Arquivo F

seg, 25/03/13
por Bruno Medina |

No ano de 2025, a vida real e a vida virtual encontram-se tão intimamente relacionadas que quase não há mais distinção entre as sociedades de fato e as redes sociais. Num contexto em que a inclusão digital alcançou 90% dos habitantes do planeta, e em que existem mais de 7 bilhões de perfis ativos no Facebook, o site de relacionamentos concebido 15 anos antes enfrenta um irônico e até então impensável desafio: sobreviver ao excesso de usuários. Com o intuito de assegurar que a rede não sucumba a um caos de convites e publicações indesejáveis, seus administradores resolvem pôr em prática um rígido código de conduta, medida que coincide com a instituição de um tribunal para julgar infrações e abusos cometidos pelos frequentadores:

– Caso 3742, Facebook contra Fernando Soares. Com a palavra, a acusação.

– Senhor Fernando, consta nos autos uma queixa apresentada pela senhorita Amanda Vasconcellos, de que o senhor a teria cutucado por diversas vezes num período de 2 semanas. A informação procede?

– Sim, procede.

– E qual foi o motivo que despertou um comportamento, digamos, tão compulsivo?

– Bom, a Amanda é minha colega de faculdade e, na aula de Psicologia dos  Avatares II, fiquei achando que ela também se interessava por mim. Por isso cutuquei, para facilitar a aproximação e ajudar a quebrar o gelo…

– Mas 7 vezes consecutivas??

– Como é que eu podia saber que ela não estava gostando? Ela me cutucava de volta!

– Não passou pela cabeça do senhor que a senhorita Amanda poderia apenas estar tentando ser educada?

– Como assim educada? Ela me “tagueou” numa foto…

– Onde estavam tagueadas outras 9 pessoas da turma!

– Ok, tudo bem, digamos que eu tenha abusado das cutucadas, mas no dia em que eu a chamei no chat ela foi enigmática, e foi isso que me levou a pensar que estava rolando um joguinho…

– O que exatamente configura a atitude da senhorita Amanda como enigmática?

– Ela disse: “Fernando, nós precisamos conversar”. Daí eu perguntei sobre o que, e a Amanda não respondeu mais. Fui levado a pensar que ela queria me convidar pra sair mas estava com vergonha…

– Em depoimento a senhorita Amanda alegou que na referida conversa pretendia pedir ao acusado que parasse de cutucá-la insistentemente, mas o sinal do 8G caiu, visto que ela digitava no interior de um avião que adentrava a estratosfera.

– Poxa, e ela nem postou uma foto disso? Eu ia curtir e compartilhar, com certeza!

– Numa outra queixa, o senhor foi denunciado por publicar em janeiro deste ano no Instagram a foto de uma sobremesa, o que, como sabemos, é terminantemente proibido desde 2015.

– Protesto, meritíssimo, meu cliente não comentará suas ações em outras redes sociais!

– Retiro, senhor Juiz. Prosseguindo: na semana passada o senhor foi acusado por diversas pessoas de praticar excesso de postagens sobre um mesmo tema…

– Ah, agora isso também?! Pô, a Apple compra a Grécia e eu não posso nem comentar o assunto com meus amigos? Aliás, que amigos esses, hein…

– O novo código vigente determina que o autor de 3 posts sobre um mesmo tópico seja advertido, e punido com suspensão sumária da conta caso insista com as publicações.

– Meritíssimo, posso me defender? O primeiro post foi o furo da notícia, o segundo, um vídeo do holograma do Steve Jobs comentando a aquisição; o terceiro e o quarto posts foram fotos da bandeira com a maçã mordida sendo hasteada em Atenas. Era relevante!

– Senhor Juiz, a lista de acusações é interminável, mas vamos nos ater a um último ponto: convites para eventos.

– Pronto, lá vem…

– Nos últimos 2 meses o senhor Fernando enviou a sua lista de amigos nada menos do que 19 convites para eventos, muitos destes estapafúrdios, tais como “Reunião dos Saudosos do Twitter” e “Festa de Aniversário da Suzy”, que vem a ser um avatar feminino criado por ele mesmo.

