A Cesare o que é de Cesare
Memórias do refugiado político italiano Cesare Battisti mostram relação de amor e ódio com seu delator
Na cobertura jornalística do caso Cesare Battisti, passou despercebido pela grande imprensa (esperemos que não pelas autoridades competentes) o fato de que já foram lançadas no Brasil as memórias do refugiado político italiano, que conta em detalhes a sua versão sobre os crimes de que é acusado. Minha fuga sem fim (Martins, 288 pgs. R$47,30) é um relato impressionante: Battisti recapitula a sua trajetória de militância política, suas prisões e fugas e sua experiência na clandestinidade. Explica sua atuação no grupo terrorista PAC – Proletários Armados pelo Comunismo, no contexto dos anos de chumbo na Itália dos anos 70. E dedica boa parte do livro – que tem prefácio de Bernard-Henri Lévy e posfácio de Fred Vargas - a analisar sua conflituada relação com Pietro Mutti, apresentado como amigo e traidor, salvador e delator. Já nos primeiros capítulos, Battisti rememora o início dessa relação e faz revelações surpreendentes: os dois compartilharam mulheres, na mesma cama, aí incluída a esposa do ex-terrorista arrependido Mutti:
“Depois de algum tempo, passamos a partilhar as noitadas no bar, mas também, às vezes, a mesma cama e a mesma garota. (…) O vinho abolia as minhas reticências e a cama era suficientemente grande para três. Ela era a mulher dele, estavam casados havia dois anos. (…) Cheguei a me perguntar se deveria admirá-lo ou me sentir culpado. Mas era um pensamento apenas, que não me impediu de fazer amor com a mulher dele na presença dele. Claro, sua absoluta falta de ciúmes não deixava de me intrigar.”
Como se sabe, Battisti, atualmente preso no cárcere da Polícia Federal em Brasília, é também escritor de romances policiais e revela talento para manter o interesse da narrativa. Minha fuga sem fim pode ser lido como uma bem encadeada peça de defesa, capaz de angariar a simpatia de muitos leitores. O caso é complexo e envolve um debate jurídico delicado, pois põe confronta diferenças entre as legislações dos países envolvidos (Itália, França e Brasil). Mas, no fim das contas, se o que importa é saber se Battisti teve ou não participação direta nos quatro assassinatos que lhe imputam (e pelos quais foi condenado á prisão perpétua em seu país), e como ele nega peremptoriamente ter cometido esses crimes, o leitor fica na posição de juiz supremo, a quem cabe decidir se Battisti está mentindo ou dizendo a verdade, e a quem cabe avaliar a responsabilidade moral de quem pegou em armas ou exortou outros a fazê-lo, mesmo por uma causa nobre. O que é dificílimo.
Minha fuga sem fim se lê como um romance, no qual tão interessante quanto as reflexões sobre o conturbado contexto político dos anos 70 é a reconstituição da relação de Battisti com Mutti, e não apenas por suas aventuras sexuais. Depois de se envolver, na primeira juventude, com pequenos furtos e assaltos à mão armada, Battisti foi preso pela primeira vez. Solto após dois anos, entrou no PAC, movimento subversivo liderado por Mutti – um dos mais de cem grupos armados da esquerda radical em ação no país, naquele momento. Battisti afirma que decidiu largar as armas quando soube do assassinato de Aldo Moro, em 1978, mas continuou clandestino e no ano seguinte foi preso. Seu testemunho sobre esse período é assustador:
“No final de 1980, abateu-se sobre a Itália a mais violenta repressão. Não vou repisar o estado de emergência, a suspensão de alguns artigos da Constituição, as execuções sumárias. Tudo isso é conhecido. Mas, nesse período, o pânico tomara conta do nosso meio carcerário e corroía o coração e a cabeça dos detentos, inclusive dos irredutíveis que não ousavam confessá-lo. Quanto a mim, estava apavorado com os súbitos sumiços de prisioneiros. (…) Alguns reapareciam dois, três meses depois, em condições psíquicas assustadoras. Outros nunca mais eram vistos”.
Naquele momento, pesava sobre Battisti apenas a acusação de integrar um grupo armado, de forma que ele conseguiu ser transferido para uma prisão comum – de onde fugiu, em outubro de 1981, com a ajuda de… Pietro Mutti, com quem tinha rompido. No ano seguinte, seria a vez de Mutti ser preso – e supostamente torturadom – após o que decidiu mudar de lado e acusar antigos companheiros, em troca de redução da pena e outros benefícios. Battisti já tinha fugido para a França, onde a doutrina Mitterrand beneficiava criminosos políticos que se comprometesse a abandonar as armas. Lá se casou, teve duas filhas, depois viajou para o México, onde passou oito anos. Enquanto isso, os processos contra ele corriam, na Itália. Voltando a Paris no final dos anos 90, voltou a ser preso em 2004, já sob o governo de Jacques Chirac. Fugiu para o Rio de Janeiro antes que um novo pedido de extradição fosse julgado – na Itália, ele iria diretamente para a cadeia, cumprir pena perpétua, sem direito a novo processo. Enquanto vivia clandestinamente em Copacabana, Battisti publicou na França Minha fuga sem fim. Ele escolheu o Brasil como destino justamente porque a nossa legislação protege da extradição estrangeiros acusados de crimes políticos. Mesmo assim foi preso, em março de 2007, numa ação conjunta das polícias francesa e brasileira.