My Way

seg, 30/09/13
por Bruno Medina |

Acredito que um punhado de gente vai concordar comigo quando afirmo que, na noite do último domingo, teve fim uma das narrativas mais brilhantes e envolventes que a indústria do entretenimento foi capaz de produzir. Sim, é claro que estou falando de Breaking Bad, e cabe avisar de antemão que, assim como um omelete não pode ser feito sem quebrar os ovos, este texto também não poderia existir sem uma dose considerável de spoilers. Assim sendo, caso você ainda não tenha assistido ao desfecho da saga de Walter White, acho que, infelizmente, a leitura termina por aqui. Com os que porventura permanecerem, divido minha impressão de que o mundo precisará dar algumas voltas antes que surja uma atração televisiva com nível de excelência semelhante ao da que foi criada, escrita e dirigida por Vince Gilligan. Quanto a este aspecto especificamente, como deixar de se perguntar sobre qual justiça traz este tardio Emmy de melhor série, conquistado no apagar das luzes e com jeitão de prêmio de consolação, quando a obra já há muito fora aclamada pelo público (durante a 5a temporada, considerando apenas os números da TV norte-americana, mais de 6 milhões de telespectadores por episódio) e pela crítica (segundo o Guinness Book, a série é a mais bem avaliada de todos os tempos)?

Idiossincrasias hollywoodianas à parte, vamos ao que interessa: o fim de Breaking Bad. Estando ainda sob efeito do derradeiro capítulo, que acabei de assistir faz alguns instantes, não sei ao certo que opinião ter a respeito. Parece tratar-se de uma daquelas situações em que é preciso afastar-se um tanto do objeto observado para compreender de que forma este se relaciona com o contexto em que está inserido; ou talvez minha hesitação em classificar o que vi como um ponto final mais do que digno para o enredo que acompanhei devotadamente ao longo de cinco anos se deva a uma expectativa tão irreal quanto fantástica, construída a partir de constantes reviravoltas no destino de seus protagonistas, cada uma mais surpreendente e fascinante do que a anterior. A bem da verdade, se os criadores da série tivessem optado por um final algo diferente do que de fato se deu, os fãs que torciam por uma solução mágica (ainda que secretamente) – uma última bifurcação na estrada antes do inevitável encontro com o precipício – seriam os mesmos a condená-la por desrespeito à lógica, as suas inteligências ou às peculiaridades dos personagens envolvidos. Afinal, eis aí uma história que teve na coerência um grande trunfo, possivelmente por nunca ter estado ao sabor dos humores da audiência, uma vez que possuiu a rara característica de já ter sido escrita do princípio ao fim antes de estrear.

Deste modo, de acordo com o que foi sugerido ainda no primeiro capítulo da série, confirmou-se que a ampulheta de Walter White nunca deixou de correr. Seja por conta da doença mortal que adquiriu ou por consequência direta de seus atos criminosos, o pacto firmado entre roteiristas e audiência foi respeitado integralmente, e sua trágica morte um desdobramento mais do que previsível da jornada por ele percorrida. Para mim, o que há de mais interessante, no entanto, é pensar que ali, estirado no chão do laboratório, jazia um homem que de um jeito ou de outro sempre esteve condenado, mas que, antes de cumprir sua sentença, conseguiu impor, uma a uma, todas as suas vontades, apesar de tudo e contra todos. Evidências disso são a engenhosa estratégia adotada para fazer com que seu dinheiro sujo chegasse muito bem lavado às mãos dos filhos (ainda que estes não o desejassem), a forma espetacular com que se livrou de todos os seus inimigos e até a libertação definitiva de Jesse do martírio a que foi submetido, num primeiro momento, pelo próprio “Mr. White”. E talvez tenha sido essa a maior surpresa do capítulo de ontem, Pinkeman, o explosivo e desequilibrado trapalhão, que tantas e tantas vezes cavou sua cova, escapou ileso para desfrutar de um futuro permeado por tenebrosos fantasmas e caixas de madeira concebidas na marcenaria de seus sonhos. A despeito de todos os aspectos mencionados, um em especial merece consideração: diferente do que se poderia imaginar, Walt não foi capturado pelo câncer ou pela polícia; o que deu cabo de sua vida foi tão somente a parte menor de um bem sucedido plano de vingança, ou alguém aí duvida que ele saiu de seu gélido exílio não para entregar-se ao departamento de narcóticos, e sim para morrer de um jeito um pouco menos deplorável?

