Um coração clandestino

sex, 25/09/09
por Luciano Trigo |
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Manoela Sawitski reflete sobre a espera amorosa em Suíte Dama da Noite

 

Manoela Sawitzkicapa

Gaúcha radicada no Rio de Janeiro, Manoela Sawitzki é uma escritora que impressiona pela beleza e delicadeza – suas como de sua prosa. Em seu segundo romance, Suíte Dama da Noite (Record, 224 pgs. R$34,90), Manoela conta a história de Julia, que, apaixonada desde menina por Leon, vive na expectativa de reencontrá-lo. Mas, quando isso acontece, ela se dá conta de que ele só pode tê-la como amante, de forma clandestina. O livro surgiu da vontade de entender a espera amorosa: “Fala-se muito sobre o amor, como começa e acaba, mas aquilo que o precede, a espera, o hiato entre o desejo e a realização pode ser uma coisa brutal”, explica a autora.  

- Em Suíte Dama da Noite, uma mulher inventa para si mesma uma história de amor eterno, como forma de lidar com a realidade exterior. Você acha que toda história de amor é, no fundo, uma ficção na qual queremos acreditar?

MANOELA SAWITZKI: Não todas as histórias, mas, certamente, muitas são. A possibilidade do amor é uma fonte inesgotável de ficcionalização. Falo “a possibilidade” porque é preciso dar margem para o equívoco, o engano. Nem tudo que chamamos de “amor” se confirma na prática ou sequer sobrevive à passagem do tempo ou às passagens do suposto objeto amado. A palavra está esgarçada, borrada pelo mau uso, e o mesmo, me parece, acontece com o sentimento. Tudo o que borra o amor já não é o amor, são sentimentos, emoções parasitárias, das quais todos, em maior ou menor grau, padecemos. Quanto à mulher da história, é sua incapacidade de se relacionar com uma realidade dolorosa, insalubre ou tediosa, sim, mas também com seu próprio caos interior o que a arrasta, empurra para a certeza de que só a realização amorosa é capaz de ajustar essa desordem. E não há nada de original nessa idéia. É algo que acontece o tempo todo, em toda parte, e é uma herança ancestral. O amor (ou sua possibilidade) aproxima o sujeito daquilo que lhe é ideal, é uma fábrica de heróis.

- Você usa o romance para refletir sobre a própria atividade literária. Você se considera uma escritora cerebral? De que maneira a teoria literária interfere no seu processo criativo?

MANOELA: Sou intuitiva no processo de criação, na concepção dos personagens, na forma como elaboro o enredo, mas bastante cerebral durante a fase da reescrita. Acredito demais na reescrita e acho que o tempo é um excelente editor – porque o tempo também nos edita. Agora, a intuição também está carregada de referências, é resultado da busca, do acúmulo e do processamento de muitas fontes distintas. De alguma forma, tudo o que li, assisti, ouvi, toquei, enfim, tudo o que vivi e senti até o instante em que escrevo um texto acaba imprimido, está ali. A teoria literária faz parte do pacote e certamente me guia, só que de uma forma quase invisível – em hipótese alguma se coloca entre mim e o que estou escrevendo. Nunca elaborei escaletas, nem para os romances, nem para as peças, pelo simples fato de que muito do meu prazer está nos sustos e nas descobertas que faço à medida que a história avança.

- Você já viveu intensamente esperas amorosas, como a Julia Capovila? Escrever é uma forma de matar o tempo?

MANOELA: Já vivi, claro. Eu e todas as mulheres que conheço. Nenhuma tão persistente quanto à de Júlia, mas cada espera tem seu peso particular. Qualquer espera pesa, incomoda, não é? Quanto a escrever… Penso que é o contrário do que você diz. Escrever, digo, quando a escrita de fato acontece, quando você não quer fazer mais nada além de se debruçar sobre a história que está compondo, pode, sem qualquer esforço ou intenção, “re-significar” a noção de tempo. É vida sobre vida sobre vida: é o instante em que aquela imagem dentro de você se projeta no papel, somado ao instante em que você está ali, com toda a sua herança, fazendo parte do processo, e de um mundo que continua pulsante ao redor.

- Escrever é também uma forma de buscar ou afirmar a sua própria identidade? O que tem de Manoela na Julia?

MANOELA: Minha identidade? Também, só que a busca não se restringe a ela… A busca, o interesse, a curiosidade são maiores, me ultrapassam. Da mesma forma, Júlia me contém e me ultrapassa e vice e versa. A lógica vale para os demais personagens. Não escrevo para desabafar, me auto-analisar, escrevo porque minha curiosidade é imensa.

- O estilo e a linguagem são bem diferentes de seu primeiro romance, Nuvens de Magalhães. Você acha que amadureceu ou simplesmente quis fazer algo diferente? Como você analisa o seu itinerário, até aqui?

MANOELA: Esse segundo livro contém o primeiro e o ultrapassa. Se não fosse assim, não haveria razão pra continuar escrevendo. Há oito anos, enquanto escrevia Nuvens de Magalhães, havia uma herança e ela está lá. Tudo o que eu vivi, senti, li, vi, ouvi, combinado ao que eu podia (ou precisava) fazer na época em termos de linguagem, está lá. Hoje não escreveria o mesmo livro. Uma história com os mesmos elementos, talvez, mas não o mesmo livro. Depois do primeiro romance e antes do segundo, escrevi algumas peças, o roteiro de um longa-metragem, um roteiro para televisão, aprendi tantas coisas com cada um deles, superei certos vícios, adquiri outros, mudei de idéia infinitas vezes, errei, acertei, mudei de casa, de cidade, conheci pessoas, deixei coisas pra trás: a herança e o repertório, portanto, são maiores e distintos.

- Com que autores contemporâneos você dialoga? Enxerga pontos em comum entre seus romances e o de outras jovens autoras, como Adriana Lisboa e Tatiana Salem Levy? Existe algo que caracterize a literatura feminina brasileira hoje?

