Doce Perdição

qua, 29/05/13
por Bruno Medina |

Entrei nessa como quase todo mundo entra: ouvia os amigos falando, fiquei curioso e resolvi experimentar. Lembro de que tudo começou numa segunda-feira a tarde. Estava chovendo e eu com uma baita preguiça de sair de casa, quando, lá pela hora do almoço, encontrei um amigo no Gtalk. Papo vai, papo vem, reclamei do dia insosso, do tédio, e ele disse que nunca mais havia se sentido assim desde que começou a usar. Olhando agora, percebo que a enfadonha conversa foi o empurrão que faltava para que eu mergulhasse de cabeça num poço sem fundo.

Talvez por inocência, talvez por desespero, a verdade é que acreditei no meu amigo e na falsa promessa de que era possível, como que num passe de mágica, preencher as desconfortáveis lacunas do dia a dia, se livrar dos momentos menos inspiradores da rotina. Mesmo tendo receio da influência que aquilo poderia vir a ter sobre mim, decidi seguir em frente, afinal, eu era o único cara da galera que ainda não tinha aderido. Impressionante a facilidade com que se tem acesso a algo que pode prejudicar tanto a vida das pessoas. Bastou ter o impulso e, em segundos, já estava na minha mão, sem complicação, sem correr nenhum risco.

Na primeira vez que usei, confesso que não achei muito graça. Foi divertido sim, sem dúvida ajudou a matar o tempo, mas nada muito além disso. Naquele mesmo dia liguei para o meu amigo e disse que tinha começado a usar, ele ficou exultante em saber que eu tinha ‘entrado pra turma’ e me convidou para uma reuniãozinha a noite, na casa dele. Quando cheguei lá, percebi que não seria possível conversar sobre nenhum outro assunto, ainda mais depois que os presentes descobriram que, poucas horas antes, tinha sido o meu ‘debut’. Todo mundo queria me dar dicas, contar histórias ou saber como estava sendo a minha experiência, e é óbvio que ser o centro das atenções me deixou bastante envaidecido.

Aos poucos, as conversas foram diminuindo e cedendo lugar a um silêncio perturbador, a medida em que os convidados, um a um, optavam por abdicar da festa na fissura de saciar o desejo insaciável por entretenimento. A essa altura, infelizmente, eu também já era um deles. Nas semanas que se seguiram, continuei usando, cada vez mais, até o ponto daqueles instantes de prazer se tornarem o momento mais importante do meu dia. Escondido dentro de casa, no trabalho, em locais públicos, não importava a circunstância, qualquer minuto de sobra era desculpa para puxar do bolso e usar, na hora e no lugar que fosse.

Um mês após aquela fatídica tarde de segunda, eu era apenas uma caricatura do homem que um dia fui. A concentração, a capacidade de realizar e a vontade de conviver em sociedade me abandonaram, deixando o terreno livre para que o  vício se apoderasse de todos os aspectos da minha vida. Apesar dos insistentes apelos da família, só me dei conta da deplorável situação em que me encontrava quando meu filho me viu usando e pediu pra ‘brincar’ também. A perspectiva de vê-lo enveredar-se pelo mesmo caminho que trilhei foi simplesmente devastadora. Tirando forças de onde não mais pensava haver, resolvi por fim a minha triste saga, e jurei que aquela seria a minha última vez.

Mesmo tendo parado de usar há algum tempo, o fato é que não me sinto ainda recuperado. Como sequelas do vício ficaram os pesadelos com doces, especialmente rosquinhas e pirulitos, e uma estranha obsessão por destruir  objetos de cores e formas idênticas. Um conselho? Nunca dê ouvidos a quem porventura quiser lhe apresentar um tal de Candy Crush.

 

Me Engana Que Eu Gosto

qua, 22/05/13
por Bruno Medina |

Se você ainda não viu, são grandes as chances de que, nos próximos dias, um primo ou um colega de faculdade te encaminhe o link de um vídeo que ‘tá bombando’: na varanda do segundo andar de um prédio localizado no Centro de São Paulo um casal discute de forma acalorada, enquanto, a partir da janela ao lado, um homem só de cueca desce por uma tripa improvisada com lençóis amarrados. Na calçada em frente ao edifício, entre risos e gritos de ‘Pula! Pula!’, uma pequena multidão se espreme para acompanhar o desfecho supostamente real da cena ficcional que tantas e tantas vezes assistimos na TV ou no cinema, pouco antes dos bombeiros chegarem para resgatar o adúltero, em vias de se espatifar no chão para escapar da fúria de um marido traído.