Na conversa que teve com a mulher, Walter finalmente confirmou o que eu e muita gente suspeitávamos. A necessidade do dinheiro sem dúvida serviu bem ao proposto de justificar ter se enveredado pelo mundo cão, mas é inegável que ele também gostou desse jogo. Tornar-se um gênio do crime, alvo prioritário da lei e de seus oponentes, traduziu-se como uma obsessão, uma espécie de acerto de contas com a vida, onde sempre lhe coube o papel de perdedor ou de coadjuvante. Foi necessário que se passassem 50 anos e que se apresentasse a ameaça de uma doença fatal para que o professor de química acima de qualquer suspeita, cuja biografia seguia a passos largos para a insignificância, encontrasse sua porção mais sombria, a mesma que, em suas palavras, o fazia sentir-se vivo. Curiosamente, isso me faz lembrar de uma cena da primeira temporada que, a meu ver, é uma das mais emblemáticas de toda a série. No banheiro da clínica de oncologia, após receber a notícia de que seu câncer havia regredido, num acesso de fúria, Walter esmurra o dispositivo de papéis-toalha, penso eu, por ter se dado conta de que seria preciso conviver com sua reprovável conduta por muito mais tempo do que em princípio havia previsto. Foi naquele instante que nasceu Heisenberg. Na cena que encerra seu drama, derrotado pelo ferimento de uma bala que ele mesmo disparou, o semblante era sereno. Alívio pelo fim do calvário particular ou satisfação por, mais uma vez, como sugere a célebre música de Frank Sinatra que dá título a este post, constatar que sua sorte fora selada pelas próprias mãos?

Foto: Divulgação

Como uma Luva

qua, 25/09/13
por Bruno Medina |

“Faça você mesmo”, eis aí três palavrinhas que, a depender de quem as ouve, tanto podem provocar sorrisos de satisfação quanto arrepios de pavor; seja você ou não um adepto desta prática, que acabou por tornar-se tão representativa de nossa época, fato é que a expressão invariavelmente evoca lembranças, épicas ou trágicas, relacionáveis a passagens protagonizadas por nós mesmos ou por algum conhecido. A história ensina que foi a partir do final da década de 40 – e da consequente restrição de mão de obra imposta pelo período pós-guerra – que esta espécie de filosofia de vida calcada no âmago do american way of life ganhou o mundo, travestindo a falta de recursos como algo inspirador e edificante, transformando o cara comum, que engorda em frente a TV e chama a esposa de “benzinho”, num herói de ocasião.

É preciso, no entanto, reconhecer que nada disso teria sido possível se os valores associados ao “faça você mesmo” não encontrassem eco no que há de mais essencial para nós, seres humanos do sexo masculino: o orgulho de prover. Pois assim como gatos que levam as presas entre os dentes para apreciação de seus donos, nós, homens, também precisamos exibir para a sociedade guarda-roupas, bicamas, estantes e hacks, surgidos, como fênix, de onde antes só havia um amontoado de ripas de madeira e parafusos. O ato de trazer ordem ao caos domiciliar a partir da habilidade de montar dispositivos de armazenamento é comparável ao ritual adotado por algumas tribos indígenas da região amazônica, este que, como comprovação de bravura, submete jovens em busca de reconhecimento a usarem luvas recheadas de formigas.