MANOELA: Depende do que você chama de contemporâneo… Se está falando da minha geração, bom, A Chave de Casa é um livro belíssimo, que li inquieta e encantada. Tatiana é uma escritora excepcional logo na estréia. Ainda não li a Adriana Lisboa, embora muita gente boa me diga que preciso ler, e ainda vou. Agora, quando você fala sobre caracterizar uma geração de mulheres, acho complicado, perigoso… Eu diria que se existe algo que “caracterize”, é a diversidade de vozes. Vou falar apenas de quem já li: nesse momento Ana Paula Maia, Andrea del Fuego, Claudia Lage, Letícia Wierzchowski, por exemplo, estão escrevendo, publicando livros. São vozes distintas e todas muito bem sucedidas no que se propõem a fazer. Quanto aos homens, apesar se me soar estranha essa divisão por gênero, recentemente li Corpo Presente, depois de já ter passado por O Dia Mastroianni, do João Paulo Cuenca. E… Bom, li com taquicardia, fiquei espantadíssima com a entrega, com a pulsação do livro. Também gosto do anarquismo e da autenticidade do Marcelino Freire (gosto ainda mais quando ele mesmo lê o que escreve), do que o Daniel Galera faz, com sua segurança, sua precisão. Há pouco li o adorável Verão de Chibo, do Emílio Fraia e da Vanessa Bárbara. E tem o Bernardo Carvalho… Chico Buarque vale também?! Enfim, é gente demais pra uma resposta só, fora todos os que ainda preciso conhecer.

- E quais são suas principais influências? É possível, por exemplo, escapar da influência de Clarice Lispector, sendo uma mulher escritora?

MANOELA: Possível deve ser, mas eu não gostaria de escapar dessa influência, não. De jeito nenhum. Clarice é uma referência forte, que faz parte da minha formação pessoal, não apenas como escritora. O mesmo vale para Virginia Woolf, Kafka, Marguerite Duras, Hilda Hilst, Florbela Espanca, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, Drummond, Gabriel Garcia Marquez, Beckett, Koltès, Caio Fernando Abreu, Sartre, Camus, Morin, Deleuze e… até Platão… e até a coleção Vaga-lume! E todos os livros que peguei, ainda criança, em bibliotecas, sem entender direito na época ou que afanei dos meus irmãos mais velhos, como Milan Kundera, Henry Miller, Anaïs Nin, Neruda… Tudo foi e é influência, referência. Aquela senhora muito pesada, ofegante e alegre, com cabelos metade vermelhos, metade grisalhos que desceu comigo hoje no elevador, e por alguns segundos meu causou uma impressão fortíssima, a manchete de um jornal sensacionalista que li antes de atravessar a rua…  Se me toca, me influencia. 
 
- Você enxerga uma função terapêutica na literatura? Já fez análise?

MANOELA: A palavra “terapêutica” me soa estranha nesse contexto. Escrever pode ser catártico, pode ser uma ferramenta de manifestação do inconsciente, de forma quase análoga aos sonhos. Também a pintura, a música, as artes de modo geral. Escrever pode ser um calmante, um excitante, e libertador, à medida que quem escreve entra em contato com determinadas questões de uma forma que a realidade não lhe permitiria. Já fiz terapia junguiana durante algum tempo e li muito a respeito. Entre outras coisas, esse contato me deixou mais desperta, mais atenta para o universo simbólico. Se tivesse sido apenas isso, os desdobramentos possíveis já seriam ilimitados.

- Você é uma gaúcha gauche?

MANOELA: Acho que sim, considerando que não tomo chimarrão nem nunca fui muito chegada em churrasco. E esses são rituais levados a sério no Rio Grande do Sul! Aliás, passei a comer picanha no Rio, e é óbvio que sou motivo de piada por conta disso. A propósito, é no humor que mais me sinto gaúcha. Há coisas de que só quem é gaúcho (ou simpatizante) parece achar graça. Aqui estou aprendendo a me editar nesse sentido… Mas escolhi o Rio de Janeiro pelo tanto que ele se distingue de mim. Me interessa demais aprender com essa diferença, incorporar essa luz, esse calor. Em Porto Alegre me sentia em território seguro. Seguro porque, depois de 12 anos vivendo lá, já compreendia o lugar, já sabia o que podia encontrar e onde e quando. Aí conheci o Rio. Desde então não parei de querer viver aqui. Sou completamente apaixonada por essa cidade. E tem o negócio do chope no final do dia (e no meio do dia, e à noite, e quando está amanhecendo). Adoro ver essas pessoas que fazem festinhas nas calçadas à luz do dia (com cerveja, música e churrasquinho)… Eu brinco que gosto de ver esse lado meio “sem vergonha” do Rio. É uma cidade com ginga. Quando não estou lendo e escrevendo, trabalho como jornalista, e isso me consome bastante tempo. Mas, descontando isso, gosto de olhar pra cidade, de andar por aí e ver as pessoas, as diferenças brutais entre os bairros, o mar, os morros. Teatro e cinema são paixões também. E viajar e estar com amigos. E estar sozinha, quieta, balançando na rede ouvindo música ou vendo umas bobagenzinhas na televisão… E acho que já estou falando demais. Não?

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Além de escritora e jornalista, Manoela Sawitsky também está envolvida com outra atividade ligada á leitura: o projeto Leitura para Todos, que, iniciado em 2003, atinge hoje a marca de 673 salas de leitura implantadas de norte a sul do Brasil. Criado com o propósito de ampliar o acesso da população aos livros e contribuir para a democratização do conhecimento, o projeto implantará até o final de outubro mais 121 salas, em sete estados do país. Escolas públicas, associações de bairro, hospitais e até mesmo presídios terão acervos próprios abertos à comunidade local, com obras nacionais e estrangeiras de diferentes áreas de interesse.

Clarice e a literatura das origens

ter, 22/09/09
por Luciano Trigo |
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Em ‘Why this world’, biógrafo americano decifra enigmas de nossa maior escritora

 

A melhor a mais completa biografia de Clarice Lispector acaba de ser lançada… nos Estados Unidos. É Why This World: A Biography of Clarice Lispector, de Benjamin Moser (Oxford University Press, 480 pgs. US$29,95). Colaborador de The New York Review of Books, Harper’s e Conde Nast Traveler, Moser, 32 anos, americano radicado na Holanda, se apaixonou pela obra de Clarice num curso de português na Universidade de Brown e começou sua pesquisa quando participou de um programa de intercâmbio na PUC do Rio. Seguiram-se cinco anos de entrevistas e viagens – à Ucrânia natal da escritora, inclusive. O livro será lançado no Brasil em novembro pela Cosac & Naify.

