Tudo novo, de novo

seg, 31/12/12
por Bruno Medina |

Em janeiro, ela vai se apaixonar, perdidamente; pela página em branco, pelo princípio de um movimento qualquer, pela iminência de viver algo novo e incomparável, algo que só neste ano poderia haver. Ela adora inícios. A sensação de não saber onde pisa, de tatear os rumos, de se deixar levar pelo primeiro vento que sopra.

Em fevereiro, ela vai se permitir ir um pouco além, pisar fora das linhas de segurança, olhar o próprio mundo de cima de uma árvore – de um outro quintal, quem sabe – sentir o calor do asfalto com os dedos dos pés, abraçar a vida como faria o mais dedicado dos foliões em plena quarta-feira de cinzas.

Em março, ela vai de encontro às tempestades. Sapatear nas poças de chuva, se sujar de lama até os joelhos, dormir ao relento, desdenhar do acaso. Vai se esquecer dos planos, dos amigos, do emprego e de tudo que é cabível, apenas para conhecer a extensão de seus limites.

Em abril, ela vai se olhar no espelho e enxergar que o verão terminou. Foi-se o tempo da picardia, da angústia e da afobação, dos exageros. É chegado o momento de pôr ordem na casa e voltar-se para si, sem sobressaltos, de experimentar a plenitude reservada aos que sabem que viveram intensamente.

Em maio, ela vai chorar. Não de felicidade, tão pouco por desgosto ou remorso, mas talvez por reconhecer a precária beleza do instante em que tudo está por um fio. O que ela foi e o que pretendia ser, agora, são como duas metades estranhas que se distanciam, um corpo que se desmembra sem qualquer resistência.

Em junho, ela vai adormecer profundamente e sonhar com o que está por vir. No sonho ela alcança o que buscava, no entanto, distraída pela inédita sensação de satisfação e alívio, desperta, sem conseguir lembrar-se do que era. Ao abrir os olhos, o que há para ser contemplado é o vazio.

Em julho, ela vai esmorecer. O ano chegou à metade e a impressão é de que todo o caminho foi percorrido em vão. Pela janela do quarto, parece que a cidade também parou: o ar gelado das manhãs escuras, os galhos lisos nas árvores e o silêncio das ruas só reforçam o desejo de nada ser.

Em agosto, ela vai hesitar; os dias de estagnação e dúvida se foram, cedendo lugar à lembrança do que estava em perspectiva durante os primeiros meses do ano. Se o tempo provou que não eram planos viáveis, eis a oportunidade para elaborar outros, mais passíveis de se concretizar.

Em setembro, ela vai voltar a acreditar em si mesma, aprender a conviver com as lacunas, com a falta de certezas, e a deixar-se permear pelo que está em volta. É primavera e, afinal, o que significa o espocar das flores senão o prenúncio do recomeço?

Em outubro, ela vai arregaçar as mangas, remexer a terra e dedicar-se à labuta, varar noites e noites elocubrando maneiras de reaver seus sonhos, estes que lamentavelmente se perderam ao longo do percurso.

Em novembro, ela vai sorrir e agradecer aos céus por sentir mais uma vez o ímpeto da transformação correndo nas veias, e por enfim compreender o imutável ciclo que rege sua existência: esvaziar o que está cheio para preencher o que está vazio.

Em dezembro, ela vai se despir de antigas convicções e, serena, abandonar o conforto de saber o que é para entregar-se às imprevisíveis possibilidades do novo, de novo. É sempre assim que acontece. Ao longe, já se faz sentir a brisa morna que anuncia o verão; é tempo de, mais uma vez, apaixonar-se pela página em branco.

 

Feliz Ano Novo! E que 2013 seja, para todos nós, repleto de conquistas e de intensidade!

Ao Alcance

seg, 24/12/12
por Bruno Medina |

Foi através da persistência da minha mulher, e, diga-se, de um providencial quarto de hotel surgido em cima da hora por conta da desistência de uma anônima família de turistas, que a magia natalina se manifestou antecipadamente na minha casa este ano. Após sucessivas negativas em conhecer o lugar, eis que enfim me rendi aos encantos de Gramado, a simpática cidade gaúcha de onde acabo de retornar, que nestes dias está vestida de vermelho, branco e verde para transformar-se na capital brasileira do Natal. Mas, antes que me comparem ao Scrooge (aquele sujeito rabugento e solitário – personificado pelo Tio Patinhas na versão da Disney – que recebe a visita dos Espíritos do Natal passado, presente e futuro), devo esclarecer que minha relutância em viajar para lá durante esta época do ano se devia a sensação de voluntariamente estar caminhando para dentro de um vulcão em erupção, ou, se preferirem, rumando para uma espécie de Réveillon na Praia de Copacabana, só que na serra e no período do Natal.