Posto isto, fica mais fácil compreender a motivação que justifica alguém como eu se envolver voluntariamente na inglória tarefa de dar vida a uma sapateira. Sim, porque a opção de chamar o montador da loja nunca chegou a ser considerada, uma vez que significaria desonra para meus ancestrais e descendentes. Então, antes que me desse conta da encrenca em que me metia, lá estava eu rodeado por porcas, pregos, pinos, ruelas e afins, tendo em mãos um plano de montagem que basicamente consistia na associação de um esquema visual incompreensível e um passo a passo semelhante ao utilizado por engenheiros da NASA para construir foguetes. “Fixe a roldana (d) nas sapatas dentadas (f) e posicione-as no orifício correspondente (fig.3)” é o tipo de orientação que ilustra com muita propriedade o quão desalentador pode ser o processo de montagem, até dos mais simples objetos.

Ao sentir-se à deriva no meio de sua jornada, o montador amador precisa conscientizar-se de que este material didático costuma servir apenas como um norte, uma referência abrangente de direção, similar ao que simbolizavam as constelações para os navegadores no passado. Seja na montagem de sapateiras ou em quaisquer outras circunstâncias da vida, não duvidem que será sempre a intuição, e não o manual de instruções, seu maior aliado. E foi exatamente essa a minha decisão. Botei de lado aquele esquema confuso que só me fazia perder tempo e passei a me guiar por algo muito mais eficiente, a lógica. Bom, é preciso mencionar que no momento seguinte, por descuido, deixei o extensor (g) cair para dentro de uma parte inacessível do móvel, fato que nos leva à segunda regra imutável da cartilha do montador amador: o que importa mesmo é funcionar. A sapateira ficou de pé? A porta está abrindo e fechando? Então tá tudo certo. E quem se importa se sobraram 3 parafusos? Afinal, isso aqui não é um submarino, é um artefato de compensado adquirido com o propósito de abrigar sapatos!

Uma hora e meia depois, com o auxílio de um rolo de silver tape e 4 pregos extras, meu troféu reluzia na área de serviço como a mais recente aquisição da galeria de feitos, que ainda inclui uma estante de mantimentos e um armário de ferramentas. Olhando para meu império particular de realizações, percebo que a sensação de dever cumprido contrasta com a inquietação sugerida por um novo desafio, o único que agora parece estar a altura da minha coleção: vestir a luva de formigas.

100

qui, 19/09/13
por Bruno Medina |

No momento em que escrevo este post, encontro-me na sala de espera da emergência de um grande hospital. O motivo que me trouxe até aqui? Uma dor insistente no lado esquerdo do peito, entre a clavícula e o coração, aliada a uma breve pesquisa feita no Google (como resistir?), em que todos os resultados possíveis correlacionavam a descrição do sintoma com uma mesma indicação: procure um médico imediatamente. Eis que aqui estou então, já tendo em mãos a senha de atendimento, obtida a partir de uma discreta troca de olhares entre a moça do balcão e o sujeito que aperta o botão da máquina, no caso, o que provavelmente corresponde a “passar esse cara na frente de todos os outros”. Mas é claro que eles não iriam me deixar perceber isso. Enquanto os números do display sobem rapidamente para mim – e lentamente para os demais – a sensação de usufruir de uma espécie de valet park do atendimento hospitalar contrasta com a de estar no limbo da minha própria trajetória, afinal, não seria exagero afirmar que, muito em breve, o desfecho do que se der naquele pequeno consultório atrás da porta pode ter consequências consideráveis no resto da minha vida.

Avaliando minhas chances aqui, se eu estiver realmente enfartando, aos 35 anos, nem é preciso dizer que daqui por diante isso me submeterá a uma rotina cercada de cuidados e preocupações, e o histórico familiar, infelizmente, não faz dessa uma hipótese a ser descartada; fato é que um sujeito em que se manifestam problemas coronários antes dos 40 sem dúvida precisa reavaliar suas metas e planos pessoais: adeus sonho de viver até os 100 e hábitos físicos inconsequentes, olá dieta restritiva e baterias de exames periódicos. Como se este já não fosse um pensamento suficientemente incômodo, como a minha família reagiria a tal notícia? De que maneira essa condição afetaria, por exemplo, a relação com meus filhos?

