Os livros da semana

dom, 28/09/08
por Luciano Trigo |
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Performance nas artes visuais, de Regina Melim. Jorge Zahar Editor, 80 páginas, R$22   Teoria da vanguarda, de Peter Bürger. Tradução de José Pedro Antunes. Cosac Naify, 272 páginas, R$ 39

É impossível entender o estado da arte contemporânea sem uma contextualização histórica das diferentes práticas definidas como performance, que viveram seu auge nas vanguardas dos anos 60 e 70, mas cujas primeiras manifestações se deram já nas primeiras décadas do século 20. Performance nas artes visuais, da pesquisadora Regina Melim, é um bom guia introdutório sobre o assunto.

Como os happenings, a performance se originou de três vontades paralelas: a de romper com os suportes convencionais;  a de rejeitar o sistema comercial baseado nos museus e galerias; e a de fundir arte e vida. Nesse processo, a arte se aproximou do teatro, da poesia, da música e do vídeo, e por isso mesmo é difícil definir os seus limites: ela pode ou não contar com a participação dos espectadores (aliás, pode nem ter espectadores); pode ou não ter um roteiro prévio preciso; pode ou não ser reproduzida em outro tempo e local. Por tudo isso, ela depende de registros fotográficos, ou de depoimentos a respeito, ou de outros vestígios de sua realização.

O problema é que esses registros foram apropriados pelo sistema comercial, de forma a reinserir a performance numa lógica de mercado – com a qual, originalmente, ela pretendia romper. Dessa forma, mesmo artistas radicalmente críticos dessa lógica, como Joseph Beuys (na foto, durante a performance I like America and America likes me, em 1974) e o grupo Fluxus, hoje têm cotações altíssimas, realimentando um sistema que pretendiam combater.

A história das performances registra alguns episódios extremos, sobretudo quando elas se ligaram aos artistas mais radicais da body art, que expliraram elementos sensoriais e, em alguns casos, masoquistas. O americano Chris Burden, levou um tiro e se crucificou no capô de um fusca. E reza a lenda (muito contestada) de que Rudolf Schwarzkogler morreu após fatiar seu próprio pênis num ato performático, em 1969. Tudo em nome da arte.

Regina Melim desenvolve há anos uma pesquisa consistente sobre proposições artísticas contemporâneas associadas aos conceitos de participação e experimentação, e à criação de novos espaços relacionais entre artista e público. Sua leitura da performance é abrangente e generosa: ela enxerga com otimismo a infindável série de variações e releituras presentes nos vídeos, instalações, desenhos, filmes, textos, fotografias – e até nas  esculturas e pinturas – de artistas contemporâneos.

A multiplicidade e a diversidade são características aparentes da produção artística pós anos 80. Não por coincidência, esse período testemunhou a falência da crítica de arte, a diminuição do papel do crítico ao de testemunha, e não mais juiz, da obra de arte. Performance nas artes visuais não escapa inteiramente disso: traz informações e ferramentas valiosas, mas sua análise parece rejeitar qualquer hierarquia de valor. Ainda assim é uma leitura compensadora e útil.

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Embora não se restrinja às artes plásticas, abrangendo também a literatura, em vários aspectos a leitura do clássico Teoria da vanguarda, do alemão Peter Bürger, é complementar à de Performance nas artes visuais. Finalmente lançado no Brasil (a edição original é de 1974), o livro permanece atual na maioria de suas reflexões.  Bürger faz uma distinção fundamental entre “modernismo” e “vanguarda”, termos que se confundem na cabeça de muitas pessoas. Modernismo diz respeito à uma evolução formal estética, enquanto vanguarda implica uma ruptura na própria forma de vida. Partindo daí, ele classifica o Cubismo e o Abstracionismo como os mais importantes movimentos modernistas do século 20 – e Picasso e Kandinsky como seus maiores artistas. Por outro lado, movimentos como o Construtivismo russo, o Dadaísmo e o Surrealismo (e artistas como Tatlin, Rodchenko e Marcel Duchamp) são representativos de rupturas vanguardistas, cuja relevância transcende questões puramente estéticas. 

A parte do livro que ficou um pouco datada são as longas digressões teóricas sobre o pensamentoe estético de Lukács, Adorno, Benjamin e outros pensadores associados ao marxismo ocidental. Por outro lado, Bürger, já em 1974 – antes, portando, que o fenômeno do pós-modernismo chegasse ás artes plásticas – desenvolve uma crítica radical e, de certo modo, profética, sobre o aparato de produção e distribuição da arte, bem como às estratégias que determinam a recepção de cada obra, crescentemente atrelada aos imperativos do mercado, que esvaziam seu impacto social. A verdadeira vanguarda, ele afirma, rejeita esse aparato, afirmando a necessidade de que o artista se engaje numa permanente autocrítica. Caso contrário, museus, galeria e bienais correm o risco de se transformar em cemitérios de propostas vazias, sem laços com a vida real.

 Bürger avalia as vanguardas segundo a sua capacidade de promover uma reaproximação entre a arte e a vida. Na época em que seu livro foi lançado, artistas como Broodthaers, Daniel Buren, Hans Haacke e Michel Asher estavam empenhados em criticar a institucionalização da arte. Hoje, com raras exceções, os artistas contemporâneos correm de braços abertos para as instituições, o mercado e a cultura da celebridade, mesmo quando adotam um discurso rebelde e supostamente anti-burguês. É, possivelmente, um sintoma do triunfo do neoliberalismo também nas artes plásticas.