Meu receio era o de cruzar pelas ruas hordas de Papais Noéis vendedores, daqueles que se valem do prestígio que têm junto às crianças para empurrar-lhes toda sorte de bugigangas, estes misturados a uma multidão ansiosa por garimpar penduricalhos para enfeitar suas árvores, formar filas na porta de lojas de chocolate artesanal e, de quebra, sair no tapa pelas últimas cadeiras disponíveis em teatros e restaurantes. Diferente da apocalíptica previsão, tudo em Gramado é muito agradável e organizado, não por acaso a cidade foi eleita por dois anos consecutivos como o melhor destino turístico do país. Mas, a despeito da azeitada indústria do entretenimento que constituiu-se em torno da festa, é fácil perceber a presença de algo que vai muito além da exuberante decoração das ruas ou dos espetáculos de impecável nível técnico; afinal, qual razão motivaria a cada ano mais e mais famílias a se deslocarem de todos os cantos do Brasil, apenas para passar ali alguns poucos dias ao longo do mês de dezembro?

Desconfio que a resposta para esta pergunta se confunda com a própria definição do “Espírito do Natal”, a famigerada expressão que tornou-se sinônimo de um sentimento gostoso de sentir, mas complicado de se traduzir em palavras. Não duvidem que meus filhos tiveram momentos inesquecíveis visitando a Aldeia do Papai Noel, conhecendo renas genuínas ou mesmo tomando chuva de flocos de espuma como se fosse neve. Acredito, no entanto, que o aspecto mais significativo desta viagem consistiu em termos encontrado tempo e disposição em meio à loucura do dia a dia para vivenciar o que o Natal tem de mais importante, que é estar próximo de quem se ama. Hoje a noite, centenas de milhões de famílias ao redor do mundo estarão reunidas em função de um único objetivo, gosto de pensar que a maioria delas realmente motivadas por exercitar o afeto e a generosidade, dispostas, inclusive, a relevar divergências, e até desavenças, em nome de experimentar essa intensa sensação de plenitude, ainda que só por algumas horas.

Respondendo à pergunta que eu mesmo fiz no parágrafo anterior, acho que é a necessidade de se aproximar desse estado de espírito, cada vez mais difícil de ser alcançado no mundo absurdo em que vivemos, o que faz com que tantas pessoas procurem Gramado. A bem da verdade, eu que já estive lá posso assegurar que não é preciso ir tão longe; basta olhar em volta para constatar que quase tudo que é preciso para isso sempre esteve ao nosso alcance.

É ou não é?

Assim sendo, Feliz Natal!

Um Dia de Domingo

sáb, 15/12/12
por Bruno Medina |

Lembro-me de que era um domingo típico de verão. O sol já se punha em Ipanema anunciando aos retardatários que finalmente chegara a hora de deixar a praia, e a descontração dos banhistas a caminho da casa de sucos, descalços e salpicados de areia, apenas ressaltava o absurdo que era trajar calça e blusa social naquele escaldante princípio de noite. Como não havia conseguido estacionar na porta do bar, tive que carregar o teclado e a estante no lombo por 4 quadras ao menos; mas o que realmente me preocupava não era a dor nas costas que fatalmente sentiria no dia seguinte, e sim sujar, suar ou amassar a roupa do show. Eu mesmo não conhecia o lugar em que iríamos tocar, quer dizer, já havia estado ali, tomando cerveja com os amigos na calçada do outro lado da rua, mas nunca até então tinha tido motivos para subir a escada que dava acesso ao salão onde as bandas se apresentavam. “Isso aqui não vale R$400,00”, foi o que pensei assim que me deparei com o acanhado ambiente, cheirando a guimba de cigarro e caipirinha quente, rusticamente decorado e arrendado graças ao cheque caução assinado pelo pai do Marcelo.