A Ucrânia dos pogroms pós-revolução bolchevique é cenário de uma das passagens mais fortes do livro, sobre um dado biográfico que até hoje permanecia confidencial: Moser afirma que, em 1919, Mania Lispector, mãe da escritora, foi estuprada por soldados russos e contraiu sífilis. Pouco mais tarde, engravidou do marido e teve sua terceira filha, Chaya (“vida”, em hebraico): no Brasil, aonde a família chegou fugindo da perseguição aos judeus, Chaya virou Clarice.

capaNum mundo pré-penicilina, acreditava-se que a gravidez purificava o corpo da mulher com sífilis. Mas, quando desembarcou em Maceió, em 1922, Mania já exibia complicações neurológicas da doença que iria matá-la oito anos depois no Recife, onde a família se estabeleceu. Segundo Moser, Clarice foi gerada para curar a mãe, segundo uma crença da região nativa da família. Como fracassou, ela se culpava. Sua decisão de se tornar escritora teria relação direta com o impulso de decifrar a morte incompreensível da mãe, com o desejo de mudar o mundo pela palavra. O biógrafo, aliás, identifica referências ao episódio em livros como A via-crucis do corpo (1974) e em outros textos que lidam com o tema da maternidade com altas doses de erotismo e violência. Numa crônica de 1968, Clarice escreveu: “Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança. Mas eu, eu não me perdôo”.

Moser também explora o lado místico de Clarice, que frequentava cartomantes e era vista como excêntrica, quando na verdade era uma estudiosa da Cabala e seguia uma tradição milenar de seus ancestrais. A raiva de Deus, também tipicamente judaica segundo Moser, é outro sentimento na origem da obra literária de Clarice, que “buscava o divino numa barata, num pedaço de vidro”.

A questão da identidade e do “pertencimento” de Clarice também é explorada em profundidade pelo biógrafo. Marcada já na origem pela experiência do exílio, a escritora se irritava quando questionam sua “brasilidade”, e ao mesmo tempo precisava lidar com formas camufladas e explícitas de anti-semitismo – ela teria sido demitida do Jornal do Brasil por ser judia, poucos anos antes de sua morte. Estrangeira por nascimento e por temperamento, ela não se sentia pertencendo inteiramente ao país de adoção. Paradoxalmente, a estranheza/estrangeiridade de sua prosa – patente já no romance de estréia, Perto do coração selvagem (1943), lançado aos 23 anos – é justamente a maior contribuição de Clarice à literatura brasileira do século 20.

foto1foto2foto3foto4Clarice adolescente; numa recepção na Embaixada brasileira em Washington, em 1953; na praia, no Rio, com seus filhos, em 1959; e em casa, em 1960 

É hoje só, amanhã não tem mais!

dom, 20/09/09
por Luciano Trigo |
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Contagem regressiva para o fim da Bienal do Livro. No último dia do evento, o Café Literário promove seis debates, reunindo estrelas como o biógrafo Ruy Castro e o romancista português Miguel Souza Tavares. É inegável que o Café deste ano deu um salto de qualidade (e de quantidade tanbém!) - mérito da Fagga e da curadoria de Italo Moriconi. O formato é simples e de êxito garantido: os leitores sempre terão interesse em ver e ouvir de perto escritores de carne e osso conversando sobre temas relevantes, ou até mesmo banais.

Programação de hoje:  

  Literatura, delicadeza, ficções de si e dos outros Flavio Carneiro, Michel Laub e Adriana Lunardi – Mediador: Marcelo Moutinho   12:00
  História de vida e construção da assinatura de autor Arnaldo Bloch, Luiz Ruffato e Antonio Torres – Mediador: Cristiane Costa   14:00
  Os afetos familiares e a criação literária Rodrigo Lacerda, Heloísa Seixas e Antonio Carlos Viana – Mediador: Rachel Bertol   15:30
  A política entre a ficção e a realidade Sérgio Rodrigues e Carlos Heitor Cony – Mediador: Marcelo Moutinho   17:00
  A geografia dos afetos Miguel Sousa Tavares e Marina Colasanti – Mediadora: Rosa Maria Araújo   18:30
  Biografando a canção Ruy Castro e Paulo César Araújo Mediadora : Guiomar de Grammont   20:00

A dança das cadeiras está chegando ao fim

sáb, 19/09/09
por Luciano Trigo |
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LogoA maratona de debates no Café Literário continua – e se torna ainda mais intensa – neste último fim-de-semana da Bienal do Livro do Rio de Janeiro. É uma verdadeira dança das cadeiras: ao final do evento, estas terão suportado o peso de uma parcela significativa dos escritores brasileiros em atividade (e também de alguns estrangeiros), dos mais variados estilos e de diferentes gerações e visões de mundo.

A primeira mesa de hoje, já ao meio-dia, reúne André Vianco e Luiz Eduardo Matta, com mediação de Felipe Pena: Literatura e Entretenimento. Na segunda, O Prazer do Texto (título de um livro de Roland Barthes que o povo acadêmico adora), Marcelino Freire, Carola Saavedra e Ivana Arruda falarão sobre seus processos de criação. Por vias diferentes, tanto a ficção de Marcelino (Sertânia, PE, 1967), autor de Angu de Sangue e Contos negreiros, quanto a de Carola (Santiago do Chile, 1973; entrevistada pela Máquina de Escrever quando lançou seu último romance, Flores azuis) acabam sendo altamente sensoriais. Marcelino, expansivo e carismático, tem uma forte presença de palco: seus textos parecem crescer em qualidade nas leituras que ele faz em público. Por sua vez, Carola, mais intimista, também captura o leitor pela musicalidade e pelo ritmo de sua prosa, mais que pelo enredo ou pela psicologia das personagens. Ambos produzem, por assim dizer, uma “literatura de efeitos”.

Marcelo MirisolaCarola Saavedra

Marcelino FreireMarcelo Rubens Paiva

 

 

 

 

 

Não será tarefa fácil para o jornalista Marcelo Moutinho mediar a terceira mesa, Masculino sem lei, na lei do prazer (15h30), que junta três personalidades fortes e cheias de opinião: o “maldito” e politicamente incorreto Marcelo Mirisola (São Paulo, 1966; autor de Animais em extinção), o intérprete da alma feminina Marcelo Rubens Paiva (São Paulo, 1959; autor de A segunda vez que te conheci) e o sobrevivente da contracultura Reinaldo Moraes (São Paulo, 1950; autor de Pornopopéia) – os dois primeiros já entrevistados por esta coluna. Altas doses de testosterona e vaidade devem marcar o debate sobre a identidade masculina na literatura brasileira contemporânea.

Fernando Morais Larry RotherRoberto DaMatta

 

 

 

 

 

Outra jornalista Regina Zappa, mediará o debate que promete ser um dos mais interessantes de todo o Café Literário, Ficções e Realidades nas Visões de Brasil e Estados Unidos (17h), uma espécie de jogo de espelhos no qual o repórter Larry Rother (autor de Deu no New York Times) e o antropólogo Roberto DaMatta (Niterói, 1936; ele falou recentemente a esta coluna sobre seu livro Cronicas da vida e da morte) devem contrapor suas experiencias como estrangeiros no Brasil e nos Estados Unidos: olhares agudos e inteligentes sobre a irrealidade cotidiana das duas sociedades.

