Mal na foto

qua, 26/02/14
por Bruno Medina |
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Fim de tarde no Rio, após um pé d’água daqueles que só deságuam no verão, um arco-íris de incomensurável beleza desponta por trás dos arranha-céus. Ao invés de olhar para cima e aproveitar o espetáculo natural que em breve se extinguiria, um grupo de jovens a minha frente prefere dedicar-se à difícil tarefa de capturar com as câmeras de seus smartphones, num único clique, o arco-íris emoldurando seus próprios rostos. Mude o objeto em segundo plano para uma batida entre dois carros, um ator da novela que atravessa a rua, o prato preferido servido à mesa, a arquibancada do estádio, um incêndio, na verdade tanto faz. O que importa de fato não é vivenciar, tampouco apenas registrar o momento, mas sim registrar a si mesmo vivenciando o momento. Bem-vindo ao mundo dos selfies.

O fenômeno é relativamente recente mas já merece atenção, uma vez que basta pesquisar a hashtag “#selfie” no Instagram para se deparar com nada menos do que 72 milhões de resultados correspondentes. Como reflexo desta onda – ou seria um Tsunami? –, de acordo com um artigo publicado esta semana na “Techcrunch”, até o tradicionalíssimo dicionário Oxford teria resolvido incluir em sua última versão um verbete dedicado à prática, na qual, dentre os adeptos, já figuram personalidades do quilate de Barack Obama – ele foi pego no flagra fazendo um controverso instantâneo de si mesmo no funeral de Nelson Mandela. Mas, afinal, o que justificaria este incontrolável impulso de se autofotografar?

Segundo estudos realizados pelo Dr. James Kilner, neurocientista da University College London, nossa crescente atração pelos selfies estaria relacionada ao fato de que, a partir deles, podemos controlar a percepção que temos de nós mesmos. Durante um experimento em que os participantes deveriam indicar qual seria a foto original dentre várias versões de um único selfie – editadas para que os fotografados parecessem mais ou menos atraentes – a maioria dos entrevistados apontou as imagens mais atraentes como sendo as que corresponderiam à realidade. Ou seja, há indícios de que, aos poucos, nosso padrão estético passa a ser mais apurado, possivelmente devido à incidência maciça de fotografias manipuladas.

Num artigo publicado em outubro no “New York Times”, entretanto, a chave para a compreensão da hegemonia dos selfies estaria relacionada ao autoconhecimento. De acordo com a teoria, o ato de tirar uma foto de si próprio seria uma mera tentativa de entender como as outras pessoas nos veem e, assim, aprimorar nossa linguagem corporal. Esse movimento seria potencializado pelos inúmeros aplicativos que exibem nossos rostos durante conversas online (já repararam como é difícil encontrar hoje um smartphone que não possua câmera frontal?), o que seria um convite ao narcisismo inerente aos selfies.

Por outro lado, há de se levar em conta também que closes de rosto simbolizam aspectos distintos a depender do contexto em que se inserem. Ao se considerar, por exemplo, uma rede social formada por pessoas que não se encontram com muita frequência, a publicação de selfies teria a função de humanizar a comunicação e atenuar a sensação de distância. Por este determinado ponto de vista, não seria exagero concluir que, mais do que uma tendência passageira, os selfies podem indicar um novo paradigma para a maneira como nos comunicamos uns com os outros.

Ao invés de um “oi” ou “tudo bem?” para iniciar a conversa, por que não mostrar logo a quem importa um resumo visual de como está sendo o dia? Então, seja você um legítimo adepto da prática ou alguém que costuma não perdoar os amigos que inundam sua timeline com registros pouco edificantes de si mesmos, pense você se tratar de um inofensivo sinal dos tempos ou uma modalidade deplorável de exibicionismo, uma pergunta: será que alguém ainda duvida que os selfies vieram pra ficar?

Ela, ele e todos nós

qua, 19/02/14
por Bruno Medina |
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Quando decidi que o tema deste post seria “Ela” – filme de Spike Jonze estrelado por Joaquim Phoenix e Scarlett Johansson – achei que teria pela frente uma tarefa bastante fácil. Do alto da minha perspicácia de blogueiro raposa velha, supus que o longa, que já desembarcou em solo brasileiro com 5 indicações ao Oscar (melhor filme, roteiro original, trilha sonora, canção original e design de produção), teria sua narrativa centrada na figura de um sociopata que, após sucessivas desventuras na vida a dois, abdicara das mulheres de carne e osso para abraçar de vez a segurança e a previsibilidade de um relacionamento amoroso com uma máquina.

Ainda de acordo com minha intuição, imaginei que todas as ações do personagem, estas que respaldariam uma opção incomum até se tratando de um tempo futuro, seriam compatíveis com as de um sujeito esquisitão e problemático, que, em algum momento indefinido de sua própria trajetória, havia se desconectado da realidade de tal forma a ponto de se tornar uma aberração, para quem o único abrigo possível estaria na tecnologia e na consequente virtulização dos sentimentos. Em resumo, “Ela” seria mais uma representação do surrado binômico Mundo Online x Mundo Offline e seus usuais desdobramentos, tema já tantas vezes explorado por Hollywood.