Segundo o Alex, nosso produtor, não havia com o que se preocupar, visto que ele e o Marcelo tinham se certificado de ligar para vários amigos, que confirmaram presença. Considerando o fator “papo de carioca”, tivessem eles conseguido convidar 40 pessoas que fossem, minha expectativa era a de que viessem, com muito boa vontade, umas 10. Bom, a essa altura do campeonato, que jeito senão ser otimista? A passagem de som foi rápida, claro, até porque nem se justificava, dada a qualidade dos amplificadores, caixas e microfones. Era tão somente barulho o que aquele equipamento estava acostumado a oferecer, e o quanto antes aceitássemos essa condição, mais tempo teríamos para nos dedicar a outra providencial tarefa: tentar convencer os frequentadores do bar de que valia a pena pagar para assistir aquela inusitada banda de hardcore que tinha sax e teclado na formação. Foi o saudoso Vicente que largou a bandeja por um instante para se tornar nosso primeiro técnico de luz, tentando tirar o melhor dos dois únicos refletores voltados para o palco. Meio metro de altura, 3 de profundidade, 4 de largura, esse era todo o espaço que tínhamos para montar os instrumentos e nos acomodar, Marcelo, eu, Barba, Vitor A.S e Carlos Jazzmo. A título de ilustrar o quão diminutas são estas dimensões, basta dizer que havia uma música específica em que eu precisava ser realmente ágil, caso não quisesse tomar uma pratada no braço esquerdo.

O público foi chegando aos poucos, possivelmente em parte atraído pelo show do Noção de Nada, a banda mainstream do underground que fecharia a noite. Era preciso admitir que a tática de coagir os amigos com convites-telefonema havia surtido efeito, pois, se não eram 100 os presentes, muito menos eram 10, como eu temia em segredo. Ao todo, foram 74 os pagantes que resolveram nos dar um voto de confiança, números espetaculares para os padrões da casa, sobretudo se levarmos em conta que ninguém ali sabia exatamente o que esperar daqueles 5 sujeitos de roupa esquisita. Na hora de “subir” no palco bateu o frio na barriga, primeira banda de verdade, primeiro show da vida, muito mais complicado do que as apresentações de piano da professora Lea, das quais participei durante boa parte da adolescência. De blazer branco e cabelos molhados penteados para trás, o Marcelo nos avisou que, como introdução, recitaria um poema. Posicionou-se sobriamente em frente ao microfone, esperou o silêncio se impor e disparou:

“Rimo em versos o reverso / Falo em lua soberana / Pinto quadro que me ama / Beijo a flor que tu iluminas / Só pra poder dizer // Choro a alegria contida / Abro o peito encadeado / Clamo aos olhos encharcados / Absorto os engulo / Só pra poder dizer // Dou ao ódio a mentira / E à verdade uma ilusão / Me condena a solidão / E a certeza do engano / Só pra poder dizer… / Que te amo”

Olhando para trás, percebo que foi neste instante em que forjou-se a proposta estética do Los Hermanos, a mesma que depois veio a ser chamada pela imprensa de Lovecore, Wandocore e nem sei mais o que. Na sequência, sem muita conversa, perfilamos boa parte do repertório que viria a compor nosso primeiro disco, acompanhados palavra a palavra por um colega de faculdade chamado Rodrigo Amarante, que já conhecia todas as nossas músicas e que, com enorme merecimento, passou da plateia para cima do palco a partir do show seguinte. Superado o estranhamento inicial da plateia, lá pelo meio do show, as rodas de pogo começaram a se formar, e o resto, é história.

Naquele 14 de dezembro de 1997 eu tinha só 19 anos e, como quase todo mundo nessa idade, sonhava em arrumar um emprego decente, daqueles com carteira assinada e 13o, que me desse segurança e estabilidade para tocar a vida sem sustos tão logo aquela brincadeira entre amigos terminasse. Acontece que aquela brincadeira entre amigos nunca terminou, ao invés disso, tornou-se minha profissão e me levou por caminhos bem distantes da pretendida estabilidade, uma vez que por muitos anos tive a mala como casa, o banco da van e o chão do aeroporto como cama, a equipe da estrada como família. De palco em palco, de cidade em cidade, conheci todo o Brasil e um pouquinho do mundo na companhia dos meus melhores amigos, exercendo o privilégio de ser parte desta banda que, ao longo destes 15 anos, só me deu alegrias e motivos para ter orgulho. Como registros desta emblemática noite em que tudo começou, restam apenas uma foto, que ninguém sabe mais onde está, um set list amarelado e agora este relato, que vocês acabam de ler.