Entrevista: João Gilberto Noll

qui, 25/09/08
por Luciano Trigo |
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noll-foto-1.JPGcapa-noll.jpgEm Acenos e afagos, seu novo romance, que acaba de ser lançado pela editora Record, o escritor gaúcho João Gilberto Noll narra sem pudores a história de um homem que abandona uma vida monótona e parte em busca de sua verdadeira identidade – e no processo, se desembaraça aos poucos de suas características masculinas para se tornar, emocional e psicologicamente, uma mulher. Escrito em um único parágrafo e pródigo em cenas fortes, trata-se de uma espécie de “epopéia libidinal”, na qual o protagonista mergulha movido por um desejo sexual neurótico, sem saber ao certo qual será o seu destino. Sem se ater aos limites do realismo, o romance flerta com o fantástico, mas sem perder em momento algum o rigoroso controle da escrita que caracteriza toda a obra de Noll. Acenos e afagos é talvez o livro mais radical de um escritor que desde a sua estréia, em 1981, com A fúria do corpo, vem estabelecendo uma relação quase carnal com a literatura.

 

G1: O personagem-narrador de Acenos e afagos define a própria existência como uma epopéia libidinal. É a libido que move a sua escrita? E como mudou essa relação entre libido e literatura, de A fúria do corpo até seu novo romance?

JOÃO GILBERTO NOLL: A diferença é que na Fúria existe uma sexualidade triunfalista, aquela que resulta numa elevação a partir da abjeção libidinal; já no Acenos, não. O que seria a gradativa troca de gênero sexual? Me parece ser uma imolação: renunciar à casca do homem para ingressar dolorosamente no padrão feminino, para reter seu homem. Os personagens despencam passo a passo para uma espécie de imolação. Só o protagonista tem a experiência do amor total, do amor eterno, como dizia Nelson Rodrigues. É um amor que dura a vida toda, da infância à sepultura. A fúria também expõe um caso assim, de uma relação radical, com diversas crispações no  meio do caminho. Acenos lembra às vezes A fúria, porque ambos colocam em jogo isso que chamei de epopéia libidinal. São seres que só se justificam no mundo com a entrega incondicional ao gozo. Só que na Fúria há anjos decaídos pelas ruas de Copacabana. Reviram as latas de lixo tentando encontrar o que comer. E ao mesmo tempo são reis. Descendem de uma dinastia da classe média – repito, decaída. E agora estão ali, ainda loucos de tesão, desta vez numa troca homoerótica. Durante a revisão do texto, comprovei definitivamente que eu trato desde o início com o mesmo personagem, mesmo que não haja, de um livro para outro, uma continuidade explícita. O contextos dramáticos podem se diferenciar, mas o homem está ali, sem nome, e ele habita em mim.

 

G1: Como o personagem Orlando, de Virginia Woolf, o protagonista vai aos poucos descaracterizando seu sexo, à medida que assume sua paixão por um amigo. Isso sugere uma busca pela superação dos papéis sexuais convencionais, ou ao menos uma dissociação entre o gênero e a sexualidade. É isso mesmo?

NOLL: É difícil eu observar os meus livros com essa clave tão intelectiva. É o seguinte: eu sinto meus personagens como seres projetados do inconsciente para a tela. Como os pintores expressionistas, que costumavam projetar a tinta na tela, não preocupados de antemão com as significações daquilo.  Se eu tiver alguma coisa a oferecer ao leitor, isso vem do fato de que eles – e eu -  trabalhamos numa construção às cegas, sem partir de temas abstratos, como o plano social ou político. Houve um tempo em que se acreditava que a literatura fosse um referendo a credos políticos, ideológicos, e tal. Essas coisas abstratas não me ajudam a escrever. No meu caso, o que ajuda à escrita, é uma sintonia visceral com o motor do inconsciente. E, para me arregimentar com saúde para essa viagem nada programada, eu começo o trabalho me jorrando através das palavras. Nesse início, aliás, as frases servem apenas para deixar o inconsciente passar, e esse processo me dá o tom, até então imprevisível. Depois do fim da narrativa, eu volto ao começo para refazê-la, já que aquilo ali era só um aquecimento, um tatear no escuro, um exercício para que eu pudesse encontrar a ficção. Acho que jamais escreverei um livro baseado em fatos históricos, sociais ou econômicos. Me identifico plenamente com aqueles versos de Drummond, “Mundo, mundo, vasto mundo/ mais vasto é o meu coração”. Eu quero a subjetivação sofrida. Escrevo compulsivamente sobre as torturas da alma que não exibimos no meio social.

 

G1: Seus personagens são amorais, mas a tensão entre a moral e a culpa é um elemento constante na sua ficção… A insubmissão não é uma forma de permanecer preso à convenção? 

NOLL: De novo eu diria que não há nenhuma ideologia na escrita de minha literatura. Tenho a impressão de ser um dos escritores brasileiros da minha geração mais estudados em mestrados e doutorados. Conheci alguns estudos extraordinários. Amo que tais acadêmicos iluminem meus olhos diante do meu próprio trabalho.Quando escrevo, pareço um jazzista improvisando, entende? Por isso e por outras coisas, não consigo me ater a questões transgressivas ou amorais. Agora, realmente, dizer que não tenho o histórico dos meus personagens seria uma bobagem, embora eu não escreva exatamente autobiografias. As  significações, para mim, são a posteriori.

 

G1: Seus personagens são transgressores, desajustados, errantes. Mas transgredir parece cada vez mais difícil num mundo em que a própria rebeldia é rapidamente enquadrada pelo mercado. Como você lida com isso? Em que medida ainda é possível transgredir, na vida e a literatura?

