Reflexões sobre a Arco 2008
A charge ao lado foi publicada no jornal espanhol “El País”, a propósito da feira de arte Arco 2008, realizada na semana passada em Madri – na qual o país homenageado, como se sabe, foi o Brasil. Não foi exatamente uma homenagem espontânea, já que o Governo brasileiro, habitualmente tão avaro com a Cultura, desta vez foi generoso: gastou 1 milhão de euros, cerca de 2,6 milhões de reais de dinheiro público, para bancar a participação, incluindo o pagamento das despesas de viagem, estadia, transporte de obras e seguros de mais de cem artistas, galeristas e agregados. Como as opiniões sobre a eficácia desse tipo de mega-evento divergem dentro do próprio meio, me pergunto se esta verba foi bem aplicada, com que critérios, e por meio de que mecanismos.
Imagino que em algum momento serão apresentados à população os resultados desse investimento, até por dever legal do Estado, mas enquanto isso não acontece me permito fazer aqui algumas reflexões. Valores são sempre relativos: se pensarmos que o artista inglês Damien Hirst vendeu recentemente uma obra por 19 milhões de dólares, 2,6 milhões de reais podem parecer pouco. Mas, no contexto da relação do Estado com a cultura no Brasil, é uma fortuna. Pouquíssimos museus e instituições têm um orçamento anual que alcance este valor, mesmo precisando desesperadamente de recursos para conservar seu patrimônio em condições mínimas de preservação e segurança. Basta lembrar que roubos de acervos se tornaram rotineiros nos últimos anos.
Acompanhei com atenção o noticiário sobre a Arco, no Brasil e nos jornais europeus, e algumas coisas me chamaram a atenção. A charge acima foi uma delas: na desenvolvida Espanha, como aqui, causa estranheza ao cidadão médio a que o jornal “El País” se dirige, a desqualificação da pintura pelo sistema da arte contemporânea – no mês passado, o curador da próxima Bienal de São Paulo não teve nenhuma vergonha de dizer com deboche: “Quadro na parede não vai ter”. Pintura hoje só tem vez se for releitura irônica ou kitsch, ou se demonstrar a impotência pós-moderna da própria pintura para expressar ou representar qualquer coisa relevante.
Por coincidência, recebi esta semana um e-mail do pintor brasileiro Gonçalo Ivo, há nove anos radicado em Paris, que me contou o seguinte: o Beaubourg tem em sua reserva técnica centenas de instalações e objetos de artistas contemporâneos (comprados pelo Estado francês com o dinheiro do contribuinte, através da intermediação de curadores, criticos e galeristas) que nunca serão remontados, pois estão irremediavelmente danificados ou eram mesmo trabalhos pereciveis, impossiveis de serem refeitos. Esta informação reforça a contradição que já apontei mais de uma vez aqui: instalações, obras conceituais perecíveis, happenings etc surgiram em oposição aos museus e ao mercado, e é verdadeiramente impressionante o cinismo com que hoje são negociados e expostos – com o alegre consentimento dos artistas, claro, que estão sempre viajando, fazendo festas e aparecendo nas colunas sociais ou na revista “Caras”.
Isso me leva a outra observação sobre a cobertura da mídia à Arco, que de certa forma reflete o papel geral que a imprensa assumiu em relação à arte. Praticamente todos os jornais e revistas repetiram as mesmas informações, em tom de oba-oba, exaltando a diversidade da arte brasileira apresentada pelas 32 galerias brasileiras que participaram da festa. Até os artistas citados, entre os 108 convidados, são sempre os mesmos. Nem uma linha de reflexão crítica ou estética, nenhuma tentativa de hierarquização em relação às obras expostas. Chegamos ao ponto em que não se discute mais arte, a não ser em termos de cifras ou de espetacularização mediática: não interessa a ninguém apontar que esta ou aquela obra é um fracasso, que este ou aquele artista está equivocado, porque equívocos e fracassos não fazem parte do vocabulário da arte relativista e pluralista de hoje.
Com graus diferentes de conscientização sobre as regras do jogo, os artistas estão fazendo o seu papel. O sucesso é sedutor, e se as utopias acabaram, se a História acabou, se a crítica acabou, se dizem que a própria arte acabou, em nome de que valeria a pena remar na contracorrente das tendências pautadas pelo mercado? Em nome de que deveriam abrir mão de usufruir o que o sistema tem a oferecer – especialmente quando as instituições dão as mãos aos colecionadores, com o endosso intelectual da imprensa e da academia? Tem gente que pensa diferente, mas seria inocente atacar os artistas contemporâneos de má-fé. Até porque eles também têm contas para pagar.
Mas, voltando à Arco: li numa revista semanal que algumas obras foram postas à venda em Madri por dezenas de milhares de dólares. Como a participação neste evento foi bancada pelo Governo brasileiro, pergunto: artistas que vendem objetos por dezena de milhares de dólares, pois já têm cotação internacional, precisariam de ajuda do Estado para ganhar visibilidade? E, mesmo no caso de artistas menos conhecidos que eventualmente tiverem vendido obras na Arco (ainda aguardo a divulgação dos negócios realizados), é certo usar dinheiro público para gerar receita direta para galerias comerciais privadas? Ou será que parte do dinheiro obtido com a venda das obras será devolvido ao Estado? Como dizem respeito a todos, estas são perguntas que não podem ser desqualificadas como vindo de “alguém de fora”, como costumam fazer com as análises que investigam os mecanismos do sistema da arte hoje.
PS. Sobre a divisão de opiniões em relação ao potencial da arte, cito a galerista Raquel Arnaud, que declarou à Isto É desta semana: “Não será mais uma homenagem que irá provocar o descobrimento do Brasil. A arte nacional já foi descoberta nos anos 1960. Waltercio Caldas foi convidado para o Pavilhão Itália da Bienal de Veneza, Iole de Freitas para a Documenta e Carmela Gross para o El Matadero, em Madri, todos por méritos próprios e não por delimitações geográficas”.