O Canto das Sereias-Robô

qua, 24/04/13
por Bruno Medina |

‘O melhor da festa é esperar por ela’, diz o conhecido provérbio que parece ter inspirado a campanha de divulgação de Random Access Memories, álbum que sela o retorno do Daft Punk aos estúdios, após 8 anos sem gravar. A despeito da atenção que o trabalho naturalmente despertaria – basta supor a resultante de quase uma década de silêncio em contraste à fama avassaladora cultivada ao redor do mundo pelo duo francês – Guy-Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter, os humanos por trás dos robôs, parecem ter resolvido não poupar esforços para que seu mais recente trabalho conquistasse os holofotes do universo pop. E conseguiram.

Há pouco mais de um mês, o single Get Lucky tem sido utilizado de maneiras impensáveis para aguçar a curiosidade de fãs e jornalistas, determinando novos parâmetros de alcance e criatividade para os profissionais do meio musical envolvidos em grandes lançamentos internacionais. Ao que tudo indica, a dupla que já havia elevado o status e a própria visibilidade da música eletrônica a partir de meados da década de 90, adotou uma estratégia de marketing de guerrilha digna de despertar a inveja de cantoras divas e boy bands.

Tudo começou no princípio de março, com a veiculação de um teaser em pleno horário nobre da TV norte-americana, mais precisamente no intervalo da tradicionalíssima atração humorística Saturday Night Live; o trecho instrumental de apenas 15 segundos, que agora sabe-se ser a introdução de Get Lucky, foi estímulo suficiente para despertar um tsunami de postagens relacionadas na web, em sua maioria loopings da levada (um deles, acreditem, com 10 horas de duração) editados por admiradores aflitos por terem algo inédito do duo para incluir na playlist de seus smartphones.

Na sequência do enigmático anúncio, que apenas exibia o logo do Daft Punk sobre fundo negro sendo encoberto pelos característicos capacetes, observou-se o espocar de incontáveis pegadinhas – totalmente desvinculadas da dupla, é claro, tais como trechos de letras fictícias adicionadas à base original, falsos releases e demos enviados para publicações especializadas ou mesmo a especulação infundada de fantásticas participações no disco, que tem data de lançamento prevista para 21 de maio.

Para elevar o suspense a níveis jamais testemunhados, caiu na rede uma série de minidocumentários reunindo entrevistas realizadas com os produtores do álbum, revelando detalhes sobre as gravações e insinuando que Guy e Thomas se apresentariam com uma banda no palco durante a turnê, algo inédito em suas carreiras até então.

Mas antes que engrossasse o coro dos que enxergavam muito barulho feito por nada – e até uma certa dose de arrogância nos míseros segundos revelados da música (aqui no Brasil chegou-se a comentar que o trecho lembrava o inconfundível tema de abertura do programa Amaury Jr.) – a divulgação de um novo vídeo de Get Lucky, desta vez nos telões do festival Coachella, trazendo ninguém menos do que Nile Rodgers na guitarra e Pharrell Williams no vocal, não deixou restarem dúvidas quanto ao poder de fogo de que disporá o Daft Punk em 2013. A cereja do bolo não tardou em aparecer, visto que o serviço de streaming musical Spotify anunciou na última sexta-feira que o single, enfim passível de ser ouvido em sua versão completa, bateu o recorde de execuções realizadas no site num único dia.

Mesmo uma audição despretensiosa sugere que a primeira música de trabalho de Random Access Memories possui todos os atributos necessários para equipará-la em relevância e sucesso aos maiores hits da dupla, Around The World e One More Time. Faltando agora pouco menos de um mês para o lançamento oficial do disco, cabe imaginar que truques Guy e Thomas ainda guardam na manga para potencializar seu canto de sereia e manter o frenesi causado pelo anúncio de seu tardio retorno ao mainstream da música eletrônica.

Resta saber, no entanto, se as faixas que ainda não vieram à tona justificam tamanha expectativa, afinal, de tão instigados, qual não seria a decepção dos fãs se este bendito disco fosse algo menos do que um dos melhores da década? A situação, inevitavelmente, remete a um outro provérbio, que ilustra com perfeição o indesejável efeito colateral que se obtém da mistura de marketing e música nas proporções erradas: ‘quando maior a altura, maior a queda’. Se este é ou não o caso, saberemos em breve.

