Reflexões sobre a Arco 2008

seg, 25/02/08
por Luciano Trigo |

ArcoA charge ao lado foi publicada no jornal espanhol “El País”, a propósito da feira de arte Arco 2008, realizada na semana passada em Madri – na qual o país homenageado, como se sabe, foi o Brasil. Não foi exatamente uma homenagem espontânea, já que o Governo brasileiro, habitualmente tão avaro com a Cultura, desta vez foi generoso: gastou 1 milhão de euros, cerca de 2,6 milhões de reais de dinheiro público, para bancar a participação, incluindo o pagamento das despesas de viagem, estadia, transporte de obras e seguros de mais de cem artistas, galeristas e agregados. Como as opiniões sobre a eficácia desse tipo de mega-evento divergem dentro do próprio meio, me pergunto se esta verba foi bem aplicada, com que critérios, e por meio de que mecanismos.

Imagino que em algum momento serão apresentados à população os resultados desse investimento, até por dever legal do Estado, mas enquanto isso não acontece me permito fazer aqui algumas reflexões. Valores são sempre relativos: se pensarmos que o artista inglês Damien Hirst vendeu recentemente uma obra por 19 milhões de dólares, 2,6 milhões de reais podem parecer pouco. Mas, no contexto da relação do Estado com a cultura no Brasil, é uma fortuna. Pouquíssimos museus e instituições têm um orçamento anual que alcance este valor, mesmo precisando desesperadamente de recursos para conservar seu patrimônio em condições mínimas de preservação e segurança. Basta lembrar que roubos de acervos se tornaram rotineiros nos últimos anos.

Acompanhei com atenção o noticiário sobre a Arco, no Brasil e nos jornais europeus, e algumas coisas me chamaram a atenção. A charge acima foi uma delas: na desenvolvida Espanha, como aqui, causa estranheza ao cidadão médio a que o jornal “El País” se dirige, a desqualificação da pintura pelo sistema da arte contemporânea – no mês passado, o curador da próxima Bienal de São Paulo não teve nenhuma vergonha de dizer com deboche: “Quadro na parede não vai ter”. Pintura hoje só tem vez se for releitura irônica ou kitsch, ou se demonstrar a impotência pós-moderna da própria pintura para expressar ou representar qualquer coisa relevante.

Por coincidência, recebi esta semana um e-mail do pintor brasileiro Gonçalo Ivo, há nove anos radicado em Paris, que me contou o seguinte: o Beaubourg tem em sua reserva técnica centenas de instalações e objetos de artistas contemporâneos (comprados pelo Estado francês com o dinheiro do contribuinte, através da intermediação de curadores, criticos e galeristas) que nunca serão remontados, pois estão irremediavelmente danificados ou eram mesmo trabalhos pereciveis, impossiveis de serem refeitos. Esta informação reforça a contradição que já apontei mais de uma vez aqui: instalações, obras conceituais perecíveis, happenings etc surgiram em oposição aos museus e ao mercado, e é verdadeiramente impressionante o cinismo com que hoje são negociados e expostos – com o alegre consentimento dos artistas, claro, que estão sempre viajando, fazendo festas e aparecendo nas colunas sociais ou na revista “Caras”.

Isso me leva a outra observação sobre a cobertura da mídia à Arco, que de certa forma reflete o papel geral que a imprensa assumiu em relação à arte. Praticamente todos os jornais e revistas repetiram as mesmas informações, em tom de oba-oba, exaltando a diversidade da arte brasileira apresentada pelas 32 galerias brasileiras que participaram da festa. Até os artistas citados, entre os 108 convidados, são sempre os mesmos. Nem uma linha de reflexão crítica ou estética, nenhuma tentativa de hierarquização em relação às obras expostas. Chegamos ao ponto em que não se discute mais arte, a não ser em termos de cifras ou de espetacularização mediática: não interessa a ninguém apontar que esta ou aquela obra é um fracasso, que este ou aquele artista está equivocado, porque equívocos e fracassos não fazem parte do vocabulário da arte relativista e pluralista de hoje.