Fecham o dia as mesas Mixagens Pós-Nacionais, às 18h30, que reúne Joseph O’Neill (Cork, Irlanda, 1964; autor de Terras baixas) e Arthur Dapieve (Rio de Janeiro, 1963; autor de Black Music) com mediação de Valeria Martins; e Experiência de Vida e sua Recuperação pela Escrita, com Ancelmo Góis mediando os jonalistas Fernando Morais (Mariana, MG, 1946; autor de O Mago e de inúmeras biografias premiadas) e Guilherme Fiúza (Rio de Janeiro, 1965; ele foi entrevistado pela Máquina de Escrever ao lançar seu livro-reportagem Amazônia 20o andar).

As duas vidas do Coronel Fawcett

sáb, 12/09/09
por Luciano Trigo |
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Café Literário traz David Grann, acusado de plágio por jornalista brasileiro

 

Seis mesas agitam hoje o Café Literário neste primeiro sábado da Bienal do Livro. A literatura para crianças e jovens está bem representada em duas delas, Euclides da Cunha e Machado de Assis para jovens leitores? e Quarenta anos formando e encantando leitores – esta reunindo as escritoras Ana Maria Machado e Ruth Rocha, que já fazem parte do cânone da literatura infantil brasileira. Em outro debate, os gêmeos Fabio Moon e Gabriel Bá trocam experiências sobre quadrinhos (para adultos) com o jovem Dash Shaw.

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Na mesa O abismo da história na ficção, que divide com seu colega brasileiro Daniel Piza, o jornalista americano David Grann, autor de Z – A cidade perdida, fatalmente ouvirá perguntas incômodas sobre a acusação de plágio que está sofrendo do jornalista brasileiro Hermes Leal. É que o livro de Grann – que vai virar filme estrelado por Brad Pitt em 2010 – conta a história do Coronel Fawcett, personagem-título de O enigma do Coronel Fawcett, que Leal lançou em 1996. Acusações de plágio são um assunto delicado, ainda mais em se tratando de uma história real, e o fato de Grann citar o livro de Leal na bibliografia (entre outras 200 fontes) enfraquece a posição do brasileiro. Mas emitir julgamento sem ter lido os dois livros é precipitado (só li o de Hermes Leal, que é muito bom e consumiu cinco anos de pesquisas, durante as quais ele chegou a ser aprisionado por indígenas). O fato é que a Companhia das Letras enviou uma notificação judicial a Leal, afirmando que vai processá-lo se ele insistir na denúncia.

percy fawcettO Coronel Percy Fawcett teve uma vida tão aventurosa que inspirou a criação do personagem Indiana Jones (e também do livro O mundo perdido de Sir Arthur Conan Doyle): desbravou terras perigosas, enfrentou cobras gigantes e indios ferozes, descobriu e mapeou territórios inexplorados. Depois de sete expedições à Amazônia, desapareceu com seu grupo em 1925, ao procurar no interior da selva vestígios de uma lendária cidade de ouro. Seguramente renderá um grande filme, de receita milionária, e nem é preciso dizer qual é o lado mais fraco da corda nessa história toda. Mesmo que seu protesto não dê em nada, o que não se pode negar é que Hermes Leal “descobriu” essa história dez anos antes de Grann – a quem aliás deu uma entrevista, quando o americano preparava seu livro. ”É sacanagem vir um cara aqui e copiar o trabalho da gente”, Leal já declarou. Dá para imaginar sua frustração quando o filme entrar em cartaz e arrecadar milhões de bilheteria…  

‘É um caso de colonialismo cultural’, diz o autor brasileiro

- A notificação da editora o surpreendeu? Qual será sua atitude de agora em diante, em relação ao assunto?

HERMES LEAL: Não me surpreendeu. Meus advogados alertaram que haveria uma reação natural em negar e nos ameaçar com um processo. E recebi realmente uma carta afirmando que, se eu não retirasse o que disse, seria processado. Mas respondi que não tinha feito uma acusação direta de “plágio”, até porque sei que meu livro não foi plagiado na forma da lei. Há formas e formas de se adaptar um texto para outro.

- Qual é exatamente sua acusação em relação ao livro de David Grann? Você se sente roubado?

HERMES: Me sinto um pouquinho roubado, mas nada que me deixe magoado pessoalmente. Nem acho o livro dele ruim. Sabia que a qualquer hora apareceria outro livro sobre o explorador, mas não tão baseado no meu. Há mais de 50 anos se tenta filmar a história do Fawcett, e nunca foi feito um filme porque não existia uma biografia dele. Mas existia. Levei muitos anos enfiado nas bibliotecas e percorrendo o Mato Grosso e a Bahia atrás de pistas. Encontrei, inclusive, cartas do Fawcett querendo comprar terras no Brasil. E, após um grande levantamento, incluindo a descoberta de seus diários, eu consegui juntar as peças dessa história. David esteve no Brasil há alguns anos e me entrevistou para uma matéria na revista The New Yorker. Quando voltou aos Estados Unidos, passou uns três meses pedindo fontes minhas para a matéria, mas na verdade ele já as estava usando para o livro. Tenho um monte de e-mails dele dizendo que iria me ajudar a lançar meu livro nos Estados Unidos, caso eu cooperasse. E ele pediu a um jornalista brasileiro em Nova York para traduzir o meu livro. Recentemente esse jornalista, Amaury Soares, viu o livro dele na redação e entrou em contato comigo. Em seguida, um grande cineasta brasileiro [Fernando Meirelles] recebeu uma cópia do livro enviada pelo Brad Pitt, sondando-o para dirigir o filme, e finalmente me foi enviado um exemplar. Tanto o David Grann como ele sabemos que há muito do meu livro ali dentro, apesar de ele também ter pesquisado e ter escrito um bom livro.

- Não havendo trechos literalmente coincidentes nos dois livros, você acha que sua acusação tem chances de prosperar? Seu objetivo é apenas provocar um debate?

HERMES: O lvro do David é muito bem escrito, e ele realmente soube usar as minhas pesquisas e o meu livro de forma a não reproduzir o meu texto literalmente. Como toda a história da relação dele com a Nina, que eu consegui por meio de uma entrevista da Nina dada na Suiça nos anos 50 para os Diários Associados. Enfim, são várias informações que exigiriam que ele se enfiasse por meses nos jornais brasileiros da época, para descobrir. Mas minha intenção nunca foi prejudicar ninguém. Espero que ele se dê bem com seu livro. Hoje sei que nunca ganharia uma batalha nessa linha de plágio, mas precisava sondar e analisar essa possibilidade. Era um direito meu.

