E Agora?
As manifestações ocorridas na quinta-feira passada em mais de 100 cidades brasileiras sinalizam com muita clareza o encerramento de um primeiro ciclo deste movimento que, apesar de ainda não ter sido batizado, já figura entre as mais importantes mobilizações da história nacional. Caso se encerrassem por aqui, os protestos dos últimos quinze dias poderiam ser descritos aos nossos descendentes como fragmentos do despertar de uma novíssima consciência política, não-polarizada, apartidária e irrestrita.
Mais do que isso apenas, este período será para sempre lembrado como aquele em que se deu a retomada da cidadania em seu sentido mais amplo, a partir da ocupação das ruas, em contraste à resignação ou mesmo à crescente virtualização dos debates sobre temas essenciais. Nem é preciso mencionar que raras foram as vezes neste país em que o clamor popular conseguiu efetivamente se fazer ouvir a ponto de pautar a administração pública, quiçá propor voltar atrás um reajuste de tarifa implementado. Aos que participaram desta enorme conquista, uma certeza: o recado transmitido por vocês foi compreendido.
Difícil, no entanto, prever o que irá acontecer daqui por diante, mas, ao que tudo indica, é bem provável que as inúmeras reivindicações, por vezes tão distintas, que até agora estiveram abrigadas num mesmo guarda-chuva, encontrem canais mais adequados para seguir adiante, a medida em que, também, se traduzam em iniciativas mais palpáveis. Curioso notar como esta disparidade inicial de vozes – capaz de agrupar camisas do Che e bolsas de grife numa mesma marcha – que tanto muniu de argumentos os que queriam reconhecer falta de legitimidade no que estava sendo solicitado, sob determinado viés, pode significar uma maturidade democrática que não imaginávamos ter. Como disse Felipe Abrahão, um amigo das antigas, “Na rua, não tem mediação. Não existe ‘block’ social, não dá pra unsubscribe o vizinho, e delete, dá cadeia”.
A consequência desta pluralidade, que veio à tona como reflexo do modo com que as gerações mais jovens hoje enxergam o mundo, sentenciou a necessidade de reformulação do antigo modelo de representação instituído, este que é baseado em partidos políticos, não restando a ele outra alternativa senão adaptar-se ao novo contexto, sob o risco de irremediavelmente se alienar dos anseios de considerável parcela da população. Dados publicados na matéria de capa do jornal O GLOBO de ontem atestam que em 1993, ano do impeachment de Collor, os eleitores de 16 a 18 anos, cujo voto é facultativo, somavam 3.6% do total. Atualmente, apenas 1.5%. Se os números por si só não são suficientes para comprovar a tendência aguda de descrença em tais instituições, basta observar a acolhida que tiveram por parte dos demais presentes aqueles que, durante as manifestações, tentaram empunhar bandeiras partidárias.
A ascensão desta até então improvável maneira de pensar e de fazer política materializou-se como uma centelha de esperança para tantos que há muito estavam desacreditados da possibilidade de haver estreitamento de vínculos entre cidadãos e seus representantes; ainda que a aproximação não se dê por desejo destes últimos em honrar o pacto firmado entre as partes, mas sim pela percepção de que seus atos estão sendo monitorados constantemente, e de que existem consequências concretas quando pisam na bola. Aposto que muitos integrantes da classe têm perdido o sono ultimamente ao constatar que, ao menos desta vez, o barulho foi alto demais para que, como de costume, as queixas possam ser varridas pra debaixo do tapete sem que ninguém perceba.
A veemência dos protestos não deixa dúvidas de que existe uma onda generalizada de insatisfação, como bem resumiu Diego Viana em seu blog, “a frustração de quem está subindo e não consegue fazer valer sua ascensão. A frustração de quem está perdendo privilégios e não consegue, e não quer, se adaptar. A frustração de quem quer ocupar um lugar na sociedade (negros, gays, mulheres, periferias) mas vê os caminhos bloqueados até mesmo por quem foi designado”.
O segundo ciclo se iniciará tão logo tivermos aprendido a traduzir estas frustrações em proposições práticas, passíveis de contornar obstáculos e desvios típicos dos caminhos que circundam as esferas do poder público. Afinal, existe forma mais eficiente de transformar um sistema do que a partir de dentro dele? Então, mãos à obra!