 

Vai que…

seg, 10/12/12
por Bruno Medina |

Não sei se foi por conta da recente briga entre Rafinha Bastos e Luciano Huck, pela repercussão do leilão da virgindade de Catarina Migliorini, pela divulgação do crescimento de apenas 0,6% no PIB do terceiro trimestre ou pela frustrada oportunidade de ter Pepe Guardiola como técnico da Seleção Brasileira, mas a verdade é que algo ou alguém está definitivamente ofuscado a iminência do fim do mundo. Puxem pela memória e me respondam: há uns 2 anos, nesta mesma época, existia algum assunto mais em evidência nas manchetes do que as elucubrações quanto a possibilidade de, em 21 de dezembro de 2012, a espécie humana se extinguir numa calamidade sem precedentes? Pois vejam o quão leviana é nossa natureza; faltando poucos dias para a fatídica data, contam-se nos dedos aqueles que hoje teriam coragem de se referir em público ao fato, possivelmente por medo de serem apontados nas redes sociais ou nas rodas de amigos como responsáveis por ressuscitar uma piada já velha. Afinal, convenhamos, o fim do mundo é mesmo tão 2010…

Apesar da aparente indiferença ao tema, aposto que, dentre essa multidão que agora bate cabeça a procura dos derradeiros presentes de Natal e que aguarda com avidez pela hora de assistir ao Especial Roberto Carlos devorando rabanadas e lascas de peru que sobraram da ceia, há quem, em segredo, se prepare para o pior. Nos Estados Unidos eles são chamados de ‘prepers’, na tradução literal, ‘preparados’, ou seja, uma turma que, ao longo do tempo, vêm estocando velas, alimentos, garrafas d’água, máscaras de gás ou qualquer outro item que acreditam ser útil, caso nossa civilização entre realmente em colapso.

Pelo sim, pelo não, aqui em casa resolvi botar pilhas novas na lanterna e, na última compra de mês, me certifiquei de incluir na lista também uma lata de Marrom Glacê, 2 caixas de bom bom e uma infinidade de aperitivos de toda sorte. Aliás, fica a dica, o extermínio da humanidade configura-se como uma ótima justificativa para encher a despensa com tudo aquilo que você sempre sonhou, mas a dieta – ou o bom senso – nunca permitiram. “E se o mundo acabar e a gente tiver aquela vontade danada de comer um doce? Adivinha quem vai ter que enfrentar o dilúvio torrencial ou a chuva de meteoros para checar se a padaria está aberta?” – argumentei na fila do caixa, para incredulidade da minha mulher e da senhorinha que estava logo atrás.

Premonições catastróficas à parte, creio serem pequenas as chances do próximo dia 21 ser lembrando como uma sexta-feira diferente de outra qualquer. Os Maias, como se sabe, eram um povo magnífico, muito embora tivessem uma queda por sobrepor calendários destinados a reger aspectos distintos, o que provavelmente explica, em parte, toda a confusão que se instaurou em torno do assunto. Isso sem mencionar o potencial que o pretenso anúncio do fim do mundo tem, desde sempre, de se tornar o maior caso de telefone sem fio da história, dado o teor da notícia e o potencial ruído causado por ao menos 3 mil anos de boca a boca.

Correndo o risco de ser mais mal interpretado do que o próprio Calendário Maia, me aproprio de um conhecido ditado para transmitir-lhes um valoroso conselho: “o melhor da festa é esperar por ela”. Assim sendo, aproveitem ao máximo os próximos dias para vislumbrar todas as vantagens que a suposta proximidade do fim pode lhes assegurar. Que seja, como para mim, a desculpa perfeita para, no shopping, não encarar a fila gigante formada por aqueles que desejavam trocar seus recibos de compras por cupons para participar de um sorteio. Vai que em poucos dias o mundo acaba mesmo e eu gasto preciosos minutos nutrindo a ilusão de ganhar um carro, que não se sabe nem se ainda vai ter rua para andar? Mais garantido, sem dúvida, é ir correndo pra casa traçar a lata de Marrom Glacê.