Com os olhos vidrados na tela do computador, comovidos pela raridade do inusitado registro, tudo o que nos resta é servir ao propósito de ser mais um elo da corrente e, ao término da exibição, também clicar no botão ‘compartilhar’. Aconteceu exatamente assim comigo. Numa fração de segundo, antes mesmo de que me desse conta, transferi a centenas de conhecidos meus o acesso ao enfadonho vídeo, ainda que logo em seguida tenha me ocorrido um porém: quem garante que não se trata de mais um falso viral? Analisando a situação com o devido distanciamento, percebo que, naquele momento, a vontade de passar adiante o que tanto havia me impressionado superou (em muito) a razoabilidade dos fatos; não duvidem que é exatamente este fenômeno, universal e inconsciente, a força que hoje faz girar as engrenagens do mundo virtual. 

Pessoas gostam de expor ao seu círculo social o que desperta curiosidade na web. A constatação um tanto óbvia é a mola propulsora de um filão que só faz crescer, o de criar peças publicitárias que não se pareçam com peças publicitárias. Exemplos não faltam de como as agências de marketing digital têm cooptado nosso natural anseio por dividir o que nos chama atenção para promover marcas e lançar produtos no mercado. Afinal, o que pode ser mais oportuno como ferramenta de venda do que pegar carona na credibilidade implícita no ato de compartilhar conteúdo com um amigo? A despeito da atual infestação do que ficou conhecido como ‘propaganda viral’, e do surgimento de uma cultura de desconfiança generalizada a respeito de tudo que se encontra na internet, recentemente um destes vídeos, desenvolvido para um conhecido refrigerante, trouxe à tona nos Estados Unidos uma discussão sobre a ética nesta modalidade de campanha.

Durante um pretenso test drive, Jeff Gordon – famoso piloto da NASCAR –, disfarçado de gente comum, faz manobras impensáveis com o carro e quase leva o funcionário da concessionária que o acompanha a enfartar. Quando a pegadinha havia ultrapassado as 7 milhões de visualizações, descobriu-se que o vendedor era na verdade um ator, ou seja, tudo não passou de uma armação. Ano passado, aqui mesmo no Brasil, muita gente boa caiu na conversa do sujeito que procurava pela Fernanda, seu amor perdido na balada paulistana. Acontece que o príncipe desta espécie de Cinderela do século XXI estava a mando de um fabricante de telefones celulares, o que, diga-se, frustrou uma considerável parcela do público feminino que havia se encantado com a possibilidade de ainda existirem rapazes românticos como aquele.

Ambos os casos, apesar de pouco representativos se comparados ao montante de vídeos deste tipo espalhados por aí, são bastante emblemáticos da discussão que os falsos virais geram, sobretudo quando se tornam de fato populares. Ao que parece, muitos são os que se sentem traídos quando se enxergam na condição de propagadores espontâneos de uma campanha comercial, ainda que quase sempre não tenham conhecimento disso. A circunstância remete à sensação de empatia instantânea que costuma nos acometer quando, no final do filme, nos deparamos com a frase ‘baseado em fatos reais’. De repente, é como se aquela história insossa, que até tinha causado uns bocejos ao longo da projeção, assumisse ares de épico, apenas porque realmente aconteceu na vida de alguém.

A reflexão mais interessante suscitada pelos falsos virais diz respeito ao conceito do que é verdade ou mentira nessa paradoxal sociedade em que vivemos. Se passamos a encarar com normalidade celebridades que combinam flagrantes com paparazzis ou mesmo conhecidos que fantasiam a própria existência nas redes sociais, por que os virais deveriam fugir à regra? No mais, será que os instantes de puro entretenimento causados pela visão daquele homem de cueca descendo pela janela perderiam seu propósito se ficasse provado tratar-se de uma propaganda? Bem, se esse for mesmo o caso, considero justo premiar a marca por sua criatividade, indicando o link para meus contatos. A título de registro, na última segunda-feira, foi revelado que o vídeo em questão faz parte da campanha de lançamento de uma série de TV. 

Mas, será que isso realmente importa?

Eu, Eu & Eu

qua, 15/05/13
por Bruno Medina |

Arrogantes, preguiçosos, desinteressados, mimados, apáticos e narcisistas, que não se incomodam em ainda morar com seus pais; sem dúvida, uma lista de adjetivos dignos de fazer qualquer mãe desejar cavar um buraco na terra para se esconder de vergonha, certo? Afinal, que futuro estaria reservado para filhos como estes, que vivem com os narizes enfiados em seus smartphones bisbilhotando a vida dos outros e sonhando em enriquecer sem fazer esforço? Resposta: recriar a sociedade em que vivemos.