Ledo engano. Para minha absoluta surpresa, o filme de Jonze não é sobre os percalços da vida cotidiana na Era Digital plena, ou sobre nerds solitários e suas canhestras namoradas ciborgues, mas sim uma bem-vinda reflexão sobre o que nós, seres humanos de qualquer época, entendemos por “amor”. A meu ver, a discussão principal sugerida pela obra pode ser resumida por uma simples indagação: Teria Theodore, o protagonista da história, direito ou não de se apaixonar por Samantha, um sistema operacional desenvolvido para ser seu complemento ideal? Como resposta, uma segunda pergunta: mas como não se apaixonar por Samantha?

Afinal, além de soar como Scarlett Johansson – o que, convenhamos, transformaria até uma cafeteira quebrada numa pretendente em potencial –, a inteligência artificial em questão fora desenvolvida para desempenhar com maestria as funções de secretária, amiga, terapeuta, empresária, mãe e amante de seu amo, ou seja, o sonho secreto de quase todo barbado. Como se isso não fosse suficiente, Samantha é espirituosa, entusiasmada, sensível, engraçada e, sobretudo, constantemente disposta a aprender novas maneiras de agradar Theodore, mesmo que isso signifique transparecer sentir ciúmes de outras mulheres. O leitor mais atento pode ter achado que me equivoquei ao empregar o verbo “sentir” para designar o comportamento de um sistema operacional, mas garanto não ser esse o caso.

A bem da verdade, é justo nessa aparente incoerência que reside o ponto mais controverso e interessante do filme. Pois, se partimos da premissa de que, no contexto do enredo, o advento tecnológico viabilizou a existência de um sistema operacional capaz de reproduzir com perfeição comportamentos humanos, o que de fato impediria Theodore de se relacionar amorosamente com Samantha? Antes de dar sua resposta, sem entrar em detalhes para não estragar a surpresa, considere que Jonze apresenta uma alternativa plausível para o ato sexual, mesmo com a ausência de um corpo físico.

Numa determinada cena, quando questionado por amigos a respeito do que mais gostava em sua amada, Theodore não hesita em dizer que é a intensidade com que ela ama a vida, possivelmente em referência à voracidade com que busca adquirir, em cada nova experiência, o conhecimento indispensável ao seu aprimoramento contínuo. Irônico pensar que, dessa forma, surge um inesperado e paradoxal desafio a ser superado pelo casal, conseguir conciliar expectativas e objetivos tão distintos; ele quer ensiná-la o mundo através do seu próprio olhar, ela quer compreender o mundo através de todos os olhares possíveis. Mais uma vez, mérito de Jonze, que conseguiu transformar uma história de amor entre um homem e uma máquina acontecida num tempo futuro num episódio tão familiar quando o caso de um conhecido que nos contam numa mesa de bar.

A vida como ela é

qua, 12/02/14
por Bruno Medina |

Ainda que nem sempre nos demos conta, todos os dias o mundo a nossa volta nos convida a contemplar as evidências da passagem dos anos, a partir da reflexão a respeito de hábitos e objetos que caíram em desuso ou então que se extinguiram de maneira natural. Foi assim, por exemplo, com a antes onipresente máquina de escrever, até que perdesse seu reinado de décadas como utensílio indispensável para o postulante computador pessoal e seu mirabolante editor de texto digital, que assegurava nada menos do que a possibilidade ilimitada de erros de datilografia; ou, mesmo antes disso, com a caneta tinteiro, compulsoriamente aposentada pela escrita suave, prolongada e asséptica das esferográficas.

De maneira análoga, hoje pela manhã, uma breve passagem pelo aeroporto me fez atentar para o processo de paulatina extinção ao qual se submete um costume que, durante muito tempo, representou em nossa sociedade o suprassumo da anarquia e da liberdade de expressão: o ato de escrever mensagens em portas de banheiro. Lembro-me com carinho dos áureos dias em que, ainda criança, recorria a esta verdadeira bíblia do lado selvagem da vida para compreender toda gama de temas que a TV, meus pais e a escola tentavam encobrir.

Era nos compartimentos individuais dos sanitários de shoppings, cinemas, clubes, restaurantes de reputação duvidosa e afins – graças a sagacidade daqueles que se dividiam entre satisfazer suas necessidades fisiológicas e o anseio por expressão – que recebíamos esclarecedoras lições sobre anatomia humana, vocabulário de baixo calão e a reputação condenável de desconhecidos. Podem me tachar de saudosista, mas confesso que me ressinto de não mais viver numa época em que uma das piores ofensas que se podia fazer a alguém era associar, na porta de um banheiro público, seu nome e telefone a práticas sexuais pouco ortodoxas.

Claro que não se pode esquecer das mensagens de caráter político, aos moldes deste hoje em dia raríssimo exemplar registrado na foto que ilustra o post, em que o autor sugere uma invasão norte-americana como solução para  ”melhorar” o Brasil, e que contou, inclusive, com a discordância em fora de réplica de um outro usuário do mesmo vaso. Concordemos ou não com a opinião do sujeito, reconheçamos, eis aí a beleza do exercício da democracia.

