A partir de hoje, e todas as quintas-feiras, a coluna publica uma entrevista com um escritor brasileiro. O primeiro é Deonísio da Silva, que lançou recentemente seu sétimo romance, Goethe e Barrabás (editora Novo Século), a história de um professor que encontra no amor pela jovem Salomé uma última chance de redenção, após ter feito – ou ter sido vítima de – escolhas erradas na vida.
Deonísio da Silva (Siderópolis, SC, 1948) hoje vive no Rio de Janeiro, onde leciona na Universidade Estácio de Sá. Ele sempre conciliou a literatura com a docência universitária e uma ativa colaboração na imprensa. É doutor em Letras pela USP, com uma tese sobre os livros proibidos no Brasil no período pós-64, e autor de mais de 30 obras, entre eles mulher silenciosa (1981); A cidade dos padres (1986); Orelhas de aluguel (1988); Avante, soldados: para trás (1992), prêmio internacional Casa de las Américas; Teresa (1997) e Os guerreiros do campo (2000); além de estudos sobre etimologia, como De onde vêm as palavras (1997).
G1: Foram oito anos escrevendo Goethe e Barrabás. Por que tanto tempo? E de que maneira este livro se distingue de seus sete romances anteriores?
DEONISIO DA SILVA: Ao me transferir de São Carlos para o Rio de Janeiro, as mudanças foram muitas. Morando no interior de São Paulo, eu ia de minha casa à universidade, ou a qualquer lugar da cidade, em 10 minutos. No Rio, dirigindo o curso de Letras da Universidade Estácio de Sá, que está em 18 campi, eu levo um bom tempo no trânsito…Tem sobrado menos tempo para escrever. Além do mais, eu gosto muito de ler. E, à medida que lia sobre Goethe, autor de minha predileção, por temas e problemas, e especialmente por suas sutis complexidades de narrador e poeta, eu ia me encantando por muitos outros assuntos. A maior diferença entre Goethe e Barrabás e meus outros romances é que nele eu cumpri, com menos amarras, um conceito que tenho: o escritor é a lenha de sua própria fogueira. Como disse Mário de Andrade num poema, há uma gota de sangue em cada dia que passa, em cada página que escrevemos. Uma ou muitas. Meus antigos colegas de seminário me dizem que o final de Goethe e Barrabás anuncia um iminente governo autoritário no Brasil. Eu acho que as tentativas têm sido muitas, e algumas já pegaram, como essa mania de bisbilhotarem todo mundo, protegerem culpados notórios e manterem nos cárceres ou perseguirem gente comprovadamente inocente ou cujas culpas não foram provadas. O Brasil anda muito desarrumado. Goethe dizia que preferia a injustiça à desordem. É uma frase que me faz pensar muito. G1: Escrever Goethe e Barrabás exigiu muita pesquisa?
DEONÍSIO: Quanto ao cuidado com a pesquisa histórica, no caso biográfica, Goethe e Barrabás não tem o tom que alguns consideram pernóstico em A Cidade dos Padres e Teresa D’Ávila. Já outros romances meus, como A Mulher Silenciosa, Orelhas de Aluguel e Os Guerreiros do Campo, não podem ser classificados como históricos, e as pesquisas ali são de sentimento, escandalizado que estava eu com o que acontecia no Brasil, naqueles anos em que eu os escrevia. Avante, Soldados: Para Trás, alcançou um tom raramente visto nos anteriores. Tenho especial carinho por este romance. Depois de ser publicado em Cuba e em Portugal, sairá na Itália este ano, e minha mãe era filha de italianos. Avante é baseado na Retirada de Laguna, episódio trágico da Guerra do Paraguai, que, não fora o escritor francês Visconde de Taunay estar na expedição, teria se perdido como se perdem tantas coisas no Brasil.
G1: O tema do livro são as escolhas erradas que fazemos ao longo da vida. Segundo que critérios uma escolha deve ser considerada certa ou errada?
DEONÍSIO: É melhor ouvir seu coração. Ele se engana menos do que a sua cabeça. Conversei muito com a escritora e psicanalista Betty Milan quando escrevia Goethe e Barrabás. Juntos discutíamos valores que são muito caros ao Brasil, como a hipocrisia, a aparência e o papo nubloso, que entre nós substituem a franqueza, a essência e a conversa clara. A impressão que damos é que nós, brasileiros, gostamos de ser enganados. É só dar uma rápida olhada em quem escolhemos para os cargos, para ministros, para autoridades. E não me refiro apenas à política.
G1: O personagem Barrabás é ex-seminarista, escritor e professor universitário, como você. Em que medida o livro é autobiográfico? Fale também sobre os elementos da trama que foram inspirados na sua família.
DEONÍSIO: Barrabás não sou eu, não, mas, para quem me conhece, é divertido o exercício de identificar em quê ele se parece comigo. Sou homem de poucos amigos, e todos se parecem com Barrabás, têm qualidades que Barrabás também tem, como a solidariedade na hora adversa e a repulsa total a quem nos abandonou quando mais precisamos da pessoa em quem confiávamos. Sabe o que você mais vê hoje no Brasil? Judas Iscariotes! Estou vendo muita gente vendendo amigos, ou ex-amigos, por 30 dinheiros. Ou por mais, ou por menos. O principal negócio, porém, vem sendo a compra e venda das almas. Quanto à presença de minha família, acho que se deve a um traço comum a muitos escritores, nada singular. Meu avô materno, italiano, era grande narrador, licencioso e libidinoso. Acreditava no sexo, nos prazeres, não no amor, que, como sabemos, é uma invenção de culturas clássicas, com a de gregos e romanos. Antes triunfava apenas o cio. Meu avô era pré-tudo. Já minha avó materna acreditou no amor, contrariou o pai e casou com o homem por quem se apaixonara, dando um prejuízo danado a toda a “árvore ginecológica”, expressão que acho melhor do que “árvore genealógica”, por ser mais condizente com o que designa. Ouvi muitas histórias da boca de minha avó, mas com o tempo tudo se misturou com minha imaginação, o que é bom para quem tece o bordado da ficção, do inventado.