– Só quero deixar registrado que recebi várias confirmações pra festa da Suzy, ok?

– Precisamente 5, todas provenientes de perfis de avatares também criados pelo senhor. Já para o evento do Twitter…

– Bem, acho que cheguei a um veredito. Senhor Fernando, gostaria de dizer alguma coisa antes da sentença ser proferida?

– Sim, gostaria de perguntar ao Senhor Juiz se estou autorizado a fazer um vídeo deste momento…

Eles Usam Black Tie

seg, 18/03/13
por Bruno Medina |

Londres, primavera de 1860. Cansado de vestir as roupas de sempre em compromissos oficiais, o Rei Eduardo VII, então Príncipe de Gales, decide que é chegado o momento de confrontar o restritivo e monótono código de etiqueta vigente em sua corte; seguindo a determinação do futuro monarca, seu estilista pessoal confecciona uma revolucionária vestimenta, composta por uma leve e curta jaqueta sobre camisa branca texturada, ambas ornadas por uma faixa de cetim, posicionada na altura da cintura, e um laço de seda preto, selando o colarinho. Versátil e ao mesmo tempo ousado, o traje alcançou fama instantânea, passando a ser incessantemente copiado desde a primeira aparição pública.

Rio de Janeiro, verão de 2013. Suando feito um javali preste a ser abatido, Luiz, garçom de uma tradicional galeteria localizada no centro da cidade, circula com uma bandeja prateada em riste pelos estreitos corredores que se formam entre o mar de mesas. Aprisionado num desalinhado paletó branco que expõem fios puxados e manchas de gordura, cicatrizes do uso diário, em algum ponto entre a cozinha e a varanda do restaurante – possivelmente dois dos lugares mais quentes da Terra naquele princípio de tarde – Luiz se faz a mesma pergunta que me acompanha desde que me entendo por gente: afinal, por que é que os garçons usam smoking?

Ou melhor, que curiosos e tortuosos caminhos conduziram o traje, criado sob medida para um membro da corte britânica, dos luxuosos palácios que este frequentava na Inglaterra aos botequins mais pestilentos do Brasil? Bem, a explicação mais plausível sugere que o hábito tenha se originado em restaurantes de fato muito chiques, onde a qualidade (e o preço) dos pratos servidos condiziam com o uso desta que até hoje é considerada a mais nobre das vestimentas masculinas. Seguindo o raciocínio, proprietários de restaurantes não tão chiques devem ter resolvido também adotar a moda, imaginando que garçons vestidos de maneira impecável ofuscariam a falta de brilhantismo e criatividade dos cardápios de seus estabelecimentos. E por aí foi, descendo de degrau em degrau, até que se chegasse a um sujeito vestindo algo que remete vagamente a um smoking, servindo um outro sujeito, que belisca ovos de codorna e bebe uísque nacional sentado numa mesa de plástico em cujo tampo se vê a propaganda de uma cerveja obscura.

Acredito que cenas como a que acabo de descrever representem uma considerável ameaça à hegemonia do black tie como referência máxima de elegância que ainda é em qualquer parte do mundo, uma vez que jogam por terra o conceito original de exclusividade associado ao uso da vestimenta. É mais ou menos como quando chegaram ao mercado aqueles adesivos dos integrantes da família, que adornam centenas de milhares de traseiras de carros do norte ao sul do país. Aposto que os primeiros a comprá-los e os montarem à semelhança de suas verdadeiras casas devem ter se sentido como Colombo ao descobrir o Continente Americano, pelo menos até dobrarem a esquina e perceberem que todos os outros motoristas tiveram a mesmíssima ideia.

Eu mesmo devo confessar que nunca estive numa festa em que houvesse a indicação do traje – o que por si só denota que não conheço pessoas ou concorri em premiações tão relevantes – portanto, do alto da minha condição de cidadão de segunda classe, sou levado a refletir sobre uma nova questão: o que vestem os garçons nas festas em que todos os convidados estão de smoking? Se porventura você um dia esteve numa destas festas, por favor, não hesite em dividir conosco, reles mortais, a resposta. Mais do que apenas saciar nossa curiosidade, você poderá estar fornecendo ao Luiz uma boa desculpa para aposentar de vez a combalida jaqueta branca.

