O homem que não estava lá

seg, 03/02/14
por Bruno Medina |

Quando assisti a “Nelson Freire – Um filme sobre um homem e sua música” – documentário de João Moreira Salles que retrata a vida e a obra deste músico brasileiro que, sem dúvida, encontra-se entre os maiores pianistas do mundo –, me chamou a atenção o curioso título escolhido pelo The New York Times para a matéria a respeito do concerto que, à época, seria realizado por ele no Carnegie Hall; tendo em vista a já famosa aversão de Freire aos holofotes, o jornalista a quem coube a árdua tarefa de entrevistá-lo, possivelmente motivado pela absoluta ausência de material, descreveu-o da seguinte forma: “Pianista tenta ser discreto, mas seu talento não permite”. Eis uma definição que com certeza também cabe a Eduardo Coutinho.

Em 2007, tive o privilégio de estar entre os presentes na plateia do Odeon durante a pré-estreia de “Jogo de Cena”, ocasião em que pude observar um homem muito tímido na desconfortável (e rara) posição de ter de colher os louros por sua brilhante trajetória profissional. Não me lembro exatamente de quais foram suas palavras no discurso que antecedeu a exibição do documentário, mas não duvido que a fala tenha reforçado a importância que cada um de seus personagens tinha para o mosaico de emoções que em instantes veríamos projetadas na grande tela. Ao longo da sessão, concluí que a personalidade do cineasta era, de alguma forma, seu principal instrumento de trabalho, visto que estava mais ou menos evidente que a obsessão por anular-se diante da própria arte era a única explicação plausível para justificar o efeito quase hipnótico alcançado por seus filmes.

A despeito de ter popularizado e estabelecido uma nova linguagem para o gênero, talvez a maior contribuição de Coutinho para o cinema brasileiro tenha sido mesmo sua constante busca pela essência do que é humano, ainda que essa humanidade estivesse encoberta por uma história aparentemente comum ou por um personagem que, à primeira vista, nada tinha de peculiar. Essa característica está bastante presente em “O Fim e o Princípio”, filme de 2005 ambientando num vilarejo localizado no sertão da Paraíba, para onde ele partiu sem roteiro ou pesquisa prévia, apenas munido de sua intuição e da incomum aptidão por ouvir pessoas.

“Edifício Master”, sua obra mais celebrada, é outro exemplo do quão interessante e profundo pode ser o abismo que existe em cada um de nós, este que quase sempre passa despercebido nas interações casuais que se dão todos os dias numa grande metrópole. Naquela verdadeira torre de babel incrustada no coração de Copacabana, dentro de apartamentos minúsculos, habitados por pessoas tão distintas entre si, em comum havia apenas a solidão, fosse por escolha ou por imposição do destino. Na cena mais emblemática e inquietante do filme, um senhor se esvai em lágrimas enquanto entoa os versos de “My Way”, música de Frank Sinatra que, segundo ele, resumia a história de sua própria vida. Ali, Coutinho nos levou ao âmago de sua proposta: descortinar todas as camadas que separam o que dizem ser as pessoas do que de fato são.

Frente a perplexidade causada por sua morte e a abrupta interrupção de uma carreira irrepreensível, resta o consolo de que por muito tempo ainda os filmes de Coutinho servirão como lição prática para o entendimento do que somos, visto que refletem conceitos e sentimentos universais, mas que nem sempre são tão fáceis de se enxergar. A partir da maneira detalhista e inspirada com que produzia sua arte, nos ensinou, sem uma ponta sequer de pretensão ou vaidade, a importância de olhar para o outro, e de permitir-se entendê-lo sem julgamentos. É lamentável que um homem tão discreto, que dedicou toda a vida ao diálogo e à reflexão sobre as diferenças, tenha deixado este mundo de forma tão violenta e dramática… uma pena, realmente.

Fiquemos então com as sábias palavras de um homem de poucas palavras:

“Não acredito que a realidade seja isso ou aquilo, preto ou branco. Tudo é ao mesmo tempo. Nada é ‘ou’. A palavra mais importante da língua portuguesa é a conjunção ‘e’, que soma, acrescenta, problematiza.”

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2 comentários sobre “O homem que não estava lá”

  1. Emerson disse:

    É uma pena que aqueles que ainda têm o que falar se calem… o que me preocupa é justamente o silêncio dos bons…

  2. Ana Maria disse:

    Excelente análise Bruno! Parabéns pela escolha do tema e por como o abordou.
    Foi mesmo uma pena.



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