G1: Por que você acha que, no Brasil das últimas décadas, tantas pessoas venderam a alma ao diabo, como o Mefistófeles de Goethe? Como você analisa isso?
DEONÍSIO: Sem poder fracassar, Mefistófeles volta ao Diabo, queixando-se de não conseguir dissipar tudo o que ganhou com a venda da alma, e se dá aquele diálogo apavorante: “Já experimentou a caridade?”. Não no sentido grego, sinônimo de amor, mas no latino, corrompido por São Jerônimo na versão vulgar da Bíblia, que é atender aos necessitados de bens materiais. Fiquemos tranqüilos. Nem quem compra nem quem vende almas se dá bem. Cedo ou tarde tudo vem às claras e as operações aparecem. No Brasil, porém, este ocultamento está durando muito. Surgem cadáveres, e não sabemos se são de quem comprou ou de quem vendeu.
G1: O povo escolheu libertar Barrabás e crucificar Cristo. As escolhas erradas podem ser individuais, na relação amorosa, mas também coletivas, na vida política. Você já disse que vivemos o mito de que a democracia é o repositário de todos os bens. Mas existe alternativa?
DEONÍSIO: Pois é, governos autoritários fizeram muito bem ao Brasil, como o do Marquês de Pombal nos tempos monárquicos, meu herói em A Cidade dos Padres. Lecionei 22 anos numa universidade federal, para onde entrei por concurso público durante a ditadura militar. E te digo: nenhum governo da ditadura militar pós-64 abandonou tanto a universidade pública como os dois governos democráticos de Fernando Henrique Cardoso, também professor universitário. Como disse Tom Jobim, o Brasil não é para principiantes. O ditador Getúlio Vargas modernizou mais o Brasil do que o democrata JK. Mas eu não sou doido de achar que existe alternativa à democracia. Isso deve ser perguntado ao cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, que, aliás, lançou um romance muito bonito, intitulado Acervo de maldizer.
G1: Os nomes do casal de protagonistas, Barrabás e Salomé, foram inspirados em dois personagens trágicos. Como um estudioso da etimologia, ciente da importância das palavras, em que medida você acha que um nome influencia o destino de uma pessoa?
DEONÍSIO: Pergunta sutil, mas eu sou Deonísio. Dioniso é o outro, e pode ser grafado com “y”, jamais com “e”. Há muitas curiosidades quanto a isso, mas acho que, já na escolha do nome do rebento ou da da pimpolha, emergem motivos inconscientes, arquétipos, algumas vinculações com o destino. Como se sabe, ao contrário do que apregoam os credos democráticos, não nascemos iguais, nem perante a vida e muito menos perante as leis. A Igreja, que é sábia, muda o nome de homens e mulheres que entram para ordens religiosas. Pois se mudou o destino, o modo de viver…
G1: Por que muitas mulheres, como a personagem Salomé, escolhem mal os homens que amam? E por que você diz que Satanás detesta fazer negócio com mulheres?
DEONÍSIO: Pois é, a mulher apaixonada faz escolhas insensatas, mas se as fizer sóbria dessa embriaguez do amor e da paixão, não escolherá homem algum! Nós somos de outra espécie, cara! Mamão, andorinha, homem, chinchila, mulher, todos diferentes, todos de outras espécies. Satanás sempre é enganado por mulheres. Lilith, a Lua Negra, a primeira mulher de Adão, depois substituída por Eva, em divórcio litigioso, botou chifres em Lúcifer e o novo marido numa fria, num abismo, num precipício danado. Foi o primeiro negócio de Satanás com mulher! Depois veio Nossa Senhora e arrebentou com ele, atrapalhando muito o negócio de compra de almas. Teresa D’Ávila, então, goleou Satanás. Ela pecou muito, mas ele perdeu.
G1: Você foi seminarista e já disse que hoje há missas tão modernas que “só falta a Flávia Alessandra dançar em alguma coluna da nave da igreja”. Você acha que a igreja católica está em crise?
DEONÍSIO: Está em crise, talvez em coma já. Mas Bento XVI e suas equipes no mundo inteiro – a Igreja é multinacional, como sabemos – estão trabalhando muito, e vamos nos recuperar. A principal carência do mundo hoje é de recolhimento, de meditação. Igrejas e templos foram transformados em outra coisa, em silos, depósitos. Onde você busca a transcendência? Nos templos e igrejas? Muito raro que lá você sinta isso. No cinema e no teatro, na leitura, nos museus… Mas nas igrejas? Acho que não.
G1: Como você analisa a situação da literatura brasileira hoje? E o mercado editorial? E a imprensa pautada pelas listas de mais vendidos?
DEONÍSIO: A literatura brasileira é riquíssima. O mercado editorial está bom, mas está concentrado, como tudo no Brasil, em mão de poucos. Já a imprensa, a mídia, está uma vergonha danada em termos de literatura. Ela faz apagamentos que nenhuma ditadura militar alcançou. O livro proibido ainda existe, mas o apagado pela mídia sobrevive como sobrevivem as crianças a altas taxas de mortalidade infantil. Freqüentemente leio livros excelentes, que a mídia não viu, não registrou. E evito com muita freqüência ou largo livros que comecei a ler e não pude continuar, de tão chatos e mal escritos, apesar de elogiados.