- Você acha que esse episódio representa uma forma de colonialismo cultural? Por quê?

HERMES: É mais que uma forma de colonialismo cultural. Qualquer história que saia do Brasil para o mundo (com exceção do cinema) só tem valor se for feito por um americano ou europeu. Os próprios jornalistas brasileiros agem assim – no jornal O Estado de S.Paulo saiu um artigo imenso elogiando o autor americano por ter “descoberto” a história, sem sequer citar que existe uma boa biografia sobre o assunto no Brasil, já na quarta edição. O colonialismo cultural aparece nessas horas. Esse colonialismo existiu, existe e vai durar muito, ainda, porque o próprio brasileiro gosta de ser colonizado. Nada do que fazemos, bom ou não, existe para os americanos e ingleses especialmente. Fawcett agiu assim com as pessoas aqui no Brasil, especialmente com Rondon, e Grann fez o mesmo comigo. Então ele está copiando o lado ruim do Fawcett, que foi se promover à qualquer custa e não deixar um dedo de “fama” para alguma brasileiro, caso descobrisse a sua cidade perdida.

A PROGRAMAÇÃO DE HOJE NO CAFÉ LITERÁRIO:

logoEuclides da Cunha e Machado de Assis para jovens leitores? Luiz Antonio Aguiar, Luciana Sandroni, Rosa Amanda Strauz – Mediador: Barbara Pereira  12:00

Umbigo sem fundo: trauma e trama Dash Shaw, Fábio Moon e Gabriel Bá ( Os Gêmeos ) – Mediador: André Miranda  14:00

Quarenta anos formando e encantando leitores Ana Maria Machado e Ruth Rocha – Mediador: Cassiano Elek Machado 15:30

O abismo da história na ficção David Grann e Daniel Piza 17:00

Tornando-se adulto em páginas de romance Tim Winton e David Wroblewski – Mediadora: Claudia Nina  18:30

Quando a periferia se torna centro Zuenir Ventura, Ecio Salles e Sergio Vaz – Mediador: Cristiane Costa 20:00

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Qual o futuro da mídia?

sex, 11/09/09
por Luciano Trigo |
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Banalização da cultura na era da rede global é o tema da primeira mesa de hoje do Café Literário, na Bienal do Livro, às 17h, que reúne o jornalista Caio Túlio Costa e o teórico da mídia Andrew Keen, com mediação e Debora Garcia. Keen, autor do recém-lançado O culto do amador, é um provocador. Ele basicamente considera uma picaretagem a idéia da cultura colaborativa da Internet, que, ele afirma, vai nivelar por baixo e piorar a qualidade da informação.

Keen não está totalmente errado, na minha opinião. Um dos efeitos colaterais da democratização das tecnologias da informação é dissipar um pouco as fronteiras entre conteúdo produzido com conhecimento de causa daquele despejado sem qualquer critério na rede. Basta olhar os comentários dos internautas sobre qualquer notícia polêmica: os maiores disparates se tornam acessíveis a centenas de milhares de internautas instantaneamente.

Caio Túlio Costa, recentemente entrevistado neste blog, faz uma abordagem mais conservadora do fenômeno. No livro Ética, jornalismo e nova mídia, ele discute os aspectos morais que devem sempre pautar a atividade jornalística, sejam quais forem os impactos das novas tecnologias sobre a profissão. É uma discussão necessária, num momento em que as redes sociais, os blogs pessoais e ferramentas como o Twitter podem representar uma competição desagradável para as empresas de jornalismo. Como ainda não existe uma “etiqueta” consolidada nessa área, os novos padrões de comportamento (éticos, inclusive) estão sendo formulados no dia-a-dia.

Outras mesas de hoje:

Café Literário – “Escrevendo intimidade em território disputado” – David Grossman e Bernardo Ajzenberg – 19h

Auditório Euclides da Cunha – Encontro com Bernard Cornwell: “Mundos históricos, mundos imaginários”. Às 19h30

Mulher e Ponto – “Há vida depois dos 40 – Um novo filão nas estantes” – Miriam Goldenberg e Betty Milan – 20h

Feios, sujos e malvados

qua, 09/09/09
por Luciano Trigo |
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A mesa Do abjeto ao belo na nova ficção reúne nesta quinta (10) no Café Literário, às 18h, três escritores que têm em comum o gosto pela estranheza: Lourenço Mutarelli, André Sant’Anna e Ana Paula Maia. Chama a atenção o contraste entre a literatura de temas fortes e “sujos” dos três autores e a delicadeza discreta da mediadora, a jornalista Rachel Bertol: beleza e abjeção estarão de fato lado a lado, nessa mesa.

O paulista Lourenço Mutarelli é hoje conhecido sobretudo como autor de O cheiro do ralo, adaptado para o cinema por Heito Dhália (com o onipresente Selton Mello no papel principal). Sua prosa é urbana e nervosa, de frases curtas e alto impacto visual, na contracorrente de uma certa assepsia narrativa que têm prevalecido na nossa ficção. Mas Mutarelli é também autor de peças de teatro e de perturbadoras histórias em quadrinhos, com personagens depressivos e esmagados pelo cotidiano (o próprio escritor informa em seu site que já viveu várias crises de síndrome do pânico). Diomedes, um de seus anti-heróis, é um detetive de aparência grotesca e personalidade instável, que nunca resolve seus casos.

André Sant’Anna, filho do também escritor Sergio Sant’Anna, levou parte de sua experiência como músico (contrabaixista da banda Tao e Quao) e roteirista de publicidade para as páginas de sua ficção, também marcada por um texto simples e direto. Seus primeiros livros, no final dos anos 90, foram Amor e Sexo (nessa ordem). Gosto mais desses dois romances, na sua despretensão, que do mais ambicioso (mas menos bem resolvido) O paraíso é bem bacana, publicado pela Companhia das Letras em 2006. O mineiro André já se definiu num artigo como um “escritor de vanguarda, experimental, transgressor, jovem (como Mutarelli, ele nasceu em 1964) e contemporâneo”.

