois exemplos: a compreensão que temos da Revolução Russa foi em alguma medida forjada pelos filmes dirigidos por Sergei Eisenstein (como Outubro e O Encouraçado Potemkin). Hoje se sabe que o cineasta teve que se submeter em várias ocasiões às imposições dos dirigentes comunistas, até por fim cair em desgraça junto ao regime stalinistas. Se isso não diminui a genialidade dos seus filmes, estes se tornaram, eles próprios, “fatos” históricos que tiveram desdobramentos não só na história do cinema mas na própria História. Por outro lado, essa História assimilada pela população em geral pode servir, deliberadamente ou não, a interesses ideológicos variados.

Marieta Severo em De maneira demelhante, o filme Carlota Joaquina, Princesa do Brasil, de Carla Camurati, marco zero da chamada “retomada” do cinema brasileiro, teve um impacto inestimável na maneira como seus mais de 1 milhão de espectadores assimilaram a passagem da Corte portuguesa pelo Rio de Janeiro. Do ponto de vista de um historiador rigoroso, é um filme cheio de falhas, que reforça clichês e preconceitos sobre D.João VI, por exemplo. Crítica semelhante é feita aos livros de Eduardo Bueno sobre a História do Brasil.

Quem poderá evitar que Carlota Joaquina e livros do Peninha se tornem  fontes relevantes para historiadores – e cineastas – do futuro? Isso é necessariamente ruim? Um filme ficcional, e portanto “mentiroso”, pode levar o espectador a uma compreensão mais “verdadeira” da realidade que o mais fundamentado estudo histórico. Em seu livro, Rosenstone conclui que a narrativa histórica, como a narrativa fílmica, pode, a partir dos mesmos fragmentos de realidade, ser “montada” de forma a produzir sentidos radicalmente diferentes. Se o filme é uma construção, a História também é.

LEIA TAMBÉM:

CAPA 2Passado imperfeito – A História no cinema, org. de Mark C.Carnes. Record, 320 páginas.

Iniciado com um diálogo entre o historiador Eric Foner e o diretor John Sayles, Passado Imperfeito analisa clássicos e sucessos populares como Spartacus, …E o vento levou, As vinhas da ira, Parque dos dinossauros e Malcom X. Sessenta autores, incluindo Gore Vidal, Antonia Fraser, Simon Schama e Robert Darnton, assistiram a cerca de cem filmes, investigando a relação entre a narrativa cinematográfica e o registro histórico.



Formulário de Busca


2000-2015 globo.com Todos os direitos reservados. Política de privacidade