Pausa na reflexão para contemplar o escarcéu causado por um homem que chega sem camisa, corcunda e com shorts de ginástica, gritando que está com a coluna travada. Continuando: bom, a outra possibilidade é tudo isso não passar de um grande susto, uma pegadinha impetrada pela vida, assim como fazem os humoristas quando querem testar a atenção da plateia. Eu iria ali dentro, a médica daria um tapão no meu peito e, sorrindo, diria “pronto, era só um osso de galinha. Tá liberado!”. Alívio imediato da dor, metas e planos mantidos de pé e, na volta pra casa, se bobear, ainda rola um X-bacon.

Acabam de chamar meu nome, é chegada a hora de encarar o destino nos olhos e conhecer o que sempre esteve reservado para mim. A enfermeira me coloca deitado na maca, gruda um bando de ventosas no meu peito e chama a doutora, que investiga, atenta, o resultado do eletrocardiograma, obviamente sem esboçar qualquer reação. A tensão paira espessa no ar, sinto o coração pulsando no pescoço, já entendendo isso como um péssimo sinal. E perguntas, muitas perguntas: “como começou a dor?”, “desde quando está sentindo?”, “quando piorou?”, “é do tipo pontada, pressão ou aperto?”, “de zero a dez, qual seria a intensidade?”. Vou respondendo a tudo, tentando ser o mais preciso possível, no entanto sem obter qualquer pista a respeito de estar me encaminhando para a calçada da rua ou o leito da UTI.

Acho que agora ela vai falar alguma coisa, suspense máximo, como naqueles instantes que antecedem a abertura do envelope da categoria principal do Oscar: “E o resto da sua vida a partir de hoje vai ser…”. Deu calçada da rua: estando os exames normais, as suspeitas passaram a recair sobre um problema muscular. Ao recapitular os acontecimentos recentes, lembrei de uma fisgada que senti no dia anterior, enquanto praticava yoga. Na hora não me pareceu importante, tanto que na mesma noite caminhei uma longa distância levando minha filha no colo. O resultado apareceu no dia seguinte. Anti-inflamatório e repouso devidamente prescritos, percebo a vida como um trem que pegou um desvio errado, mas que logo à frente conserta o percurso. Assim sendo, até que se prove o contrário, olá, de novo, sonho de viver até os 100, adeus grana da fisioterapia…

Jobs – O filme

qua, 11/09/13
por Bruno Medina |

Ao assistir a Jobs, filme que narra a trajetória do criador e mentor intelectual da Apple, uma certeza que se pode ter é a de estar diante da biografia de um legítimo crápula. Afinal, como designar um sujeito que passou quase 20 anos ignorando uma filha legítima, não se furtava em humilhar funcionários publicamente – ou utilizar vagas de estacionamento destinada a paraplégicos – e virava as costas para amigos leais sem pudor sempre que estes se opunham à sua desmedida ambição? Ressalva feita, como não admirar Steve Jobs, criador obstinado, empreendedor brilhante, homem de cuja visão deriva a maneira como atualmente, e talvez por muitos anos ainda, lidamos com a tecnologia em nossos cotidianos? Esta aparente dicotomia, que sem dúvida faz deste um dos personagens mais intrigantes do século XX, é a mola propulsora da narrativa majoritariamente ambientada no final dos anos 70 e início dos 80, época em que Steve era não muito mais do que um cara que gostava de andar descalço pelas ruas e que não conseguia decidir-se por qual curso universitário optar.

