Como uma Luva

qua, 25/09/13
por Bruno Medina |

“Faça você mesmo”, eis aí três palavrinhas que, a depender de quem as ouve, tanto podem provocar sorrisos de satisfação quanto arrepios de pavor; seja você ou não um adepto desta prática, que acabou por tornar-se tão representativa de nossa época, fato é que a expressão invariavelmente evoca lembranças, épicas ou trágicas, relacionáveis a passagens protagonizadas por nós mesmos ou por algum conhecido. A história ensina que foi a partir do final da década de 40 – e da consequente restrição de mão de obra imposta pelo período pós-guerra – que esta espécie de filosofia de vida calcada no âmago do american way of life ganhou o mundo, travestindo a falta de recursos como algo inspirador e edificante, transformando o cara comum, que engorda em frente a TV e chama a esposa de “benzinho”, num herói de ocasião.

É preciso, no entanto, reconhecer que nada disso teria sido possível se os valores associados ao “faça você mesmo” não encontrassem eco no que há de mais essencial para nós, seres humanos do sexo masculino: o orgulho de prover. Pois assim como gatos que levam as presas entre os dentes para apreciação de seus donos, nós, homens, também precisamos exibir para a sociedade guarda-roupas, bicamas, estantes e hacks, surgidos, como fênix, de onde antes só havia um amontoado de ripas de madeira e parafusos. O ato de trazer ordem ao caos domiciliar a partir da habilidade de montar dispositivos de armazenamento é comparável ao ritual adotado por algumas tribos indígenas da região amazônica, este que, como comprovação de bravura, submete jovens em busca de reconhecimento a usarem luvas recheadas de formigas.

Posto isto, fica mais fácil compreender a motivação que justifica alguém como eu se envolver voluntariamente na inglória tarefa de dar vida a uma sapateira. Sim, porque a opção de chamar o montador da loja nunca chegou a ser considerada, uma vez que significaria desonra para meus ancestrais e descendentes. Então, antes que me desse conta da encrenca em que me metia, lá estava eu rodeado por porcas, pregos, pinos, ruelas e afins, tendo em mãos um plano de montagem que basicamente consistia na associação de um esquema visual incompreensível e um passo a passo semelhante ao utilizado por engenheiros da NASA para construir foguetes. “Fixe a roldana (d) nas sapatas dentadas (f) e posicione-as no orifício correspondente (fig.3)” é o tipo de orientação que ilustra com muita propriedade o quão desalentador pode ser o processo de montagem, até dos mais simples objetos.

Ao sentir-se à deriva no meio de sua jornada, o montador amador precisa conscientizar-se de que este material didático costuma servir apenas como um norte, uma referência abrangente de direção, similar ao que simbolizavam as constelações para os navegadores no passado. Seja na montagem de sapateiras ou em quaisquer outras circunstâncias da vida, não duvidem que será sempre a intuição, e não o manual de instruções, seu maior aliado. E foi exatamente essa a minha decisão. Botei de lado aquele esquema confuso que só me fazia perder tempo e passei a me guiar por algo muito mais eficiente, a lógica. Bom, é preciso mencionar que no momento seguinte, por descuido, deixei o extensor (g) cair para dentro de uma parte inacessível do móvel, fato que nos leva à segunda regra imutável da cartilha do montador amador: o que importa mesmo é funcionar. A sapateira ficou de pé? A porta está abrindo e fechando? Então tá tudo certo. E quem se importa se sobraram 3 parafusos? Afinal, isso aqui não é um submarino, é um artefato de compensado adquirido com o propósito de abrigar sapatos!

Uma hora e meia depois, com o auxílio de um rolo de silver tape e 4 pregos extras, meu troféu reluzia na área de serviço como a mais recente aquisição da galeria de feitos, que ainda inclui uma estante de mantimentos e um armário de ferramentas. Olhando para meu império particular de realizações, percebo que a sensação de dever cumprido contrasta com a inquietação sugerida por um novo desafio, o único que agora parece estar a altura da minha coleção: vestir a luva de formigas.



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