Assim como máquinas de escrever e canetas tinteiro, estes artesãos do conhecimento marginal também se tornaram obsoletos, cedendo lugar a um perfil que, ao contrário de seus antecessores, dispõe de inúmeras possibilidades para dizer o que pensa, e que talvez, por conta disso, acabou perdendo um pouco de sua relevância. Do alto do aconchego de seus lares, a salvo da caçada implacável de seguranças e serventes, este exército de opinadores, independente do grau de conhecimento que tenham sobre o tema, pode ser visto atuando em fóruns virtuais, postagens de Facebook e sessões de comentários de portais de notícia, quase sempre reforçando o argumento de quem, como eu, pensa que a internet se transformou num gigantesco banheiro de infinitas portas.

O homem que não estava lá

seg, 03/02/14
por Bruno Medina |

Quando assisti a “Nelson Freire – Um filme sobre um homem e sua música” – documentário de João Moreira Salles que retrata a vida e a obra deste músico brasileiro que, sem dúvida, encontra-se entre os maiores pianistas do mundo –, me chamou a atenção o curioso título escolhido pelo The New York Times para a matéria a respeito do concerto que, à época, seria realizado por ele no Carnegie Hall; tendo em vista a já famosa aversão de Freire aos holofotes, o jornalista a quem coube a árdua tarefa de entrevistá-lo, possivelmente motivado pela absoluta ausência de material, descreveu-o da seguinte forma: “Pianista tenta ser discreto, mas seu talento não permite”. Eis uma definição que com certeza também cabe a Eduardo Coutinho.

Em 2007, tive o privilégio de estar entre os presentes na plateia do Odeon durante a pré-estreia de “Jogo de Cena”, ocasião em que pude observar um homem muito tímido na desconfortável (e rara) posição de ter de colher os louros por sua brilhante trajetória profissional. Não me lembro exatamente de quais foram suas palavras no discurso que antecedeu a exibição do documentário, mas não duvido que a fala tenha reforçado a importância que cada um de seus personagens tinha para o mosaico de emoções que em instantes veríamos projetadas na grande tela. Ao longo da sessão, concluí que a personalidade do cineasta era, de alguma forma, seu principal instrumento de trabalho, visto que estava mais ou menos evidente que a obsessão por anular-se diante da própria arte era a única explicação plausível para justificar o efeito quase hipnótico alcançado por seus filmes.

A despeito de ter popularizado e estabelecido uma nova linguagem para o gênero, talvez a maior contribuição de Coutinho para o cinema brasileiro tenha sido mesmo sua constante busca pela essência do que é humano, ainda que essa humanidade estivesse encoberta por uma história aparentemente comum ou por um personagem que, à primeira vista, nada tinha de peculiar. Essa característica está bastante presente em “O Fim e o Princípio”, filme de 2005 ambientando num vilarejo localizado no sertão da Paraíba, para onde ele partiu sem roteiro ou pesquisa prévia, apenas munido de sua intuição e da incomum aptidão por ouvir pessoas.

“Edifício Master”, sua obra mais celebrada, é outro exemplo do quão interessante e profundo pode ser o abismo que existe em cada um de nós, este que quase sempre passa despercebido nas interações casuais que se dão todos os dias numa grande metrópole. Naquela verdadeira torre de babel incrustada no coração de Copacabana, dentro de apartamentos minúsculos, habitados por pessoas tão distintas entre si, em comum havia apenas a solidão, fosse por escolha ou por imposição do destino. Na cena mais emblemática e inquietante do filme, um senhor se esvai em lágrimas enquanto entoa os versos de “My Way”, música de Frank Sinatra que, segundo ele, resumia a história de sua própria vida. Ali, Coutinho nos levou ao âmago de sua proposta: descortinar todas as camadas que separam o que dizem ser as pessoas do que de fato são.

Frente a perplexidade causada por sua morte e a abrupta interrupção de uma carreira irrepreensível, resta o consolo de que por muito tempo ainda os filmes de Coutinho servirão como lição prática para o entendimento do que somos, visto que refletem conceitos e sentimentos universais, mas que nem sempre são tão fáceis de se enxergar. A partir da maneira detalhista e inspirada com que produzia sua arte, nos ensinou, sem uma ponta sequer de pretensão ou vaidade, a importância de olhar para o outro, e de permitir-se entendê-lo sem julgamentos. É lamentável que um homem tão discreto, que dedicou toda a vida ao diálogo e à reflexão sobre as diferenças, tenha deixado este mundo de forma tão violenta e dramática… uma pena, realmente.

Fiquemos então com as sábias palavras de um homem de poucas palavras:

“Não acredito que a realidade seja isso ou aquilo, preto ou branco. Tudo é ao mesmo tempo. Nada é ‘ou’. A palavra mais importante da língua portuguesa é a conjunção ‘e’, que soma, acrescenta, problematiza.”



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