A Roupa Invisível do Rei

seg, 11/03/13
por Bruno Medina |

Não sei se os assíduos leitores deste blog já se deram conta disso, mas, de uns tempos para cá, tenho notado que a condição de ser VIP em nosso país perdeu muito da aura de glamour e do status aspiracional do qual desfrutou em outros idos. Também pudera, a expressão que um dia designou príncipes, estadistas e celebridades de grande relevância, vulgarizou-se por completo, estando agora relegada à demarcação do setor em que ainda é possível se encontrar vagas nos estacionamentos de shoppings e aos “chiqueirinhos”, formados por cadeiras e mesas de plástico em eventos de duvidável reputação. Seria este então o irônico desfecho para séculos de tradição em criar exclusividade para vendê-la bem caro a quem precisa?

Pois é, a bem da verdade a origem do VIP no Brasil remonta ao ano de 1500, mais precisamente quando um pequeno grupo de comerciantes lisboetas assegurou o direito de embarcar numa das 3 caravelas que rumariam ao Novo Mundo após contribuírem para o término da construção das mesmas. À época, o escuso privilégio desta minoria revoltou o povo português, mas o escândalo acabou abafado, visto que um dos pretensos viajantes era dono de um jornal. Estes mesmos homens, ao pisarem nas areias de Porto Seguro, prometeram para as duas índias mais bonitas da praia um tour por dentro de um dos barcos em troca de favores amorosos. Elas rapidamente aprenderam o conceito e o reproduziram, oferecendo-se como guias para incursões pela mata em troca de espelhos e alguns metros de linho. Tudo bem, a história foi inventada, mas quem duvida que algo bastante semelhante possa ter ocorrido?

De toda forma, não deixa de ser curioso observar como o termo que se confunde com a própria conformação de nossa sociedade deixou-se conduzir à vala comum das trivialidades, passando de honraria a quase insulto, uma vez que, atualmente, quase todos os brasileiros ascenderam à condição de clientes preferenciais em algum contexto, diga-se, por menos exclusivo que este de fato seja. Eis que sob risco de imergir num pântano de igualdade irrestrita e sem precedentes, o VIP compreendeu que, para continuar existindo, seria necessário transmutar-se. Assim como um dia as aves foram répteis, o mullet foi o corte da moda e o Monza foi o carro dos bacanas, assim como é natural a todas as coisas evoluir, o VIP de ontem tornou-se o Premium de hoje.

Podem reparar como ele já está no rótulo das cervejas mais sofisticadas, nos pacotes mais extensos de canais a cabo, no plano trimestral das academias de luxo, nas suítes com jacuzzi dos hotéis cinco estrelas, na área colada ao palco dos grandes shows internacionais. O Premium nasceu para ser a próxima fronteira do consumo, uma opção voltada a contemplar os gostos dos mais exigentes, estes que transcenderam a condição pregressa de VIPs; é o eldorado, o suprassumo, a elite da tropa, o crème de la crème, é pau, é pedra, é o fim do caminho. É o VIP dos VIPs. Do nome estrangeirado à intrínseca ideia de recompensa, o Premium parece preencher todos os requisitos para firmar-se como sonho de consumo da nova classe média.

Mas, apesar de tanta pompa e circunstância, desconfio que a mudança, na prática, tenha sido mesmo só para inglês ver, porque o bom e velho VIP continua dando as caras por aí. É como diz o ditado, “quem não tem cão caça com gato”, em outras palavras, para quem sempre esteve com os pés fincados na lama, o VIP ainda tem lá seus encantos. Ao Premium, está reservado o papel de estabelecer-se como a roupa invisível do rei, aquela que, no livro infantil, foi concebida por tecelões trapaceiros, segundo os quais apenas os dotados de extrema inteligência conseguiam enxergar. Aos que porventura não alcançarem a façanha, como consolo, resta esperar pelo próximo VIP.

 



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