Ainda mais jovem (nasceu em 1977) é a carioca Ana Paula Maia, que se auto-apresenta assim, em seu blog Killing Travis (?): “A minha literatura é pulp no sentido em que a estabeleci. Pulp é polpa”. Ela apareceu com Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos – “uma novela pulp (…) que narra a saga de dois brutamontes que ganham a vida matando porcos e distribuindo-os em frigoríferos. Que divertem-se (sic) apostando o que ganham com os porcos em rinhas de cachorros. Tudo o que querem é ver os porcos pendurados em ganchos e os cães dilacerando-se. O resto, importa muito pouco”. É também autora de O trabalho sujo dos outros, em que explora aspectos grotescos da condição humana.

Veja a cobertura completa da XIV Bienal do Livro Rio

Uma cidade em ebulição

seg, 07/09/09
por Luciano Trigo |
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Döblin retrata Berlim dos anos 20 em épico filmado por Fassbinder

 

capaFoto 2Originalmente publicado em 1929, o romance Berlin Alexanderplatz, de Alfred Döblin, ganha uma nova tradução brasileira no momento em que também chega às prateleiras de DVDs a versão remasterizada da série televisiva, dirigida em 1980 por Rainer Werner Fassbinder. Escritor e cineasta parecem feitos um para o outro – ambos figuras polêmicas e contraditórias, ambos autores de obras radicais e perturbadoras, que merecem constantes releituras e revisões.

 

O livro conta a história de Franz Biberkopf, homem comum que, após uma temporada na prisão, começa a cumprir verdadeiramente sua pena quando é posto em liberdade. Apesar de prometer a si mesmo levar uma vida decente, ele é logo capturado por forças que mal compreende, numa cidade e num momento histórico – Berlim, anos 20 – nos quais a modernidade começa a se tranformar num pesadelo monstruoso. Com uma narrativa fragmentada e polifônica, Berlin Alexanderplatz costuma ser comparado a outros monumentos da literatura do século 20, como Ulisses, de Jame Joyce – monumentos diante do quais, diga-se de passagem, a produção literária contemporânea parece quase irrelevante.

 

O próprio Alfred Döblin foi um personagem representativo da época conturbada em que viveu. Filho de um alfaiate judeu de classe média baixa que abadonou a família, formou-se a duras penas em Medicina em Berlim, em 1905, mas, atraído pelo jornalismo e pela literatura, exerceu pouco a profissão. Considerado um dos fundadores do Expressionismo alemão, logo rompeu com o movimento – como romperia, mais tarde, com o Socialismo e com sua própria identidade judaica, ao se converter ao Cristianismo.  A experiência dolorosa da Primeira Guerra, onde serviu, e da subseqüente humilhação da Alemanha derrotada terminaram de moldar a sua personalidade solitária e contestadora. Nos anos 20, dividiu mesas dos agitados cafés berlinenses com Bertolt Brecht, Georg Grosz, Franz Werfel, Joseph Roth e Erich Maria Remarque.

 

cena do filmeMais do que um relato sobre o desmoronamento de um homem que é carregado pelos acontecimentos sem compreender o que se passa à sua volta (um tema tipicamente moderno, também presente no épico Um homem sem qualidades, de Robert Musil) - e acaba sendo irresistivelmente tragado pelo submundo e pelo crime, Berlin Alexanderplatz pode ser lido hoje quase como um documento histórico sobre a Berlim dos ano 20. Com variados recursos estilísticos – cortes bruscos, simultaneidade entre monólogo interior e acontecimentos  externos, técnicas de montagem quase cinatográficas que captam a agitação da modernidade urbana – Döblin constrói um painel multifacetado da cidade que era um laboratório explosivo de forças artísticas, economicas, sociais e políticas radicais.

Döblin produziu uma obra extensa, incluindo contos futuristas e uma trilogia de romances passados na Floresta Amazônica (?) na época da colonização, publicada na Alemanha em 1937 e inédita em outras línguas, além de um volume substancial de textos de não-ficção, resenhas e artigos em jornais e ate roteiros de cinema: o escritor fugiu para os Estados Unidos em 1940, chegando a trabalhar na MGM, em Hollywood. 

Voltando a Berlin Alexanderplatz: curiosamente, Rainer Werner Fassbinder optou por uma adaptação bastante fiel do romance, na série de quase 16 horas que dirigiu para a televisão alemã, agora disponível numa caixa com seis CDs, incluindo vários extras. (Uma primeira adaptação, para o cinema, já tinha sido feita em 1931, por Piel Jutzi, com colaboração do próprio Döblin.) Talvez o diretor maldito de Querelle e O casamento de Maria Braun tenha julgado que não era necessário acrescentar muita coisa, em termos de linguagem, àquilo que já estava no texto do romance. Sábia decisão.

Berlin Alexanderplatz, de Alfred Doblin. Tradução de Irene Aron. Martins Editora, 536 pgs. R$59,80

Berlin Alexanderplatzde Rainer Werner Fassbinder, versão restaurada em caixa com 6 DVDs (941 minutos). Versátil, R$ 149,90   

O cinema busca se reinventar

qui, 03/09/09
por Luciano Trigo |
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capaRecém-lançado nos Estados Unidos, o livro Reinventing cinema – Movies in the age of media convergence (“Reinventando o cinema – Filmes na era da convergência das mídias”), de Chuck Tryon, traz o debate sobre a convergência digital para a realidade prática de um mundo em transformação: nos Estados Unidos como no Brasil, o cinema enfrenta desafios que podem alterar completamente a nossa relação com o hábito de ver filmes. As salas de exibição passam a sofrer a concorrência cada vez mais forte da televisão digital, da Internet e mesmo dos telefones celulares. Novidades tecnológicas teoricamente democratizam a possibilidade de produzir conteúdo audiovisual, mas os grandes estúdios americanos continuam mandando e ocupando maciçamente os mercados em todo o mundo. Ou seja, uma indústria que sempre foi marcada pela incerteza e pela imprevisibilidade da demanda está mais incerta e imprevisível do que nunca, na medida em que novas forças passam a influenciar o mercado. Nesta entrevista, Chuck Tryon fala sobre a situação atual do cinema e o que pode acontecer num futuro próximo.

