Lente da Verdade
Diferente do que nos fizeram acreditar por décadas, tripular carros voadores e possuir robôs para lidar com os afazeres domésticos configuram uma realidade ainda bastante distante em 2013. Por aí tira-se o tamanho da frustração de quem, como eu, quando criança assistia aos Jetsons na TV toda vez que se vê preso num engarrafamento, quando precisa pendurar roupas no varal ou arrumar as compras dentro da geladeira na volta do supermercado. A despeito dos recentes avanços tecnológicos, num contexto em que ainda se admite o papel higiênico e o cartório para os fins que lhes cabem, é possível afirmar, sem hesitação, que o futuro chegou atrasado.
Mas se para toda regra existe uma exceção, vez ou outra há também momentos em que o presente tangencia o enredo dos filmes de ficção científica e nos confronta com algo realmente novo, capaz de transformar não só a forma como desempenhamos funções cotidianas, mas também a maneira como nos relacionamos com as pessoas a nossa volta. Esse parece ser o caso do Google Glass. Para quem não ouviu falar da engenhoca, trata-se de uma armação de óculos desenvolvida pela Google para exibir, numa lente de acrílico convencional, informações e dados obtidos através da interação com a internet, possibilitando, inclusive, a realização de tarefas específicas a partir do comando de voz. Dentre as que merecem ser citadas, fazer pesquisas, tirar fotos, gravar vídeos e projetar mapas tendo como perspectiva o próprio campo de visão, permitindo compartilhar tudo isso em tempo real com os amigos, sem tocar num botão sequer.
Na semana passada, caiu na rede um vídeo que demonstra o funcionamento do produto, supostamente em fase final de testes antes de ser comercializado, e que já deve estar provocando urticárias nos aficionados por tecnologia, estes que mal podem esperar para tê-lo apoiado sobre seus narizes. Assistindo ao filme – diga-se, um daqueles belíssimos e emocionantes filmes recheados de cenas emblemáticas que as grandes corporações fazem com tanta competência quando desejam nos vender algo – fiquei entusiasmado, claro, com o que o Glass é capaz de fazer, até porque, em tese, também sou forte candidato as tais urticárias.
Passados alguns instantes, no entanto, a sensação positiva cedeu lugar a uma certa desconfiança, sobretudo devido a impressão de que estes óculos representam um passo irreversível no sentido de termos nossa visão de mundo verdadeiramente intermediada pela tecnologia. Ora, Bruno, mas não é justo isso que eles se pretendem a fazer? Sim, mas a questão é: será que isso é bom? Explico. Ao lançar o Glass, a ambição dos engenheiros da Google não é revolucionar o que pode ser feito, mas sim a forma de fazê-lo. Notem que quase todas as funcionalidades oferecidas já podem há algum tempo ser encontradas em smartphones, portanto o apelo principal do produto está em substituir um gadget que costuma ser carregado no bolso por um que pode ser ajustado ao rosto.
A diferença essencial que vem a reboque está no novo paradigma que é estabelecido, este que nos coloca numa condição mais passiva em relação a tecnologia, visto que sua interação com o que está ao redor passa a ser menos eletiva (não é preciso puxar nada do bolso ou apertar qualquer botão) e mais pervasiva. Quem duvida, por exemplo, que em breve o uso dos tais óculos envolverá aceitar a visualização de anúncios, disparados pela simples observação de um objeto ou de uma loja na rua? Mais do que isso, caso o Glass se torne de fato popular, penso que daqui há 5 ou 10 anos a narrativa subjetiva e a impressão pessoal podem vir a perder importância em detrimento da facilidade com que se obtém o registro “oficial” dos fatos. Imagine uma roda de crianças acessando seus óculos para mostrar, umas as outras, os filmes de suas férias, sem poder mentir a respeito do tamanho do hambúrguer que comeram ou da onda que pegaram; ou então o chefe, que solicita assistir na íntegra o filme da reunião, para checar se a negociação se deu da forma combinada, ou pior, a esposa ciumenta que exige uma transmissão ao vivo de tudo o que o marido enxerga e ouve na festa de fim de ano da empresa.
Devaneios a parte, não se pode negar que o Google Glass tem potencial para tornar-se um marco tecnológico comparável ao lançamento do iPhone, em especial por viabilizar que algumas tarefas sejam realizadas de forma bem mais prática. Neste momento em que há mais dúvidas do que certezas quanto a forma com que virá a ser utilizado, um conhecido ditado traz luz à discussão: a diferença entre o remédio e o veneno está na dose…