Com graus diferentes de conscientização sobre as regras do jogo, os artistas estão fazendo o seu papel. O sucesso é sedutor, e se as utopias acabaram, se a História acabou, se a crítica acabou, se dizem que a própria arte acabou, em nome de que valeria a pena remar na contracorrente das tendências pautadas pelo mercado? Em nome de que deveriam abrir mão de usufruir o que o sistema tem a oferecer – especialmente quando as instituições dão as mãos aos colecionadores, com o endosso intelectual da imprensa e da academia? Tem gente que pensa diferente, mas seria inocente atacar os artistas contemporâneos de má-fé. Até porque eles também têm contas para pagar.

Mas, voltando à Arco: li numa revista semanal que algumas obras foram postas à venda em Madri por dezenas de milhares de dólares. Como a participação neste evento foi bancada pelo Governo brasileiro, pergunto: artistas que vendem objetos por dezena de milhares de dólares, pois já têm cotação internacional, precisariam de ajuda do Estado para ganhar visibilidade? E, mesmo no caso de artistas menos conhecidos que eventualmente tiverem vendido obras na Arco (ainda aguardo a divulgação dos negócios realizados), é certo usar dinheiro público para gerar receita direta para galerias comerciais privadas? Ou será que parte do dinheiro obtido com a venda das obras será devolvido ao Estado? Como dizem respeito a todos, estas são perguntas que não podem ser desqualificadas como vindo de “alguém de fora”, como costumam fazer com as análises que investigam os mecanismos do sistema da arte hoje.

PS. Sobre a divisão de opiniões em relação ao potencial da arte, cito a galerista Raquel Arnaud, que declarou à Isto É desta semana: “Não será mais uma homenagem que irá provocar o descobrimento do Brasil. A arte nacional já foi descoberta nos anos 1960. Waltercio Caldas foi convidado para o Pavilhão Itália da Bienal de Veneza, Iole de Freitas para a Documenta e Carmela Gross para o El Matadero, em Madri, todos por méritos próprios e não por delimitações geográficas”.

Seis dicas de leitura

qua, 20/02/08
por Luciano Trigo |
categoria Literatura

Após alguns dias de ausência, este blog volta a funcionar com força total (espero). Para recomeçar, seguem seis sugestões de leitura:

O livro dos nomes, de Maria Esther Maciel (Companhia das Letras):
Num inventivo quebra-cabeças literário, a autora inventa 26 personagens, apresentados em ordem alfabética, de Antônio a Zenóbia, que estabelecem relações entre si e com a imaginação do leitor. É uma narrativa em forma de mosaico, que foge aos clichês e às facilidades da maior parte da produção brasileira recente.

Quem pagou a conta, de Frances Stonor Saunders (Record):
O autor revela como a CIA financiou artistas, publicações e intelectuais durante a Guerra Fria, para mantê-los distantes da ideologia comunista. É um assunto que me interessa particularmente, principalmente o apoio dado pelo Governo americano à arte abstrata nos anos 50, numa estratégia para reduzir o espaço para movimentos artísticos de conteúdo social.

Paris não tem fim, de Enrique Vila-Matas (Cosacnaify):
Como em todos os romances de Vila-Matas, o principal tema de Paris não tem fim é a própria literatura, o papel do escritor, o processo criativo. Aqui ele escreve ironicamente sobre o período que o narrador-escritor passou na capital francesa na década de 70, numa espécie de Paris é uma festa pós-moderno.

Quem ama literatura não estuda literatura, de Joel Rufino dos Santos (Rocco):
Com base em sua experiência de 20 anos como professor da Faculdade de Letras da UFRJ, o autor propõe a abolição do estudo da literatura baseado em movimentos, escolas e estilos de época, como se faz tradicionalmente no Brasil. Em seu lugar ele propõe um ensino multidisciplinar, que dialogue com a sociologia, a psicologia, a História, bem como com a cultura popular e a comunicação de massa.

Os mercadores da noite, de Ivan Sant’Anna (Sextante):
Movimentado thriller sobre a rivalidade entre dois mega-operadores do mercado financeiro. O autor conhece bem o assunto, pois trabalhou na área durante mais de 30 anos, o que confere verossimilhança ao enredo.