O controverso tema é a matéria de capa da edição desta semana da revista Time, intitulada “The Me, Me, Me Generation” ou, em bom português, “A Geração do Eu, Eu e Eu”. A sugestiva expressão foi cunhada por Joel Stein, autor do artigo, como uma maneira, digamos, mais figurativa de referir-se à geração que nos Estados Unidos vem sendo chamada de Millennials, e que abrange todos os que nasceram entre 1980 e 2000.

A fim de evitar que pedras fossem atiradas por quem considera haver exagero no perfil traçado para descrever a primeira geração de jovens adultos do século XXI, Stein certificou-se de respaldar suas alegações na precisão dos números: segundo estudos recentemente publicados, hoje mais pessoas entre 18 e 29 anos vivem com seus pais do que com esposos. Já a incidência de distúrbios de personalidade relacionados ao narcisismo é, atualmente, cerca de três vezes mais alta em pessoas entre quem tem de 20 a 30 anos do que a que fora registrada na mesma faixa etária durante a década de 70.

Como se estes já não fossem dados potencialmente incendiários, Stein, de 41 anos, resolveu galgar um degrau a mais na direção de tornar-se um verdadeiro Judas para quem cresceu assistindo Tartarugas Ninja, Cavaleiros do Zodíaco e Pokémon na TV. No site da revista, além de uma versão digital do artigo, é possível assistir a um vídeo (de tom pra lá de jocoso) que registra a tentativa do jornalista de passar um dia inteiro vivendo como um legítimo representante da Geração Y. 

Seu primeiro desafio foi dormir com o smartphone na cabeceira da cama e checá-lo logo após abrir os olhos. Mas não parou por aí. A ‘competição’ ainda envolvia enviar 30 mensagens de sms ao longo de 24 horas (um destes, ao menos, de teor sexual), manter um papo rolando o dia todo através de uma janela de chat, utilizar 2 dispositivos eletrônicos simultaneamente, publicar no Instagram várias fotos do próprio rosto, responder 5 vezes à pergunta ‘no que está pensando?’ do Facebook e, por último, não utilizar em nenhum momento um telefone fixo.

Em defesa própria, alguns Millennials vieram a público nas redes sociais para lembrar que a caricatural descrição de suas rotinas passou ao largo de outras reconhecidas características da geração que integram, tais como o otimismo em relação ao futuro, a maior consciência ambiental, a capacidade de engajar-se em causas sociais e o fato de, além de dinheiro apenas, almejarem crescimento profissional aliado ao bem estar.

Frente a estes argumentos, é difícil discordar de quem enxerga oportunismo na matéria, ou mesmo uma predisposição a classificar comportamentos pejorativos associáveis à juventude como exclusivos da Geração Y. Historicamente, as gerações mais jovens sempre foram tidas como menos competentes e mais alienadas, portanto o retrato feito por Stein, em termos práticos, pouco tem de novidade. Se a sina de toda geração é redimir os erros da anterior, ao menos nosso futuro nunca esteve nas mãos de pessoas mais instruídas ou com maior domínio da tecnologia. E tudo bem se, entre uma e outra conquista, eles pararem para postar um autorretrato no Instagram, né?

A Vida por um Fio

qua, 08/05/13
por Bruno Medina |

Este post se inicia com a proposição de um exercício que certamente soará tão hipotético quanto absurdo para a maioria dos leitores: como seria passar um ano inteiro sem acessar a internet? Faça um esforço e tente imaginar que a leitura deste texto corresponde a sua última interação com a web pelos próximos 365 dias, e que, ao término do último parágrafo, você não poderá obter notícias, pesquisar informações, visitar redes sociais, realizar compras ou sequer enviar e receber e-mails. Será que você, ou qualquer pessoa, consegue realmente supor todas as consequências, implícitas e explícitas, desse ato na própria vida? Foi esta dúvida que motivou Paul Miller, editor sênior do portal The Verge, a enveredar-se por um caminho que nenhum homem ousou antes trilhar, rumo a insólita experiência de desconectar-se. Completamente.

No início do ano passado, Paul tinha 26 anos e considerava-se, como tantos de seus contemporâneos, um hamster girando na roda da hiperconectividade. Ele era um usuário assíduo da internet desde os 12 anos e sentia que seu desenvolvimento como indivíduo e profissional misturava-se com a evolução da web, de uma maneira tão intrínseca que tornava-se impossível dissociar a pessoa que havia se tornado da que poderia ter sido, caso a internet não existisse. Por algumas vezes pensou em restringir os acessos, mas logo percebeu que não possuía disciplina suficiente para isso. A incapacidade de levar o plano adiante o fez perceber a gravidade de sua condição, sentenciando que optasse por uma alternativa mais radical: às 23h59 do dia 30 de abril de 2012, ele desplugou o cabo ethernet de seu laptop e escondeu o smartphone no fundo de uma gaveta, com o único propósito de mergulhar de cabeça na busca por si mesmo, no já distante e pouco familiar mundo não-virtual.