Esbarrando em um ou outro clichê, por vezes assumindo ares de telefilme (produções cinematográficas simplórias, concebidas para exibição em formato televisivo), o longa consegue de maneira relativamente satisfatória dar conta de mostrar como o impressionante tino para negócios, a constante inquietação e a notória inadequação social de Jobs lhe serviram como ferramentas para transformar um empreendimento de fundo de quintal tocado por um punhado de nerds na empresa com maior valor de mercado do mundo. Aos que, como eu, entrarem na sala de exibição pré-dispostos a desqualificar a atuação de Ashton Kutcher como protagonista, um aviso: vocês podem se frustrar. A bem da verdade, por mais absurdo que soe, é impossível não pensar a respeito de que opinião teria o próprio Jobs – perfeccionista obsessivo –, caso ainda estivesse vivo, sobre a escolha de um galã mais conhecido por suas fanfarronices fora das telas do que pelos feitos no campo da dramaturgia para interpretá-lo. Entretanto, a despeito da inquestionável similaridade física entre intérprete e interpretado, fator que pode ter sido determinante para sua escalação, é preciso admitir que, salvo a risível insistência em reproduzir o jeito de andar de Jobs (algo que caberia bem no célebre Ministry of Silly Walk do Monty Python), se Kutcher não habilita-se como candidato ao próximo Oscar, também não compromete o trabalho dos roteiristas.

Aliás, cabe registrar que a sequência inicial pode ser bastante assustadora para os fãs mais sensíveis do idealizador dos computadores pessoais; carequinha, ostentando pés-de-galinha cenográficos e vestindo o tradicional traje para apresentações de produtos (blusa de gola rulê preta, jeans claros e tênis brancos de corrida), o ex-marido de Demi Moore apresenta ao mundo pela primeira vez o iPod, sugerindo, já de cara, que a próxima hora e meia será recheada por embaraçosas tentativas de reproduzir passagens emblemáticas recentes da vida de Jobs, as mesmas que lhe asseguraram um lugar entre os grandes homens de seu tempo, mas que estão ainda muito frescas em nossas memórias para serem retratadas. Felizmente o prognóstico não se cumpre, mas, de certa forma, não deixa de dar margem à uma reflexão: será que este filme não veio cedo demais?

Confesso que este foi um pensamento que me acompanhou durante toda a sessão, visto que agora mesmo escrevo este texto a partir de uma máquina concebida por Jobs, e que, enquanto você lê esta frase, milhões de pessoas estreitam suas relações com o universo ao redor a partir de dispositivos concebidos por ele. Ainda ontem, na ocasião de lançamento do iPhone 5C, menos de dois anos após sua morte, especulava-se se o smartphone – que conta com acabamento em plástico para reduzir custos e se equiparar à concorrência – desvirtua ou não a primazia por qualidade que estabeleceu-se ao longo das últimas décadas como marca registrada da Apple. O que quero dizer é que, talvez, um pouco mais de distanciamento faria bem a esta história. Mesmo que não faltem indícios para atestar o quão inspiradora foi a passagem de Jobs por este planeta, fato é que seu legado ainda evidencia-se de forma muito intensa. Por uma determinada perspectiva, qualquer obra artística consiste numa iniciativa voltada a eternizar, num momento específico, a impressão que se tenha sobre o objeto em questão. Pensando bem, um filme realizado agora, ou mesmo daqui a 20 anos, simplesmente não seria suficiente para abranger toda a complexidade de alguém como Steve Jobs, um homem que tinha como principal virtude seu maior defeito: ser o melhor, a qualquer preço.

Tipo Exportação

qua, 04/09/13
por Bruno Medina |

No iniciozinho de 2012 – muitos de vocês devem se lembrar – este blog tornou-se o epicentro de uma verdadeira batalha campal por conta de uma suposta carta aberta que escrevi para Michel Teló, através da qual, em tom de sátira, reclamava de sua onipresente “Ai Se Eu Te Pego”, isto justo no momento em que, em tantas outras rodas, debatia-se as dores e delícias causadas pela hiperexposição de um hit que começava a alçar voos mais altos. Amado e odiado em proporções equivalentes pelos argumentos empregados (mentira, os detratores, se não estavam em maior número, ao menos eram bem mais enfáticos), a mim coube amargar o ônus dos que atiram pedras em vespeiros, sobretudo a partir daqueles que enxergaram nos meus comentários traços de ironia, inveja ou elitismo musical. À época, cheguei a me arrepender da infeliz ideia de dizer algo a esse respeito, porque me pareceu que qualquer abordagem do assunto, por mais bem intencionada que fosse, seria igualmente explosiva, dado que, em nosso país, popularidade e sucesso, se combinados numa mesma sentença, parecem configurar um intransponível tabu, mais ainda quando o resultado dessa mistura aponta para além das fronteiras do território nacional.