- Os modelos tradicionais de produção e distribuição estão sendo desafiados pelo compartilhamento de filmes na Internet e formas alternativas de consumo. Mais do que nunca, a economia da indústria audiovisual enfrenta um cenário de extrema incerteza. O que você acha que vai acontecer no futuro?

https://www.tft.ucla.edu/mediascape/images/AuthorTryon.jpgCHUCK TRYON: Em alguma medida eu acredito que, em vários aspectos, a distribuição do cinema vai continuar relativamente a mesma, especialmente no que diz respeito aos grandes estúdios. O público das salas de cinema, apesar de alguns períodos de queda na primeira metade da década, vem se mantendo relativamente estável, mas hoje os estúdios estão apostando mais fortemente em “franquias” de entretenimento, como Harry Potter e Transformers, para atrair o público em geral. Já a venda de DVDs vem caindo significativamente nos últimos anos, pelo menos nos Estados Unidos, em parte devido ao custo incrivelmente baixo de serviços de locação de DVDs. Como Netflix e Redbox, e isso pode efetivamente representar um desafio para os distribuidores num futuro próximo. Cineastas independentes freqüentemente são forçados a se tornarem mais criativos na distribuição, sobretudo porque os estúdios se concentram cada vez mais na produção e distribuição dos grandes filmes de franquia. Então começam a se desenvolver modelos que tornam mais viável a distribuição independente. Também estão em curso debates sobre o impacto da Internet com conteúdo gerado pelos usuários na recepção dos filmes de Hollywood, mas minha experiência diz que as novas práticas da Internet acabam redirecionando o interesse das pessoas de volta para os filmes ou programas de televisão, em vez de desviar o interesse desses espectadores potenciais para outro lugar. Por exemplo, o vídeo viral Seven Minute Sopranos, produzido por fãs do seriado, acabou sendo utilizado no marketing da última temporada da série.

- As noções convencionais sobre direitos autorais parecem não dar conta dessa circulação descentralizada – e muitas vezes não-autorizada – de conteúdos audiovisuais. Como lidar com esse movimento aparentemente irreversível e com as diferentes formas de pirataria? De que maneira as leis relativas a direitos autorais devem mudar, na sua opinião?

CHUCK: Meu livro só toca rapidamente na questão da pirataria de filmes, mas a minha impressão é que, na maioria dos casos, as “perdas” atribuídas à pirataria são altamente exageradas. Em alguns casos – como Tama leaver documenta em The Tyranny of Digital Distance — crier barreiras que impedem países de terem acesso a conteúdo na Web freqüentemente encorajam a pirataria, especialmente entre os fãs incondicionais de programas como Battlestar Gallactica. Muitos internautas estariam dispostos a pagar por esse conteúdo, ou acessá-lo por outros meios legais, mas graças a esse excesso de regulação, eles não podem fazê-lo. E, em alguns casos, o acesso gratuito pode gerar mais interesse no produto. No livro Free!, Chris Anderson cita o caso do Monty Python. Diante dos inúeros vídeos postados ilegalmente no Youtube, os detentores dos direitos, em vez de lutar para tirar os vídeos da rede, re-postaram os mesmos vídeos com melhor qualidade, mas que terminavam pedindo que os fãs comprassem DVDs e outros produtos do grupo. A iniciativa teve uma boa resposta, já que os filmes do Monty Python voltaram para as listas de mais vendidos, como resultado de se oferecer algum conteúdo online gratuitamente. Nos casos mais graves, direitos autorais muito restritivos podem prejudicar a criatividade, como aconteceu recentemente com o magnífico filme de animação de Nina Paley Sita Sings the Blues, que não pôde ser distribuído pelo modelo tradicional porque Paley cita diversas canções de blues de Annette Hanshaw no filme, mas não tem como pagar pelo seu licenciamento.  Em vez de uma política draconiana de controle, que só consegue punir um pequeno número de piratas digitais, leis mais flexíveis de direitos autorais poderiam beneficiar os produtores e o público.

- As novas tecnologias digitais estão alterando a nossa relação histórica com os filmes, que são cada vez mais assistidos fora das salas de cinema. Qual é o futuro do parque exibidor?

CHUCK: Eu acredito que as salas de cinema continuarão sendo um dos motores da indústria do cinema. Tanto os produtores quanto os exibidores estão investindo em técnicas que reforcem a diferença entre as experiências de ver um filme no cinema e em casa. O crescimento dos filmes em 3-D nos últimos dois ou três anos estão ligados ao desejo de oferecer algo novo nas salas de exibição, algo que não possa ser satisfatoriamente transferido para a tela da televisão. As salas também estão gradualmente se adaptando para a projeção digital dos filmes, muito embora esse processo tenha sido retardado pela crise na economia, que deixou muitos exibidores sem crédito para comprar esses equipamentos, que são caros. A projeção digital dará ás salas mais flexibilidade em termos do conteúdo a ser exibido, podendo incluir óperas e eventos esportivos. E os novos sistemas de distribuição vão provocar outros modelos. Nos Estados Unidos, o Independent Film Channel e a HD-Net freqüentemente disponibilizam conteúdo via TV a cabo no mesmo dia – em alguns casos até antes – em que o filme é lançado nas salas. Embora exista a preocupação de que essas práticas reduzam a capacidade competitiva dos exibidores, elas são cada vez mais aceitas e, em alguns casos, a exibição na TV a cabo gera resenhas positivas e propaganda boca-a-boca que encoraja os espectadores a assistirem ao filme no cinema.

- O cenário atual parece um pouco confuso, porque existe a tendência à concentração de propriedade da mídia em grandes conglomerados transnacionais, horizontalmente integrados, mas por outro lado as inovações tecnológicas permitem que a produção e a distribuição sejam muito mais baratas, facilitando a circulação de conteúdo audiovisual pelos pequenos atores…

CHUCK: De certa forma, está em curso uma guerra de poder, para saber quem ia controlar esses novos modelos de distribuição, e o modo como eles serão estruturados. É importante lembrar que novas plataformas de mídia freqüentemente provocam esse tipo de lutas pelo poder. Nos estados Unidos, foi a confusão engendrada pelos relatos contraditórios de rádio sobre o naufrágio do Titanic que fez o rádio deixar de ser um meio de duas vias para se tornar um broadcast, com provedores de conteúdo relativamente centralizados. Modelos similares de experimentação seguida de concentração também aconteceram com o cabo e a televisão aberta nos Estados Unidos. Os grandes conglomerados de mídia estão claramente fazendo experiências com o intuito de expandir ainda mais o seu raio de ação, enquanto criadores de conteúdo independentes – como a Brave New Films, de Robert Greenwald – continuam a prospectar nichos que lhes permitam disseminar conteúdos alternativos. Ao mesmo tempo, a simples cópia, armazenamento, apropriação e recirculação de conteúdos já existentes podem atrair a atenção para esses conteúdos, mais do que ter efeitos negativos ou subversivos. Embora essas formas de apropriação e recirculação possam muitas vezes produzir poderosas mensagens políticas – como no caso da apropriação que Phil De Vellis fez de um anúncio da Apple para criticar Hillary Clinton – em geral elas têm um impacto muito pequeno sobre as estruturas de poder essenciais.

