Trágicas Lacunas
No momento em que o Brasil, em luto, busca respostas que elucidem o incêndio da Boate Kiss em Santa Maria, fico com a lamentável impressão de que o acidente – que custou a vida de ao menos 232 pessoas – possui contornos bastante familiares. Certo que ainda é muito cedo para se imputar culpa a quem quer que seja, portanto em nada surpreende, por exemplo, a especulação generalizada de que o ocorrido só se deu da forma como foi não por uma causa específica, mas sim por um somatório de erros e negligências. Ora, mas não é pelo mesmo motivo que caem os aviões? Não se iludam, meus caros, é exatamente disto que são feitas as tragédias, de omissões individuais, de pontos cegos nas legislações, de lacunas de responsabilidade.
Eu mesmo, que passei boa parte da vida tocando em palcos como este que hoje sucumbiu em chamas, posso afirmar que não foram poucas as vezes em que tive receio pela minha integridade física e a de todos os demais. Claro que esse é um pensamento pouco associável à ideia de diversão, até porque, que instrumentos possuem, na imensa maioria das vezes, artistas e público para avaliar se estão ou não em um lugar seguro? Nenhum. Você aí, que me lê, alguma vez vinculou sua presença em determinado evento à apresentação em dia de alvarás e licenças de funcionamento do local? Ainda que o fizesse, saberia dizer aonde se encontra esse tipo de informação? No quartel de bombeiros mais próximo? Na internet? No Diário Oficial? Na gaveta da escrivaninha do dono do estabelecimento? Se nos colocamos com frequência em situações de risco sem ao menos saber, isso se deve ao fato de acreditarmos que alguém, obviamente, está responsável por zelar por nossa segurança. Pois esse foi o engano fatal daqueles que, no último sábado, estiveram na Boate Kiss.
Nem se discute que a suposta ausência de saídas de emergência em número adequado, ou mesmo a conduta dos seguranças – que teriam impedido frequentadores de sair da casa “sem pagar” quando o incêndio começou – se confirmados, são indícios muito graves; nada que faça parecer menos estapafúrdia a ideia de disparar um sinalizador em ambiente hermético, lotado e revestido de espuma. Mas, se o perigo inerente ao ato escapou ao seu realizador, quem, afinal, deveria estar encarregado de proibi-lo? Perguntas sem aparente resposta que rondam a mente quando cogitamos o que poderia ter sido feito de outro modo para evitar os relatos e as imagens devastadoras com as quais agora temos que lidar.
Quando um acidente desta magnitude ocorre, o mínimo que se espera das autoridades responsáveis são medidas significativas, voltadas a impedir que os mesmos erros possam ser cometidos no futuro. Não sou especialista no assunto, mas me parece que um bom começo seria adaptar a legislação vigente, a fim de conferir maior rigor e, por que não, visibilidade aos atestados que qualificam casas de show, bares e boates como seguros, com o objetivo, sobretudo, de informar aos próprios frequentadores, que deveriam ser os maiores interessados. Mais do que isso, é preciso com urgência traçar um plano de ações capaz de prever os descaminhos da burocracia e da corrupção, um que verdadeiramente impeça que tantas pessoas percam suas vidas de um jeito tão banal. Cabe apenas a nós cobrar que seja assim.
Meus sentimentos sinceros a todos que, de maneira direta ou indireta, foram acometidos por essa tragédia. Infelizmente, anunciada.