Na minha opinião, por mais espinhoso que seja, eis um assunto que não pode e nem deve ser ignorado por quem se sinta minimamente identificado com a música brasileira, afinal, é através de artistas como o próprio Michel Teló, Ivete Sangalo, Daniela Mercury e Marisa Monte – para citar apenas alguns dos tantos que alcançaram reconhecimento no exterior –, independente da opinião que se possa ter sobre o trabalho de cada um deles, que nossa cultura se renova e, consequentemente, se ressignifica aos olhos do mundo. Preâmbulo feito, podemos seguir para o verdadeiro tema deste post: Anitta, ou, mais especificamente, a matéria recém-publicada na versão digital da revista Forbes que a indica como aspirante a se tornar a próxima estrela global da música. A favor da carioca Larissa Machado (o nome artístico foi inspirado pela série televisiva de 2001 “Presença de Anita”, protagonizada por Mel Lisboa), pode ser mencionado o fato de seu debut como cantora de funk estar sendo paulatinamente substituído por um estilo que, em tese, teria maiores chances de emplacar internacionalmente, caracterizado pelo encontro de um pop amigável com o legítimo R&B, aos moldes do que hoje é feito por Rihanna e Ke$ha.

Outro trunfo de Anitta estaria na capacidade de transmitir, através de suas letras e aparência, a imagem de uma mulher poderosa, daquelas que se sentem felizes e confortáveis em ser o que são, aspecto que para Priscilla Lemgruber, responsável pelas ações de marketing da cantora, costuma despertar forte identificação junto ao público feminino. Como se os argumentos citados não fossem suficientes para candidatá-la à nova bola da vez, ainda segundo a revista, Anitta preencheria todos os pré-requisitos exigidos pela indústria musical de hoje, onde apelo sexual e talento musical precisam estar balanceados de maneira exata a permitir trânsito livre por filmes e capas de revistas, além do desenvolvimento de uma linha de produtos próprios. Por tudo isso, aos 20 anos, a ex-funcionária da Vale que agora contabiliza mais de 50 milhões de visualizações do vídeo “Show das Poderosas” no Youtube, foi considerada pela Forbes como uma possível discípula de Ivete, que, além de ter o dobro de sua idade, não dominar o idioma inglês e estar associada a um tipo de música muito regional, teria dificuldades em conquistar audiências ainda maiores do que já possuí, até mesmo pela incapacidade de dedicar a atenção necessária à construção de uma carreira internacional sólida, visto que apenas a manutenção de seu império no Brasil lhe exige enorme empenho e parece mais do que o suficiente, tanto em termos profissionais quanto financeiros.

Apesar de ainda não admitir abertamente o provável foco no mercado externo, ao que tudo indica, em breve Anitta deverá dedicar-se aos preparativos para fazer cumprir a profecia da revista, a partir de iniciativas como a retomada de aulas de música e atuação. Entretanto, se quiser mesmo figurar no seleto time de celebridades internacionais do pop, este seria apenas o passo inicial de uma extenuante jornada, cujas possibilidades de sucesso estão atreladas a uma série de decisões estratégicas acertadas, a começar pela escolha dos profissionais que a cercam. Talvez o mais interessante neste caso seja mesmo observar como o mundo da música a cada dia dá provas de ser menos vasto e ostentar menores barreiras, tornando provável a antes impensável circunstância de pertencer a um cantor coreano, cantando em coreano, o título de vídeo mais assistido de toda a história. Neste contexto, cabe a reflexão sobre quais seriam os novos parâmetros de identidade cultural em tempos de globalização ou, quem sabe, sobre qual seria a resposta mais adequada para uma pergunta que parece, a cada dia, mais difícil de ser respondida: o que atualmente se define por música popular brasileira?



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