- Os grandes estúdios conseguirão conservar seu poder?

CHUCK: Os estúdios devem conservar seu poder por algum tempo, pelas razões que você mesmo mencionou. Os modelos econômicos neoliberais que encorajam a desregulação permitiram que as companhias de mídia se integrassem horizontalmente, tornando-se ainda maiores. Existe uma ligeira tendência, nos Estados Unidos, a prevenir novos movimentos de concentração de propriedade da mídia, um movimento que, de forma intrigante, uniu grupos conservadores e liberais. Mas é muito difícil prever se esse movimento vai durar. Os estúdios de Hollywood também se beneficiam com essa integração horizontal, por causa das possibilidades de “promoção cruzada” em outras janelas, e esses estúdios têm um poder enorme de divulgar seus filmes, em alguns casos realizando campanhas de marketing com meses de antecedência em relação ao lançamento de um filme.

- Por outro lado, com a democratização da tecnologia, existe também o risco de um excesso de filmes ruins de diretores independentes ruins no mercado?

CHUCK: Eu não diria “um excesso”, simplesmente porque o prazer de criar alguma coisa – seja um longa ou um vídeo viral – que pode potencialmente entreter outras pessoas é sempre valioso. Mas eu encorajaria os diretores a refletir sobre as suas expectativas, reconhecendo que estão ingressando num mercado superpovoado e estruturado para promover os interesses dos grandes estúdios. Por outro lado, muitos cineastas independentes ou amadores estão descobrindo maneiras criativas de usar as mídias sociais – blogs, Facebook, o próprio Youtube – para alcançar um público muito maior que no passado. Esse cenário pode forçar os diretores a passarem mais tempo concentrados no marketing de seus filmes que pensando nos filmes em si. Mas essas redes de mídias sociais também podem servir como uma espécie de “sistema de filtro”, que permita aos consumidores mais atentos de filmes encontrar filmes menos conhecidos que atendam aos seus interesses.

- Fale um pouco sobre o conceito de “filme sem fim”.

CHUCK: O conceito de “filme sem fim” foi em parte tomado de empréstimo do produtor de cinema independente Ted Hope, e no meu livo eu uso também o conceito de “incompletude”, que adaptei de Nicholas Rombes. Minha idéia era que cineastas que estão tentando promover seus filmes podem atrair espectadores produzindo novos conteúdos ligados à trama do filme, para gerar interesse no filme original. Nos Estados Unidos, uma das tentativas recentes mais bem sucedidas de expandir o conceito do filme original foi Four Eyed Monster, de Susan Buice e Arin Crumley, um filme que descrevia o relacionamento amoroso dos dois e o projeto do próprio filme. Depois que o filme foi exibido em alguns festivais mas não conseguiu ser distribuído comercialmente, Crumley and Buice criaram uma série de podcasts que atualizavam as informações sobre a sua vida de casal – e por extensão, atualizavam a trama do filme. Os espectadores começaram a se envolver com esses podcasts, e a demanda pelo filme aumentou. Para mim, essa é uma abordagem particularmente atraente no caso de documentários, sobretudo se levarmos em conta que as histórias contadas nesses filmes continuam a se desenrolar, deixando os espectadores curiosos para saber mais sobre o destino dos protagonistas. Naturalmente, a idéia dos “filmes sem fim” beneficia não apenas aos diretores independentes e realizadores de documentários, mas também os próprios estúdios. Muitos filmes “de franquia” são acompanhados por videogames, vídeos no Youtube e sites de fãs que expandem o universo do filme, fazendo o espectador mergulhar mais fundo no filme e aumentando o seu envolvimento. Naturalmente, trata-se de uma forma de marketing e promoção, mas, quando é bem feita, também pode ser algo divertido e altamente enriquecedor.

- No mercado brasileiro, existe uma presença maciça de filmes americanos. Na verdade, no mundo inteiro – com poucas exceções, como a Índia – os mercados estão ocupados por produtos audiovisuais dos Estados Unidos, e esse mercado internacional já é essencial para a economia da indústria de cinema americana. Isso vai mudar?

CHUCK: Eu desconfio que isso vai mudar ligeiramente, já que as condições de produção e as redes de mídia for a dos Estados Unidos continuam a se desenvolver. Mas, em linhas gerais, as redes de distribuição vão continuar favorecendo os estúdios de Hollywood, porque muitas dessas franquias – especialmente os filmes de Harry Potter, mas também Transformers, Star Trek e Batman, entre outros – se adaptam bem a todos os mercados, em grande parte porque os atrativos visuais desses filmes fascinam mesmo aqueles públicos que não falam inglês. Por outro lado, não existem modelos de distribuição nem estilos narrativos permanentes. Esperamos que, à medida que a cultura global do cinema evolua, novas vozes criativas possam aparecer, de forma a democratizar verdadeiramente o cinema, de formas até hoje impensáveis.

LEIA TAMBÉM:

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Cultura Da Convergencia, de Henry Jenkins. Aleph, 368 pgs. R$59. Henry Jenkins investiga o alvoroço em torno das novas mídias e expõe as importantes transformações culturais que ocorrem à medida que esses meios convergem. Ele nos introduz aos fãs de Harry Potter, que estão escrevendo suas próprias histórias, enquanto os executivos se debatem para controlar a franquia. Ele nos mostra como o fenômeno Matrix levou a narrativa a novos patamares, criando um universo que junta partes da história entre filmes, quadrinhos, games, websites e animações

A Tela Global, de Gilles Lipovestsky e Jean Serroy. Sulina, 326 pgs. R$62. Na contramão dos discursos apocalípticos sempre em moda nos ambientes mais tediosos, Lipovetsky e Serroy sustentam que a profusão de imagens da atualidade não significa um empobrecimento da cultura nem a morte da arte ou a destruição da sensibilidade e da estética. A imagem é a representação de uma nova era, sem drama nem tragédia, aberta a finais felizes ou infelizes, feita de divertimento e de reflexão.

Cinema, Comunicação e Audiovisual. Org. de Gelson Santana. Alameda, 242 pgs. R$52. ’Cinema, comunicação e audiovisual’ discute assuntos como – o cinema de horror ou o grande cinema de Hollywood. Dentro destes temas, a ênfase dos ensaios que compõe o livro recai sobre alguns dos temas clássicos do cinema, como o problema da ficção cientifica ou do horror. Desta forma, os autores da coletânea dirigem seus olhares para os filmes populares indagando sobre as diferentes maneiras de produção, a experiência e as estratégias que levam aos modos de fabricação do consumo de massa

 



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