NOLL: Eu não consigo vestir terno e partir para uma reunião com executivos. Por quê? Simplesmente porque eu não fui criado para isso. Fui criado para ser cantor lírico. Eu não uso terno não para recusar o mundo dos almofadinhas, não uso porque a minha história é outra. Eu cantava Ave Maria de Schubert em casamentos, festas do colégio e até num enterro. Desde a mais tenra idade eu já queria ser artista. Fazer cinema, ser ator, cantor… Desconfio de que houvesse aí a máquina materna em ação. Aliás, viva a mãe, pois adoro a face literária em que vivi e vivo.O meu perfil é associado às atmosferas de minhas ficções, desde a infância até aqui. Eu sempre quis retratar o detalhe esquivo. Sem ser com isso  um escritor intimista. Intimismo para mim é nome feio. É coisa psicologista, de apreensão de estados de alma de quem não tem mais no quê pensar. Eu sempre corri atrás de uma literatura metafísica. Escrevo muitas vezes ao som de Bach. Talvez porque na infância eu tenha sido um coroinha católico. Depois que fiquei ateu, quis migrar então para as coisas metafísicas: morte, vida, a solidão planetária etc. E nós vivemos numa cultura com baixa capacidade para a abstração. Mas é claro que a experiência empírica dá muito conteúdo aos meus livros. O inconsciente não é oco.

 

G1: Com que escritores do passado e do presente você dialoga?

NOLL: Eu devo muito desses esboços de empirismo à minha leitura dos escritores americanos. Também já amei muito Clarice Lispector, e na minha formação a cultura francesa era uma cidadã inconfundível. E trago comigo um gosto muitíssimo especial pela poesia. Daí inclusive nasce uma escrita de prosa em sintonia com o plano poético e/ou musical, com sintaxes voluptuosas e enormes, pela necessidade de dizer tudo ao mesmo tempo. Não vivemos hoje a supremacia do emergencial? O estilo em mim é qualquer coisa de somatização. As aberrações querem contribuir também para um resultado estético. A materialidade das palavras, o som, pode valer tanto ou mais do que o enredo. Sendo assim, posso enumerar os poetas T.S. Eliot, Camões, Fernando Pessoa, Drummond, mas também Clarice, Henry Miller, Doris Lessing, Camus, por aí…

 

G1: Outra tensão presente na sua literatura é aquela entre o consciente, as decisões racionais dos personagens, e o inconsciente, os impulsos instintivos e primitivos que movem muitas vezes o seu comportamento. Você sofreu influência de Freud e da psicanálise?

NOLL: Muita. Até porque, em algumas ocasiões, eu me submeti ao processo psicanalítico. Daí se explica que eu ame tanto as coisas submersas no inconsciente. Acho que elas são uma matéria nobre para a literatura. O Graciliano Ramos de “Angústia” evidencia muito o que quero dizer. Li não sei onde que ele se envergonhava dessa obra. Desdenhava coisas assim, quase sem controle. Pelo menos diante dos cânones do Partidão, ele ensaiou um mea-culpa.

 

G1: Nos anos 60 e 70, o escritor e o intelectual pareciam ter um poder de intervenção e reverberação na sociedade maior que hoje. A literatura corre o risco de virar uma espécie de lazer sofisticado de um pequeno grupo?

NOLL: Olha, não é o que eu sinto. Considero a banda dos que vêm chegando quase um renascimento da literatura brasileira, tem para todos os gostos: naturalistas, prosadores de fundo poético, policiais… Eu tenho tido muitos contatos com leitores, quando costumo ler trechos de livros meus. Gente entusiasmada por estar em contato com escritores vivos. Leio para auditórios repletos. Quando cheguei, em 1980, com meu primeiro livro, pouca gente surgia. Hoje eu convivo com os novos, e decididamente não parece que eu seja um escritor velho e nem eles, novatos.  

 

G1: Você acha que os editores brasileiros estão mais profissionais, maduros e competentes, desde que você começou sua carreira?

NOLL: Aqui e ali melhoraram. Algumas editoras distribuem com mais força. Mas, sinceramente, ainda é uma relação difícil. Os autores novos, talvez, venham a conhecer um sistema editorial menos feudal. Torço por eles. As coisas estão se azeitando mais, não custa acreditar.

 

G1: Como analisa a cobertura de livros na imprensa, a qualidade dos textos, o espaço que é dado? Isso está melhorando ou piorando? Em que medida a Internet pode mudar esse cenário?

NOLL: Quanto à internet não posso falar. Claro, uso o Word, mando e recebo e-mails, mas só de vez em quando navego. Tenho impressão de que o espaço na imprensa de papel está meio devagar atualmente. Bem menos espaço, comentários ligeiros, uma certa maçaroca quando o repórter entrevista o autor e comenta ao mesmo tempo o livro em questão. Um hibridismo preguiçoso. Às vezes as respostas dos autores entram como opiniões do repórter.

 

Trecho::

 

           “Lutávamos no chão frio do corredor. Do consultório do dentista vinha o barulho incisivo da broca. E nós dois a lutar deitados, às vezes rolando pela escada da portaria abaixo. Crianças, trabalhávamos no avesso, para que as verdadeiras intenções não fossem nem sequer sugeridas. Súbito, os dois corpos pararam e ficaram ali, aguardando. Aguardando o quê? Nem nós sabíamos com alguma limpidez. A impossibilidade de uma intenção aberta produzia essa luta ardendo em vácuo.”

 

Os vencedores do Jabuti

ter, 23/09/08
por Luciano Trigo |
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A Câmara Brasileira do Livro divulgou há pouco os vencedores do Prêmio Jabuti – três em cada uma das 20 categorias. Mas os melhores livros do ano, em Ficção e Não-Ficção, só serão conhecidos na cerimônia de entrega das estatuetas, no dia 31 de outubro. O Jabuti 2008 tem uma premiação total de R$120 mil: R$3 mil para primeiro lugar de cada categoria, e R$30 mil para os dois melhores do ano. A comissão julgadora analisou 2.141 obras ao todo, e a lista divulgada hoje traz algumas surpresas. Seguem os títulos premiados, seguidos de alguns comentários, nas categorias principais:

Romance

1. O filho eterno, de Cristóvão Tezza (Record); 2. O sol se põe em São Paulo, de Bernardo Carvalho (Companhia das Letras); 3. Antonio, de Beatriz Bracher (34)

O romance de Tezza, sobre os conflitos vividos por um homem que tem um filho com Síndrome de Down, cativou público e crítica, sobretudo pela sinceridade com que o narrador expõe suas inseguranças no difícil aprendizado de conviver amorosamente com o menino. O sol se põe em São Paulo é mais ambicioso, ao misturar diferentes cenários, tempos e linhas narrativas, mas também um pouco confuso.