Pra hoje, só amanhã

seg, 15/04/13
por Bruno Medina |

Desde que a ouvi pela primeira vez, mesmo antes de compreender o que significava, considero ‘procrastinação’ a palavra mais feia de toda a língua portuguesa. Olhando de fora, um mau conhecedor do idioma poderia até pensar que o referido termo é um palavrão, uma sobra do húngaro que nos veio como empréstimo, ou mesmo que se refere a um ato repulsivo, que nem as mentes mais criminosas ou doentias ousariam realizar. Considerando tão somente aspectos como incidência e popularidade entre a população brasileira, eu diria que o hábito de adiar a execução de tarefas merecia, ao menos, uma designação que fosse mais fácil de se pronunciar.

Aos curiosos, admito que a inspiração para este texto reside num recente dilema pessoal: semana passada, estabeleci como meta a resolução de duas pendências simples, que indesejavelmente se incluíam numa lista de ‘por fazer’. Cabe esclarecer que não tenho aqui a petulância de imaginar a minha vida ou a de qualquer outra pessoa sã sem uma lista de ‘por fazer’, apenas que considero obter informações sobre um carro usado – consignado para venda em uma loja há mais de seis meses – e marcar uma visita ao dentista como tópicos que não deveriam tomar lugar de projetos postergáveis mais importantes, como fazer uma pós-graduação, aprender taekwondo ou escrever um livro.

Neste momento em que corro o risco de ser tachado como preguiçoso, em minha defesa, cito o caso ocorrido com um amigo, que desistiu de reaver os R$50 deixados como pagamento caução pela tábua em que foi montado o sanduíche a metro comprado para uma festa, dada sua incapacidade de ligar para o buffet e agendar o resgate da peça. Ao que parece, os donos de buffet estão bastante familiarizados com a palavra mais feia da língua portuguesa…

É provável que exemplos tão pouco edificantes – eu ia escrever humilhantes – tenham despertado a empatia e, consequentemente, a autocrítica do leitor, que porventura pode ter se lembrado agora daquele filme, alugado em 2007, que até hoje jaz na estante da sala, da promessa nunca concretizada de arrumação do armário da área de serviço ou daquele regime, resolução do último Réveillon, que, em abril, ainda não saiu do papel.

Culpa da vida corrida e atribulada, eu sei, eu sei. A verdade é que os procrastinadores sempre arranjam uma boa desculpa, afinal nunca ficam sem fazer nada, apenas substituem a tarefa a que de fato deveriam se dedicar por uma outra, irrelevante, tipo, no escritório, inspirar-se para redigir o relatório fazendo uma bola gigante de elásticos. Engana-se, porém, quem pense que a solução para evitar a reprovável atitude seria assumir menos compromissos, mas sim dedicar-se a eles com disciplina implacável.

Um dos principais truques que constam do livro escrito por John Perry ao longo de 17 anos, “A Arte da Procrastinação” (não é piada), seria criar uma relação de tarefas cujas primeiras posições fossem ocupadas por objetivos bastante difíceis de serem alcançados, seguidos pelos itens que se pretende mesmo realizar, de forma que, ao evitar os mais importantes e complicados, o procrastinador caia na armadilha que ele próprio armou, e automaticamente seja conduzido a empregar seu tempo em algo que valha a pena.

Segundo o autor da tese, este mecanismo se apoia em nossa predisposição para exercer qualquer trabalho, contanto que não seja o que deveríamos fazer naquele exato momento. Ainda de acordo com os números levantados pela pesquisa de Perry, aplicada a 24 mil pessoas em diversos países, vivenciamos uma franca epidêmica, quando nada menos do que 95% dos abordados admitem adiar tarefas com frequência, ao passo que um quarto do tempo de quem trabalha, e um terço do de quem estuda, são comprometidos pela procrastinação.

E como deixar de imaginar um mundo em que não houvesse tantas possibilidades de distração? Provavelmente já teríamos cidades na Lua, chicletes que nunca perdem o gosto e louças autolimpantes. Em relação ao dilemas pessoais citados, saibam que resolvi o do carro, marcar o dentista, no entanto, ficou para essa semana, junto com fazer backup do computador (risos).