Menino do Rio

seg, 03/12/12
por Bruno Medina |

Tá certo que eu realmente passo longe do estereotipo do carioca, mas de praia, um pouco ao menos, eu entendo. Porque fui criado em Copacabana, tendo, durante toda a infância, aquele areial sem fim como extensão natural da sala de casa, picolé Dragão Chinês (sim, a procedência era duvidosa), mate de latão e Biscoito Globo como dieta mais assídua, e sabendo, desde sempre, como transpassar o perverso paredão de água que se forma na altura do Posto 3, e que volta e meia enche de areia – ou mesmo arranca – sungas e biquínis dos desavisados. Naquele idos, citações aos buracos na camada de ozônio eram esporádicas, raios UVB poderiam ser confundidos com poderes de algum super-herói obscuro, e o protetor solar, considerado artigo excêntrico e, portanto, vexatório pela molecada que vivia perto do mar. No máximo uma demão a cada 6 horas, por insistência das mães e apenas nos ombros, visto que ainda vigorava a crença inabalável de que quem ia a praia com frequência não tinha motivos para se preocupar com o sol. Mais de duas décadas se passaram e os rumos seguidos me distanciaram daqueles intermináveis verões de Copacabana, de maneira que este universo praieiro, que já me foi tão familiar, hoje, infelizmente, não passa de um quadro na parede da memória.

Não sei se é por falta de tempo, do estímulo apropriado ou por preguiça mesmo que tenho me mantido distante das areias, mas ontem foi um daqueles dias do ano – que se contam nos dedos de uma única mão – em que estive com meus filhos na praia da minha infância. Que beleza é poder cavar buracos e fazer castelinhos de areia de novo, pular a espuma e correr com água nas canelas, apresentá-los aos sabores da minha infância (exceto o picolé Dragão Chinês, por motivos óbvios) e ensiná-los a sair do mar sem levar caixote. Que beleza é esquecer que não tenho mais 8 anos de idade, época em que ia a praia todos os dias, e que o sol de 2012 não faz concessões a quem porventura se esquece de usar protetor solar. É, raio UVB, dessa vez você me pegou de jeito…

Acho que o pior aspecto de estar muito queimado não é, como costuma-se supor, a sensação física em si, mas sim a humilhação, no caso, estampada em sua cara, de constatar que você simplesmente não conhece o limite. Mal comparando, é como vomitar no churrasco de fim de ano da empresa porque bebeu caipirinha demais, como torcer o joelho na pista de dança ao performar um passo “especial”, ou como, na casa da tia, pedir a atenção de todos para fazer aquela brincadeira muito engraçada de monstro e levar todas as crianças presentes ao choro convulsivo. Em resumo, não restam dúvidas quanto ao fato de que você é um prego. Posto isso, vamos falar da dor: ela começa já na saída da praia, primeiro como um calor diferente, que não passa nem quando se está na sombra, e que logo se transforma numa espécie de coceira, que dói um pouquinho ao coçar. Quando isso acontece, a única certeza que se tem é a de que vai piorar, muito.

As horas seguintes são marcadas pelo arrependimento e pelas promessas de que nunca mais irá se expor à luz do sol, que passar protetor solar se tornará um hábito rigoroso, inclusive nos dias de chuva, mas de nada adianta. No espelho, o que se vê é a imagem do rosto rubro e deformado de um improvável ser mitológico, metade homem, metade crustáceo. A coceira então se intensifica, mas coçar dói demais, assim como ficar sentado assistindo TV na poltrona, cujo tecido assume ares de muro chapiscado; melhor seria dormir, isso se o lençol da cama não fosse como uma gigantesca folha de lixa de parede. É em pé que você vai ficar, para não doer as juntas. Besuntar-se de creme para queimaduras é a única alternativa conhecida para aliviar o sofrimento, muito embora a eficácia do tratamento seja algo semelhante ao ato de tentar esvaziar uma piscina olímpica com um balde. Não se iludam, amiguinhos, a verdade é que a ardência demora, e só passa quando tem que passar. Quando, após um ou dois dias, você finalmente conseguir retomar a vida social, descascando mais do que cebola e tendo bolhas espalhadas por toda a extensão de sua pele, ainda assim pode estar certo de que não faltará um cretino que se preste a fazer a infame pergunta: “O que houve, dormiu na praia ou tá querendo virar um pimentão?”. Não bastasse ter que sorrir amarelo para o comentário imbecil, o sujeito responsável por esse tipo de frase costuma dizê-la com a mão sobre o seu ombro, ou seja, esteja preparado para uma sessão de tortura sofisticada.

Enquanto digito este texto, tendo os braços arqueados para não tocar a mesa onde está o computador e mantendo as costas a um palmo de distância do encosto da cadeira, tento compreender como aquele menino, que tinha nas areias de Copacabana seu playground, afastou-se tanto de suas origens a ponto de se tornar este branqueio inveterado. Não sei se algum dia alcançarei tal resposta, mas posso continuar pensando, afinal taí uma das poucas coisas que neste momento não dói fazer.



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