Ainda vivenciando os primeiros dias de sua nova realidade, Paul relata ter se dado conta de algo de suma importância, mas que nunca lhe pareceu tão óbvio; quando eventualmente sentia-se um pouco entediado pela ausência da internet, sem poder refugiar-se como de costume na esfera digital, preenchia o vazio com afazeres analógicos, tais como andar de bicicleta, reciclar roupas velhas do armário ou sair de casa para encontrar os amigos. Nos 3 meses iniciais, perdeu 8 quilos sem desejar emagrecer, escreveu metade de um romance e teve sua capacidade de concentração sensivelmente expandida, chegando a ler 100 páginas numa única sentada, um assombro se comparado ao empenho que a leitura de apenas 10 páginas exigia em outros tempos. Estes eram indícios de como a dedicação desmedida à internet coibia ações mais construtivas – ou até prazerosas – em outros campos.

Ao deixar para trás sua obsessão pela web, Paul esperava deparar-se com pensamentos do tipo “hoje usei um mapa de papel e foi hilário” ou “alguém tem uma cópia off-line do Wikipedia?”, mas sua previsão não poderia estar mais longe de se concretizar. Acontece que boa parte de nós, ele inclusive, se esqueceu de que existem alternativas bastante razoáveis para a maioria dos processos que migraram para a internet. Ainda que quase sempre sejam mais rápidos e práticos agora, isso não significa necessariamente que havia algo de errado com a forma com que se davam antes.

Sem a distração do smartphone, passou a sentir-se mais consciente do momento presente, o que, por consequência, levou-o a perceber os benefícios de abandonar sua costumeira zona de conforto social. Num encontro com a irmã, tornou-se claro como a relação entre ambos fora sistematicamente atrapalhada através dos anos pela incapacidade dela em conseguir sua plena atenção, constantemente dividida com algum aparato tecnológico. De maneira geral, Paul diz ter recuperado a percepção da importância de dedicar-se a cada interação, seja com um parente ou um livro, uma constatação um tanto óbvia, mas que parece ter se diluído frente ao universo de sobreposições de tarefas e sensações possibilitado pela internet. Como exemplo, mencionou que o trabalho de ler 100 e-mails por dia nem se compara ao de responder uma dúzia de cartas por semana, ou seja, no modelo em que estamos inseridos hoje, é fácil se envolver com atividades consideradas árduas, mas que dispõem de pouco significado emocional.

Ao longo dos meses, Paul acredita ter se adaptado à vida desconectada, o que, no entanto, não o impediu de constatar, no final de 2012, que pouco a pouco havia abandonado alguns bons hábitos adquiridos no período, entregando-se a novos vícios off-line. A crise agravou-se durante uma visita feita a sobrinha que mora em outro estado, quando descobriu que ela atribuía sua prolongada ausência no Skype à falta de vontade de conversar. Soma-se a isso o fato de uma grande amiga ter se mudado para a China, o que os levou a perder o contato por completo. A essa altura, definitivamente, ele havia se dessincronizado com a vida. Temendo não conseguir levar seu experimento até o fim, mês passado Paul esteve numa conferência que reunia teóricos da web. Seu objetivo era contrastar a opinião daqueles que acreditam que a internet permeia tudo com a de quem optara por estar à margem dela. Após conversar com alguns palestrantes, foi preciso dar o braço a torcer e concluir que a internet era apenas o meio para onde canalizava as questões com as quais não sabia lidar na vida real. Em suas palavras: “Eu queria descobrir o que a internet estava fazendo comigo para que eu pudesse revidar. Mas a internet não é uma busca individual, é algo que fazemos uns com os outros. A internet é apenas o lugar onde as pessoas estão”.

Para quem ficou curioso com o desfecho da saga de Paul, vale dizer que toda a experiência foi registrada e transformada num documentário.