Poesia

1. O outro lado, de Ivan Junqueira (Record); 2. O xadrez e as palavras, de Marcus Vinicius Quiroga (edição do autor); 3. Tarde, de Paulo Henriques Britto (Companhia das Letras)

Infância, religiosidade, amor e morte são os temas dos 36 poemas escritos entre 1998 e 2006 e reunidos pelo acadêmico Ivan Junqueira em O outro lado. Louvável a iniciativa da CBL de premiar também uma edição independente, o excelente O xadrez e as palavras.

Contos

1. Histórias do Rio Negro, de Vera do Val (Martins Fontes); 2. A prenda de seu Damaso, de Jorge Hausen (edição do autor); 3. Fichas de vitrola, de Jaime Prado Gouvêa (Record)

Paulista radicada na Amazônia, Vera do Val escreve contos movidos basicamente pelo deslumbramento diante da natureza e dos seres encantados que habitam a floresta. Compara o Rio Negro a um “macho fertilizador” que gera a selva, e coisas parecidas. Gosto mais da irona dos contos do pouco conhecido escritor mineiro Jaime Prado Gouvêa, da mesma geração de Sergio Sant’Anna e Luiz Villela.

Reportagem

1. 1808, de Laurentino Gomes (Planeta); 2. O massacre, de Eric Nepomuceno (Planeta); 3. Bar Bodega – Um crime de imprensa, de Carlos Dornelles (Globo).

O fenômeno de vendas 1808, de Laurentino Gomes, não é exatamente uma reportagem, e como estudo de História sobre a chegada da Corte ao Brasil, gosto mais do livro Império à deriva, de Patrick Wilcken, sobre o qual pouca gente falou. Mistérios do mercado.

Biografia

1. Rubem Braga – Um cigano fazendeiro do ar, de Marco Antonio de Carvalho (Globo); 2. D.Pedro II, de José Murilo de Carvalho (Companhia das Letras); 3. O texto ou a vida, de Moacyr Scliar (Bertrand Brasil).

Marco Antonio de Carvalho passou 10 anos pesquisando a vida do cronista Rubem Braga e escreveu uma biografia seguindo a escola americana, rigorosa e cheia de detalhes (às vezes até em excesso). Falta um pouco de charme ao texto, contudo. Mas a simples ausência de Fernando Morais e Ruy Castro na categoria já é uma surpresa.  

Os livros da semana

dom, 21/09/08
por Luciano Trigo |

capacarrere.jpgCom uma narrativa ambiciosa, que desfaz as fronteiras entre a autobiografia e a ficção, Um romance russo, de Emmanuel Carrére (Alfaguara), envolve o leitor numa viagem ao mesmo tempo geográfica, psicológica e emocional. O narrador-protagonista é o próprio escritor, que parte com sua mulher, a jovem e bonita Sophie, para Kotelnitch, uma cidade no interior da “Rússia profunda”. Com o projeto de realizar um documentário sobre um personagem obscuro, que passou décadas internado num hospital psiquiátrico após ser capturado pelo Exército Vermelho no final da Segunda Guerra, Carrère recolhe testemunhos de moradores, encontra cartas perdidas e, aos poucos, recompõe um episódio doloroso de sua própria história familiar – envolvendo seu avô, suspeito de colaborar com os nazistas. Paralelamente, seu relacionamento com Sophie começa a desmoronar, à medida que ele percebe não ser o único homem na sua vida. É um relato marcado pela exposição total, sem disfarces, das fraquezas e inseguranças do autor, de seu ciúme doentio e de seus impulsos autodestrutivos, de suas fantasias sexuais e de seus bloqueios, mas também de sua luta sincera por aquilo que ama. Além disso, é um livro com uma estrutura intrigante, que revela seu próprio processo de construção, sem subterfúgios nem “truques” literários. Do mesmo autor já foram lançados no Brasil a reportagem O adversário e os romances O bigode e Férias na neve.

lasarcapa.jpgEm Lasar Segall: arte em sociedade (Cosac & Naify), o professor da USP Fernando Antonio Pinheiro Filho envereda por duas trilhas pouco exploradas nos ensaios sobre o artista. Primeiro, ele recupera a importância dos trabalhos decorativos de Segall, feitos por encomenda para a alta sociedade paulistana das décadas de 20 e 30 (e todos hoje desaparecidos) – a mesma alta sociedade que rejeitara, num primeiro momento, a arte modernista. Segundo, revela como a bem-sucedida trajetória do pintor se entrelaçou com uma estratégia de inserção nos círculos sociais que patrocinavam a atividade artística. Radicado em São Paulo em 1923, o lituano Lasar Segall (1891-1957) logo passou a freqüentar os barões do café e os salões aristocráticos de São Paulo, o que logo lhe rendeu uma primeira encomenda, de Olivia Guedes Penteado. O trabalho foi elogiado por Assis Cheateaubriand, e logo vieram novos projetos, sobretudo de cenografia, numa relação de interesses mútuos  que determinou, em mais de um sentido, os rumos da arte de Segall – sobretudo a partir da criação da Sociedade pró-Arte Moderna (Spam), en torno da qual gravitou a vida artística de São Paulo, no começo dos anos 30. Segall defendeu a idéia de uma arte moderna que não se limitasse aos salões sofisticados, integrada com a sociedade e voltada para o grande público. Com esse espírito, a Spam promoveu bailes escandalosos - e acabou sendo fechada, em 1934, por intelectuais e jornalistas integralistas, que viam nela um “antro de dissolução dos costumes”   

