O lado humano do mito
Na esteira do filme Che, de Steven Soderbergh, três livros lançam novas luzes sobre o velho mito: Evocação, de Aleida March, sua viúva (Record, 240 pgs. R$39); Ernesto Guevara, também conhecido como Che, alentada biografia de Paco Ignacio Taibo II (Expressão Popular, 728 pgs, R$30); e De Ernesto a Che, de Carlos “Calica” Ferrer (Planeta, 238 pgs. R$34,90), o relato da segunda viagem empreendida pelo jovem Ernesto, antes de virar revolucionário. Antes, um breve comentário sobre o filme: é certamente correto e sincero, mas não empolga; Benicio Del Toro interpreta um Che pesado, cansado e enfadonho, que não transmite em momento algum o carisma associado ao personagem. A reconstituição da campanha em Sierra Maestra, que ocupa a maior parte da narrativa, revela preocupação com a fidelidade à História (o filme teve consultoria de Jon Lee Anderson, autor do excelente Che – Uma biografia – Objetiva, 924 pgs. R$93,90), mas não chega a impressionar uma platéia acostumada à guerra diária de facções do tráfico. São muitas as nossas Sierras Maestras, lamentavelmente.
Voltando aos livros: em <em><strong>Evocação</strong></em>, Aleida March, que viveu oito anos e teve quatro filhos com o Che (três deles aparecem na foto acima), quebra 40 anos de silêncio num relato em primeira pessoa que humaniza o mito. Hoje com 75 anos, Aleida não faz exatamente grandes revelações, mas cativa o leitor pela ternura com que rememora os episódios que viveu com o marido, num texto entremeado de transcrições de cartas e fotografias inéditas. Pai amoroso, mas compreensivelmente ausente (já que vivia ocupado tentando transformar o mundo), o Ernesto Guevara que emerge das páginas de Evocação é bem humorado e irônico, seja no convívio doméstico, seja nas cartas que envia à esposa em suas longas viagens – num cartão postal enviado de Paris, por exemplo, após a fracassada campanha africana, ele a compara a um quadro de Leonardo da Vinci que viu no Louvre, “gordinha e séria, com um sorriso um pouco triste, esperando o amado distante (será quem eu acho, ou outro?)”. Todas as cartas de amor são mesmo ridículas…
Outro retrato afetuoso faz Carlos Ferrer, a.k.a. Calica, ao reconstituir a viagem que fez com Ernesto da Argentina à Venezuela, em 1953 - para se encontrarem com Alberto Granado, o companheiro da aventura de que trata o bonito filme Diário de motocicleta, de Walter Salles. O próprio Che registrou suas impressões dessa viagem num livro editado no Brasil com o título Outra vez (Ediouro, 236 pgs. R$29). Depois que se separou de Calica, ele prosseguiu viagem por diversos países da América Latina, até o encontro decisivo com Fidel Castro no México, já em 1956. O texto de Ferrer é sóbrio e puramente rememorativo, sem qualquer pretensão ensaística, e evita a armadilha de projetar no Ernesto viajante a aura mítica do revolucionário em que ele só se transformaria mais tarde.
A biografia escrita Paco Ignacio Taibo II, Ernesto Guevara, também conhecido como Che, é excelente, embora acrescente pouco, em informação, à já citada, de Anderson, ou, em profundidade de análise, a Che Guevara – Uma vida em vermelho, de Jorge Castañeda (Companhia das Letras, 696 pgs. R$31). Mas se trata de uma trajetória tão fascinante que não cansa relê-la de diferentes maneiras, e o texto de Taibo é fluente, dividido em capítulos curtos e bem encadeados (além disso, o livro, um calhamaço, custa somente R$30, o que sugere que preços mais baixos nas estantes das livrarias são viáveis – e compensam, pois o lançamento da Expressão Popular está entre os 20 mais vendidos de não-ficção já há algumas semanas).
Por fim, Ernesto Che Guevara também aparece como protagonista num interessante e recém-lançado ensaio, Os intelectuais cubanos – A política cultural da Revolução: 1961-1975, de Silvia Cezar Miskulin (Alameda, 304 pgs. R$42), que analisa de forma aprofundada e cética os embates ideológicos travados nos bastidores do regime de Fidel – no qual Che teve participação decisiva, nos primeiros anos após a Revolução Cubana. Percebendo a importância estratégica da cultura – o que não acontece em muitos países – o governo revolucionário logo criou jornais, editoras e suplementos literários, além de patrocinar a produção plástica, musical e cinematográfica, mas a um custo elevado em termos de censura e perseguições políticas, o que acabou levando ao exílio escritores como Reinaldo Arenas e Gullermo Cabrera Infante.