O que me chamou a atenção em especial nesta história foi a oportunidade de conhecer as impressões de alguém que se dispôs a cruzar em definitivo a tênue fronteira pela qual transitamos, com maior ou menor desenvoltura, todos os dias. Diferente de alguém que se exila num retiro espiritual ou num barco que navega ao redor do mundo, o desafio de Paul era estar off-line mesmo inserido num contexto em que o convite a conectar-se é permanente. Pelo visto, o resultado obtido com o projeto aponta para o fato de que ainda somos nós, seres humanos, que estamos por trás dos gadgets utilizados, e que são nossas angústias, receios e frustrações que ditam como a internet deve ser. Funcionaria menos como uma força impessoal que se apodera de tudo e mais como um espelho das nossas próprias mazelas. Ao imputar à internet a responsabilidade por tudo que não conseguia ser, para, em seguida, se dar conta de que a vida sem ela pode ser tão frustrante quanto, Paul saciou a curiosidade de muita gente que provavelmente se vê na mesma condição que ele. E a sua, também?

Eles Só Pensam Naquilo

qua, 01/05/13
por Bruno Medina |

No verbete do dicionário, ‘tinder’, em inglês, é a palavra empregada quando se que fazer referência a qualquer material de fácil combustão, passível de ser utilizado para atear fogo; não por coincidência, o termo foi escolhido para batizar um aplicativo de iPhone que tem se popularizado com extrema velocidade nos Estados Unidos, o que pode ser explicado, em parte, por sua proposição: promover encontros amorosos baseados tão somente na aparência física. A despeito de ter sido criado para facilitar – ou até mesmo eliminar – o por vezes tenso e prolongado rito de aproximação entre estranhos que desejam se conhecer melhor, o que posiciona o Tinder acima de seus incontáveis concorrentes é mesmo o fato dele encorajar, sem falso moralismo, comportamentos potencialmente reprováveis que adoramos ter, ainda que quase sempre nos falte coragem para admitir.

Fazer avaliações levianas, inflar o próprio ego por esporte e relacionar-se com terceiros a partir de critérios totalmente superficiais são apenas 3 exemplos de como o aplicativo pode transformar o ato de julgar e ser julgado num passatempo, comparável a um jogo. Funciona assim: após logar-se e definir gênero, localização e orientação sexual, o usuário passeia por um sem fim de fotos de perfil, podendo atribuir um coração verde ao deparar-se com alguém que lhe atrai ou um ‘X’ vermelho para os pretendentes que não lhe interessam. Se porventura você e a pessoa que despertou sua curiosidade marcarem corações um para o outro, o sistema encaminha ambos para um bate-papo privado e sai de cena.

É mais ou menos como se a sua lista de contatos no Messenger estivesse atrelada a um hipotético concurso de beleza, ou se existisse uma rede social em cujos perfis não houvesse menção a livros lidos, viagens feitas, histórico profissional, pratos ou bandas preferidas, ou seja, nada além do sex appeal de quem é observado. Há quem considere o aplicativo como o equivalente digital da improvável sensação de chegar numa festa e saber, de imediato, dentre as pessoas que considera atraentes, quais possuem a mesma opinião sobre você. Aliás, isso é possível, contanto que os convidados da festa sejam usuários do Tinder e estejam com a geolocalização de seus aparelhos habilitada.

Estranho? Não necessariamente. Em 6 meses de existência, cerca de 3 bilhões de avaliações já foram registradas, 60% destas realizadas por usuários que frequentam o aplicativo 5 ou 6 vezes todos os dias, de acordo com informações disponibilizadas por seus desenvolvedores. Apesar das críticas postuladas pelos que enxergam no Tinder uma licença para ranquear pessoas sem qualquer discernimento, são os corações, e não os ‘X’, que  despertam maior preocupação entre especialistas em comportamento humano.

É a gratificação instantânea alcançada pela aprovação alheia que transforma seu uso numa experiência insólita, capaz de preencher de maneira superficial uma demanda existencial. Estudos recentes apontaram que ‘likes’ e retweets podem estimular a liberação de dopamina no cérebro de alguns indivíduos, portanto imaginem o efeito nocivo que a aprovação, num nível bem mais pessoal, poderia ter sobre estas mesmas pessoas?

De certa maneira, não deixa de ser curioso observar como aplicativos feito o Tinder e Bang With Friends (aquele que no Facebook indica quais amigos querem fazer sexo com você) têm ganhado notoriedade ao direcionar seu foco para a transposição imediata dos níveis de intimidade que precisam ser percorridos quando duas pessoas naturalmente desejam se conhecer. A situação remete ao viajante que escolhe passar todo o período de férias tirando fotos que possa exibir aos amigos, ao invés de vivenciar de forma plena os lugares pelos quais passou. Afinal, de que vale um troféu na estante sem a história da conquista? Sinal dos tempos em que o ‘como’ se impõe ao ‘por que’.



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