capa-harvey.jpgUm bom guia para se entender a crise econômica que está abalando o planeta é Neoliberalismo – História e implicações, de David Harvey (Loyola), uma bem fundamentada análise das origens e da (possivelmente curta) história do movimentado estágio do capitalismo que começa no final da década de 70 e, para muitos, pode estar terminando agora. Após o “laboratório” no Chile, quando a receita neoliberal foi implantada à força pelo regime de Pinochet, Harvey mostra como os Estados Unidos, com Ronald Reagan, a Inglaterra, com Margaret Thatcher, e a China, com Deng Xiaoping, promoveram uma ruptura radical na história social e econõmica do mundo. Harvey tenta entender como a expansão do modelo neoliberal pôde acontecer de forma tão rápida e global, a ponto de se tornar um consenso a inexistência de alternativas, com um impacto direto não apenas sobre os valores e desejos do homem comum, mas também sobre as suas intuições e seus instintos. Uma investigação crítica, mas não panfletária, das transformações econômicas das últimas três décadas. Do mesmo autor, professor em Oxford e na Johns Hopkins University,  já foram lançados no Brasil A condição pós-moderna, Espaços de esperança, O novo imperialismo e A produção capitalista do espaço.

Entrevista: Deonísio da Silva

qui, 18/09/08
por Luciano Trigo |
categoria Todas

goethe.jpgdeonisio.jpg A partir de hoje, e todas as quintas-feiras, a coluna publica uma entrevista com um escritor brasileiro. O primeiro é Deonísio da Silva, que lançou recentemente seu sétimo romance, Goethe e Barrabás (editora Novo Século), a história de um professor que encontra no amor pela jovem Salomé uma última chance de redenção, após ter feito – ou ter sido vítima de – escolhas erradas na vida.

Deonísio da Silva (Siderópolis, SC, 1948) hoje vive no Rio de Janeiro, onde leciona na Universidade Estácio de Sá. Ele sempre conciliou a literatura com a docência universitária e uma ativa colaboração na imprensa. É doutor em Letras pela USP, com uma tese sobre os livros proibidos no Brasil no período pós-64, e autor de mais de 30 obras, entre eles  mulher silenciosa (1981); A cidade dos padres (1986); Orelhas de aluguel (1988); Avante, soldados: para trás (1992), prêmio internacional Casa de las Américas; Teresa (1997) e Os guerreiros do campo (2000); além de estudos sobre etimologia, como De onde vêm as palavras (1997). 

G1: Foram oito anos escrevendo Goethe e Barrabás. Por que tanto tempo? E de que maneira este livro se distingue de seus sete romances anteriores?

DEONISIO DA SILVA: Ao me transferir de São Carlos para o Rio de Janeiro, as mudanças foram muitas. Morando no interior de São Paulo, eu ia de minha casa à universidade, ou a qualquer lugar da cidade, em 10 minutos. No Rio, dirigindo o curso de Letras da Universidade Estácio de Sá, que está em 18 campi, eu levo um bom tempo no trânsito…Tem sobrado menos tempo para escrever. Além do mais, eu gosto muito de ler. E, à medida que lia sobre Goethe, autor de minha predileção, por temas e problemas, e especialmente por suas sutis complexidades de narrador e poeta, eu ia me encantando por muitos outros assuntos. A maior diferença entre Goethe e Barrabás e meus outros romances é que nele eu cumpri, com menos amarras, um conceito que tenho: o escritor é a lenha de sua própria fogueira. Como disse Mário de Andrade num poema, há uma gota de sangue em cada dia que passa, em cada página que escrevemos. Uma ou muitas. Meus antigos colegas de seminário me dizem que o final de Goethe e Barrabás anuncia um iminente governo autoritário no Brasil. Eu acho que as tentativas têm sido muitas, e algumas já pegaram, como essa mania de bisbilhotarem todo mundo, protegerem culpados notórios e manterem nos cárceres ou perseguirem gente comprovadamente inocente ou cujas culpas não foram provadas. O Brasil anda muito desarrumado. Goethe dizia que preferia a injustiça à desordem. É uma frase que me faz pensar muito. G1: Escrever Goethe e Barrabás exigiu muita pesquisa?

DEONÍSIO: Quanto ao cuidado com a pesquisa histórica, no caso biográfica, Goethe e Barrabás não tem o tom que alguns consideram pernóstico em A Cidade dos Padres e Teresa D’Ávila. Já outros romances meus, como A Mulher Silenciosa, Orelhas de Aluguel  e Os Guerreiros do Campo, não podem ser classificados como históricos, e as pesquisas ali são de sentimento, escandalizado que estava eu com o que acontecia no Brasil, naqueles anos em que eu os escrevia. Avante, Soldados: Para Trás, alcançou um tom raramente visto nos anteriores. Tenho especial carinho por este romance. Depois de ser publicado em Cuba e em Portugal, sairá na Itália este ano, e minha mãe era filha de italianos. Avante é baseado na Retirada de Laguna, episódio trágico da Guerra do Paraguai, que, não fora o escritor francês  Visconde de Taunay estar na expedição, teria se perdido como se perdem tantas coisas no Brasil.

G1: O tema do livro são as escolhas erradas que fazemos ao longo da vida. Segundo que critérios uma escolha deve ser considerada certa ou errada?

DEONÍSIO: É melhor ouvir seu coração. Ele se engana menos do que a sua cabeça. Conversei muito com a escritora e psicanalista Betty Milan quando escrevia Goethe e Barrabás. Juntos discutíamos valores que são muito caros ao Brasil, como a hipocrisia, a aparência e o papo nubloso, que entre nós substituem a franqueza, a essência e a conversa clara. A impressão que damos é que nós, brasileiros, gostamos de ser enganados. É só dar uma rápida olhada em quem escolhemos para os cargos, para ministros, para autoridades. E não me refiro apenas à política.