Para terminar, nada melhor do que um conhecido ditado, adaptado por Perry para servir como lema aos procrastinadores: “Nunca realize hoje uma tarefa que pode desaparecer amanhã”.

Todos Contra Um

seg, 08/04/13
por Bruno Medina |

“Acontece nas melhores famílias”, deve ter sido o que pensou o gerente da lanchonete, embora tenha lhe faltado a devida coragem para empregar o dito popular como argumento que pudesse dissuadir a enojada e enfurecida cliente de exigir seu dinheiro de volta. Um minuto antes, talvez tenha sido eu o primeiro a testemunhar a razão do pandemônio que se instalaria logo em seguida na filial de uma das mais tradicionais redes de restaurante do país, mais precisamente quando um inseto adentrou voando o estabelecimento. O bater de asas frenético e o voo hesitante, a meia altura, de imediato me induziram ao erro de classificar o que via como mariposa, mas foi só quando o bichano pousou sobre a mesa e engatou uma correria alucinada que me dei conta do que de fato se passava ali.

Admito que a cena não era exatamente inspiradora, afinal, em termos de plasticidade, uma barata voadora guarda semelhanças com um jipe tentando sair do atoleiro, um troço de aparência rústica, concebido não para encantar, mas sim lidar com a adversidade a todo tempo e ter no mundo cão sua sala de estar. Ainda assim me impressionou a mobilização e o sentimento de repulsa despertado por aquele ser de não mais do que 5 centímetros, flagrado na cotidiana ronda por migalhas que asseguram sua subsistência. Ao que tudo indica, o erro capital desta barata foi ter abdicado do aprendizado que preservou sua espécie ao longo dos últimos 60 milhões de anos: a percepção de que a condição de permanecer viva está atrelada à capacidade de passar despercebida, seja qual for o contexto.

Não seria inconcebível, portanto, que, ao deixar-se perceber no ambiente de maneira tão acintosa, ela estivesse acreditando poder gozar da mesma tolerância que contempla formigas, abelhas e borboletas; ou então foi a notícia atrasada de que um grande estúdio hollywoodiano havia lançado uma animação inteiramente dedicada a sua classe que encorajou essa saída repentina do armário, no caso, do esgoto. Ledo engano. Apesar do filme da Pixar tecer loas à organização e à vocação para o trabalho inerente aos insetos, a limpeza de barra infelizmente não se estendeu às baratas, que seguem ‘bichos escrotos’, conforme retratadas na antiga música dos Titãs. Posso até imaginar como deve ser difícil ver gatos, cachorros e periquitos – animais também passíveis de transmitir doenças a pessoas – sendo paparicados, inclusive por crianças, no amago de seus lares, ao passo que elas próprias estão relegadas à sarjeta e são caçadas até a morte apenas por existirem.

Mas isso não é tudo. Porque há ainda quem desmaie apenas por as ver caminhar à distância (Catsaridafobia é o nome da síndrome), sem mencionar as empresas especializadas em exterminá-las ou os recorrentes e desiguais embates que são obrigadas a ter com seres humanos do sexo masculino, em sua constante busca por afirmação. Você aí, que vive pelos divãs, pelas mesas de bar, reclamando da implicância do chefe, da marcação cerrada da namorada, coloque-se por um instante no lugar de Gregor Samsa, protagonista de “A Metamorfose”, e compreenda o real significado do termo ‘perseguição’.

De volta à cena narrada no primeiro parágrafo: após deflagrada a situação de que o mais repugnante dos insetos havia tocado suas patas e asas por várias superfícies daquela lanchonete, como num espetáculo de gladiadores romanos, através de consensuais olhares de reprovação, a clientela exigiu nada menos do que a vida daquele desprezível ofensor dos bons hábitos de higiene. Sem ter outra alternativa, coube ao rapaz que já fazia a limpeza do local empunhar seu esfregão na direção da lata de lixo, este que seria o último refugio da acuada barata. Com um golpe certeiro, ele decretou o fim do silêncio apreensivo que havia se instaurado, dando vazão ao pressuposto direito de vingança dos presentes. Enquanto recolhia a carcaça de sua vítima fatal com uma pá, involuntariamente serviu como inspiração para este texto, ao proferir, em tom de voz baixo, a seguinte pérola: “É, baratinha, não tá fácil pra ninguém”.

E não tá mesmo.



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