Os últimos dias da Europa, de Walter Laqueur (Odisséia Editorial):
Um dos mais importantes historiadores vivos faz um diagnóstico assustador sobre o futuro do continente, baseado na análise das imigrações e das políticas econômicas e sociais dos governos europeus. Um livro polêmico, sobre um tema mais do que atual.

Marilyn no divã

ter, 05/02/08
por Luciano Trigo |
categoria Literatura

MarilynEm termos práticos, são dois os objetivos da psicanálise: recuperar a capacidade de amar e recuperar a capacidade de trabalhar. Durante 30 meses, de janeiro de 1960 a agosto de 1962, Marilyn Monroe freqüentou o consultório do psicanalista Ralph Greenson tendo isso em mente. Mas o processo psicanalítico fracassou: Greenson foi a última pessoa a vê-la viva e a primeira a vê-la morta. É a história desta relação que é contada no romance Marilyn – As últimas sessões, de Michel Schneider, que será lançado no Brasil pela Alfaguara.

Ele próprio psicanalista, Michel Schneider parece bem equipado para a tarefa. Conheço ensaios sérios seus sobre Baudelaire e o pianista Glenn Gould – outros dois personagens de psicologia complexa. Mas foi com este livro sobre Marilyn que o autor despontou para a fama internacional, em 2006, quando foi finalista de vários prêmios, incluindo o Goncourt.

Embora diversos personagens reais apareçam no livro – Kennedy, Truman Capote, Anna Freud, Frank Sinatra, Arthur Miller – não se esperem revelações de bastidores nem passagens que reforcem o mito de deusa do sexo: Schneider está mais interessado na conturbada vida interior da atriz, na sua incapacidade de lidar com sua imagem pública, na angústia que a levou a viciar-se em barbituricos e a entrar num processo auto-destrutivo sem volta.

De certa forma, o livro sugere que Marilyn procurou na análise uma morte assistida, mas ela e Greenson acabaram se envolvendo numa confusa simbiose emocional e intelectual. Baseado numa pesquisa rigorosa, Schneider fundamenta com detalhes reais os vôos de sua imaguinação, produzindo no leitor um interessante “efeito de verdade”. As aparentemente desordenadas idas e vindas no tempo associam episódios diversos da vida da atriz a uma cronologia freudiana, proporcionando ao leitor acompanhar por dentro o processo analítico e um mergulho abismal na alma de Marilyn.

TRECHO DO LIVRO

Nova York, abril de 1955. O escritor Truman Capote assiste com Marilyn a um enterro.- Preciso de uma tintura – diz ela. – E não tive tempo de cuidar disso.

Ela lhe mostra uma linha escura na risca que divide os cabelos.

- Pobre inocente que sou. Sempre pensei que você fosse cem por cento loura.

- Eu sou loura de verdade. Mas ninguém é naturalmente assim. Aliás, não me enche o saco.

Como os cabelos de Marilyn, este romance – estes romances emaranhados – é verdadeiramente falso. Contrariando a advertência obsoleta dos velhos filmes, ele se inspira em fatos reais, e seus personagens aparecem com seus nomes verdadeiros, salvo exceções que visam respeitar a vida privada de pessoas vivas. Os lugares são exatos; as datas, verifi cadas. As citações, retiradas de suas narrativas, notas, cartas, artigos, entrevistas, livros, filmes etc., são suas próprias palavras.

Quando muito, o falsário que sou não hesita em imputar a uns o que outros disseram, viram ou viveram, em lhes atribuir um diário íntimo que nunca foi encontrado, artigos ou notas inventadas, e em lhes emprestar sonhos e pensamentos que nenhuma fonte atesta.

Nesta história de amor sem amor, entre duas pessoas reais, Marilyn Monroe e Ralph Greenson, seu último psicanalista, ligados um ao outro pelos fi os do destino, não se procurará nem o verdadeiro nem o verossímil. Eu os observo ser o que foram e acolho a estranheza de uma e de outra fi gura como se ela me falasse da minha.



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