G1: O personagem Barrabás é ex-seminarista, escritor e professor universitário, como você. Em que medida o livro é autobiográfico? Fale também sobre os elementos da trama que foram inspirados na sua família.

DEONÍSIO: Barrabás não sou eu, não, mas, para quem me conhece, é divertido o exercício de identificar em quê ele se parece comigo. Sou homem de poucos amigos, e todos se parecem com Barrabás, têm qualidades que Barrabás também tem, como a solidariedade na hora adversa e a repulsa total a quem nos abandonou quando mais precisamos da pessoa em quem confiávamos. Sabe o que você mais vê hoje no Brasil? Judas Iscariotes! Estou vendo muita gente vendendo amigos, ou ex-amigos, por 30 dinheiros. Ou por mais, ou por menos. O principal negócio, porém, vem sendo a compra e venda das almas. Quanto à presença de minha família, acho que se deve a um traço comum a muitos escritores, nada singular. Meu avô materno, italiano, era grande narrador,  licencioso e libidinoso. Acreditava no sexo, nos prazeres, não no amor, que, como sabemos, é uma invenção de culturas clássicas, com a de gregos e romanos. Antes triunfava apenas o cio. Meu avô era pré-tudo. Já minha avó materna acreditou no amor, contrariou o pai e casou com o homem por quem se apaixonara, dando um prejuízo danado a toda a “árvore ginecológica”, expressão que acho melhor do que “árvore genealógica”, por ser mais condizente com o que designa. Ouvi muitas histórias da boca de minha avó, mas com o tempo tudo se misturou com minha imaginação, o que é bom para quem tece o bordado da ficção, do inventado.

G1: Por que você acha que, no Brasil das últimas décadas, tantas pessoas venderam a alma ao diabo, como o Mefistófeles de Goethe? Como você analisa isso?

DEONÍSIO: Sem poder fracassar, Mefistófeles volta ao Diabo, queixando-se de não conseguir dissipar tudo o que ganhou com a venda da alma, e se dá aquele diálogo apavorante: “Já experimentou a caridade?”. Não no sentido grego, sinônimo de amor, mas no latino, corrompido por São Jerônimo na versão vulgar da Bíblia, que é atender aos necessitados de bens materiais. Fiquemos tranqüilos. Nem quem compra nem quem vende almas se dá bem. Cedo ou tarde tudo vem às claras e as operações aparecem. No Brasil, porém, este ocultamento está durando muito. Surgem cadáveres, e não sabemos se são de quem comprou ou de quem vendeu.

G1: O povo escolheu libertar Barrabás e crucificar Cristo. As escolhas erradas podem ser individuais, na relação amorosa, mas também coletivas, na vida política. Você já disse que vivemos o mito de que a democracia é o repositário de todos os bens. Mas existe alternativa?

DEONÍSIO: Pois é, governos autoritários fizeram muito bem ao Brasil, como o do Marquês de Pombal nos tempos monárquicos, meu herói em A Cidade dos Padres. Lecionei 22 anos numa universidade federal, para onde entrei por concurso público durante a ditadura militar. E te digo: nenhum governo da ditadura militar pós-64 abandonou tanto a universidade pública como os dois governos democráticos de  Fernando Henrique Cardoso, também professor universitário. Como disse Tom Jobim, o Brasil não é para principiantes. O ditador Getúlio Vargas modernizou mais o Brasil do que o democrata JK. Mas eu não sou doido de achar que existe alternativa à democracia. Isso deve ser perguntado ao cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, que, aliás, lançou um romance muito bonito, intitulado Acervo de maldizer.

G1: Os nomes do casal de protagonistas, Barrabás e Salomé, foram inspirados em dois personagens trágicos. Como um estudioso da etimologia, ciente da importância das palavras, em que medida você acha que um nome influencia o destino de uma pessoa?

DEONÍSIO: Pergunta sutil, mas eu sou Deonísio. Dioniso é o outro, e pode ser grafado com “y”, jamais com “e”. Há muitas curiosidades quanto a isso, mas acho que, já na escolha do nome do rebento ou da da pimpolha, emergem motivos inconscientes, arquétipos, algumas vinculações com o destino. Como se sabe, ao contrário do que apregoam os credos democráticos, não nascemos iguais, nem perante a vida e muito menos perante as leis. A Igreja, que é sábia, muda o nome de homens e mulheres que entram para ordens religiosas. Pois se mudou o destino, o modo de viver…

G1: Por que muitas mulheres, como a personagem Salomé, escolhem mal os homens que amam? E por que você diz que Satanás detesta fazer negócio com mulheres?

DEONÍSIO: Pois é, a mulher apaixonada faz escolhas insensatas, mas se as fizer sóbria dessa embriaguez do amor e da paixão, não escolherá homem algum! Nós somos de outra espécie, cara! Mamão, andorinha, homem, chinchila, mulher, todos diferentes, todos de outras espécies. Satanás sempre é enganado por mulheres. Lilith, a Lua Negra, a primeira mulher de Adão, depois substituída por Eva, em divórcio litigioso, botou chifres em Lúcifer e o novo marido numa fria, num abismo, num precipício danado. Foi o primeiro negócio de Satanás com mulher! Depois veio Nossa Senhora e arrebentou com ele, atrapalhando muito o negócio de compra de almas. Teresa D’Ávila, então, goleou Satanás. Ela pecou muito, mas ele perdeu.

G1: Você foi seminarista e já disse que hoje há missas tão modernas que “só falta a Flávia Alessandra dançar em alguma coluna da nave da igreja”. Você acha que a igreja católica está em crise?

DEONÍSIO: Está em crise, talvez em coma já. Mas Bento XVI e suas equipes no mundo inteiro – a Igreja é multinacional, como sabemos – estão trabalhando muito, e vamos nos recuperar. A principal carência do mundo hoje é de recolhimento, de meditação. Igrejas e templos foram transformados em outra coisa, em silos, depósitos. Onde você busca a transcendência? Nos templos e igrejas? Muito raro que lá você sinta isso. No cinema e no teatro, na leitura, nos museus… Mas nas igrejas? Acho que não.

G1: Como você analisa a situação da literatura brasileira hoje? E o mercado editorial? E a imprensa pautada pelas listas de mais vendidos?

DEONÍSIO: A literatura brasileira é riquíssima. O mercado editorial está bom, mas está concentrado, como tudo no Brasil, em mão de poucos. Já a imprensa, a mídia, está uma vergonha danada em termos de literatura. Ela faz apagamentos que nenhuma ditadura militar alcançou. O livro proibido ainda existe, mas o apagado pela mídia sobrevive como sobrevivem as crianças a altas taxas de mortalidade infantil.  Freqüentemente leio livros excelentes, que a mídia não viu, não registrou. E evito com muita freqüência ou largo livros que comecei a ler e não pude continuar, de tão chatos e mal escritos, apesar de elogiados.

Os livros da semana

dom, 14/09/08
por Luciano Trigo |
categoria Literatura, Todas

A partir de hoje, e todos os domingos, vou postar comentários breves sobre uma seleção de lançamentos recentes do mercado editorial. São livros que chamaram a minha atenção, de uma maneira ou de outra, e cuja leitura recomendo.

lobo.jpg O primeiro é O Lobo de Wall Street, de Jordan Belfort (Planeta), impressionante (e verdadeiro) relato em primeira pessoa da ascensão e queda de um milionário do mercado de ações americano – rico aos 26 anos e preso aos 36. A trajetória meteórica de Belfort, regada a doses industriais de drogas e mulheres, mostra como podem andar perigosamente juntas a euforia e a depressão, o sucesso e o fracasso, a produtividade e o vício. Ironicamente, num mundo onde o dinheiro e o desempenho são os principais valores, o problema de Belfort não foi remar na direção contrária, mais querer remar depressa demais na direção “certa”. Não é um outsider, ao contrário: é um insider radical e sem limites, que aproveitou as brechas do sistema para se dar bem. Mas as suas memórias mostram que sempre falta algo a uma existência pautada apenas pelo oportunismo e pela vontade de enriquecer. Como os papéis podres que vendia aos incautos, a vida de Jordan Belfort não tinha lastro. Esta foi sua verdadeira tragédia, mais do que a prisão. O livro será adaptado para o cinema por Martin Scorsese, com Leonardo Di Caprio no papel principal. É uma boa leitura para estes dias de nervosismo no mercado financeiro…

ladrao.jpg O ladrão de arte (Intrínseca) é o romance de estréia do escritor americano Noah Charney, que cria uma intriga engenhosa partindo dos roubos simultâneos de obras de arte em Roma, Paris e Londres. Charney combina uma narrativa envolvente, cheia de pistas falsas, com um bom conhecimento da História da Arte e um olhar irônico sobre os bastidores dos museus, galerias e casas de leilões – um mundo dominado pela ambição e pela vaidade, muito mais do que por preocupações estéticas de qualquer sorte. O ladrão de arte entretém o leitor de forma inteligente, com personagens e diálogos consistentes, ao mesmo tempo em que oferece análises valiosas de obras de Caravaggio e do suprematista Malevich (aquele que pintava quadrados brancos sobre fundo branco). Desnecessário dizer, o tema vem ganhando atualidade no Brasil, com freqüentes roubos de obras de arte, em instituições públicas e privadas. Segundo Charney, em 90% desses casos, o criminoso é rico e faz parte da alta sociedade – ou seja, um ladrão de casaca. Mas o romance mostra que os crimes que envolvem a arte hoje são muito mais complexos e cheios de ramificações do que se imagina. 

eis-aqui.jpg A começar pela capa primorosa, Eis aqui os Bossa-Nova (Martins Fontes) é seguramente o melhor lançamento da leva de livros comemorativos dos 50 anos da Bossa Nova. Com base em depoimentos colhidos entre 1966 e 1973, com os acontecimentos ainda relativamente recentes (e portanto menos sujeitos a releituras e deformações ditadas pela vaidade), o jornalista, produtor e crítico musical Zuza Homem de Mello mostra o quê diziam e como pensavam João Gilberto, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Carlos Lyra e Roberto Menescal, entre outros protagonistas do movimento. Zuza estava lá, foi um espectador engajado, não conhece a história apenas de ouvir contar.  Os relatos em primeira pessoa que ele reúne e alinhava compõem um saboroso painel de uma época em que se vivia no diminutivo, cheia de barquinhos e tardinhas, que iam e caíam. Pela qualidade do texto e pela riqueza de suas histórias, a leitura de Eis aqui os Bossa-Nova conquista o leitor e provoca um sentimento de nostalgia até mesmo em quem não viveu nada daquilo.  

Sessão nostalgia

dom, 07/09/08
por Luciano Trigo |
categoria Todas

tout11.jpgAssisti, nesses dias, a dois filme de Jean-Luc Godard e um de Alain Resnais, que não revia há séculos. Fiquei com a impressão de que nada mudou tanto no mundo, nas últimas décadas, quanto o cinema. O caminho para o qual apontavam os cineastas europeus, do final dos anos 50 a meados dos 70, foi completamente abandonado. Não se trata apenas do triunfo do comercial sobre o autoral, afinal de contas coerente com uma época em que tudo é avaliado pelo seu desempenho e potencial de lucro. É algo mais grave, uma renúncia deliberada ao novo, ao sério, ao inteligente, ao questionador, enfim, ao uso da linguagem cinematográfica como veículo para uma reflexão adulta sobre a vida e o mundo, e não como ferramenta de alienação e entorpecimento geral das consciências. Há exceções, é claro.

Os filmes que vi foram Sympathy for the devil e Tudo vai bem, de Godard, e Stavisky, de Resnais – este numa retrospectiva fantástica, promovida pelo Centro Cultural Banco do Brasil, que inclui os primeiros e raros curtas-metragens do diretor. Não vou me alongar num texto crítico, apenas fazer alguns comentários. Quando comecei minha vida de cinéfilo, nos já longínquos anos 80, se algum cinema exibisse Sympathy for the devil, sobraria gente do lado de fora.  A sessão que eu vi, no Estação Ipanema, estava vazia. Me pergunto a que filmes estarão assistindo os estudantes de Comunicação e jovens em geral que se apaixonam hoje pelo cinema. Mas, pensando bem, talvez seja difícil para eles estabelecer alguma empatia com o estilo e a forma desses diretores.

Além do mais, são filmes que exigem preparo, cultura geral, disposição para refletir, consciência crítica – todos artigos em baixa na nossa era de hiper-consumo (de imagens, inclusive). Stavisky faz um paralelo entre o exílio de Trotsky na França e um escândalo político-financeiro que derrubou o governo do país, nos anos 30, protagonizado por um aventureiro corrupto (Jean-Paul Belmondo). Tudo vai bem, com Yves Montand e Jane Fonda (na sua fasede conscientização política), fala sobre os conflitos da esquerda na ressaca pós-68, sobre o papel dos intelectuais e sobre modelos em crise (de organização política e de relação amorosa). Sympathy for the devil intercala um ensaio dos Rolling Stones com um debate sobre a questão racial. Em todos esses filmes, o roteiro, a música, a fotografia, a montagem, a interpretação se harmonizam para envolver o espectador num exame mais profundo da realidade. Não são uma fuga da realidade – são uma fuga para a realidade. Alguém está interessado nisso, hoje em dia?

A seqüência de abertura de Tudo vai bem mostra cheques sendo preenchidos para pagar os diversos itens do orçamento do próprio filme (incluindo o cachê das duas estrelas) – sugerindo, com certo pessimismo, que o cinema, no final das contas, se tornaria apenas isso, uma questão de dinheiro. Por outro lado, há um momento de Stavisky em que dois jovens militantes lamentam a expulsão de Trotsky da França, o que de certa forma marcava o fim de uma época, e a moça pergunta ao rapaz: “Mas então por que continuar lutando?” E ele responde “Parce que rien n’est ecrit d’avance” – porque nada está previamente escrito, isto é, sempre restam a esperança e a possibilidade real de que as coisas mudem. Ou seja, precisamos acreditar que dias melhores virão.

    

Por dentro da CIA

qui, 04/09/08
por Luciano Trigo |
categoria Todas

cia_01.jpgJornalistas e espiões têm muita coisa em comum, mas vivem uma relação desigual: um jornalista pode bisbilhotar à vontade a atividade de um espião, mas o contrário não é de bom tom. Além disso, desde o fim da Guerra Fria a espionagem é uma profissão muito desvalorizada, e mais ainda quando ela é oficial, isto é, patrocinada pelos órgãos de inteligência do governo, e realizada sem muita competência. Basta pensar nas constantes trapalhadas da Abin. Ou nas trapalhadas muito maiores, e de conseqüências mais graves, da CIA, exaustivamente catalogadas no livro Legado de cinzas, de Tim Weiner, recém-lançado pela editora Record.

O livro valeu a Weiner,  jornalista do New York Times, o National Book Award, entre outros prêmios. Não se trata de um relato ideológico: a preocupação do autor não é denunciar o imperialismo americano, ao qual a CIA sempre serviu, mas a incompetência da agência no cumprimento de suas missões. Sua conclusão é que, ao longo das décadas, desde que foi criada por Harry Truman, em 1947, a agência vem tentando interferir no mundo – sem compreendê-lo. Nesse processo, acumulou no currículo o fomento a golpes de Estado, seqüestros, assassinatos políticos e movimentos de insurgência, violação dos direitos humanos e dos direitos civis, bem como a manipulação de eleições, candidatos e presidentes. Apesar do custo astronômico desas operações, em dólares e vidas humanas, nada disso impediu uma série de fiascos, da crise da Baía dos Porcos e do caso Iran-Contra à Guerra do Iraque e ao 11 de Setembro.

A apuração é rigorosa, e todas as fontes são nomeadas, entre elas ex-diretores da CIA, oficiais na ativa e veteranos, gente capaz de revelar segredos sobre os bastidores da agência. Foram milhares de documentos analisados, e mais de 300 entrevistas realizadas desde 1987. Weiner adota um tom cáustico na maior parte do tempo. Não faz revelações bombásticas, mas esmiúça episódios que revelam a fraqueza dos métodos da CIA – e sua vulnerabilidade a contra-espiões. Além de sua vocação para o ridículo: após fazer escutas no quarto da embaixadora americana na Guatemala, em 1994, os arapongas concluíram que ela era lésbica e tinha uma amante chamada Murphy. Tudo errado: ela era casada, heterossexual, e Murphy era o seu cachorro, cujos ganidos foram gravados e erroneamente interpretados. 

Em muitos casos em que a CIA foi bem-sucedida, o resultado foi ainda pior: em lugar da defesa da democracia e da liberdade a que supostamente se dedica, ela ajudou a instalar regimes despóticos e corruptos em diversos países, inclusive, naturalmente, na América Latina. Mas, sinal de desprestígio, o Brasil só merece duas citações no livro inteiro, e João Goulart, o presidente deposto com apoio ostensivo da CIA, apenas uma, na página 219 (das mais de 800 do livro).



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