O Príncipe e o Mendigo
Ao longo da semana que passou, confesso que não pude deixar de acompanhar a epopeia do tal “Mendigo Gato”. Ainda que, em linhas gerais, o enredo deste factóide tenha assumido contornos bem semelhantes a outros tantos que de quando em quando tomam de assalto as manchetes, um aspecto específico torna a história peculiar: o termo “Mendigo Gato”. Reparem que a forma quase caricata de se referir a Rafael Nunes, digamos, o homem por trás do fenômeno, é, no mínimo, um tremendo atenuante, uma maneira, possivelmente involuntária, de conceder leveza e ludicismo à tragédia da vida real.
Rafael vivia nas ruas de Curitiba porque era dependente de crack, e só se pode imaginar quanto sofrimento essa condição deve ter causado a sua família e a ele próprio. Todos sabemos o que na prática significa ter a vida atropelada por este vício, conhecemos os relatos, as cenas deploráveis exaustivamente exibidas nas reportagens televisivas, e temos plena consciência da ferida aberta que há em cada cidade onde existe uma cracolândia. Isso é, sem dúvida, aterrador.
Mas o que será que difere Rafael dos demais consumidores de crack? O que faz dele objeto de tamanho interesse, a ponto de torná-lo o tema mais comentado da semana na web? Por certo não é a solidariedade despertada por seu drama, que nada tem de inédito ou particular, talvez exceto pelo fato de que, apesar de todos os percalços pelos quais provavelmente passou, Rafael ainda é um cara bonito. Sua beleza é, portanto, uma afronta à racionalidade, afinal, trata-se de um dependente químico, uma pessoa doente, e esse é o paradoxo retratado na fotografia que não por acaso o transformou em celebridade instantânea.
É mais ou menos aí que surge o “Mendigo Gato”, uma espécie de recriação fantástica do Rafael; como se estivéssemos num musical da Broadway, eis que entra em cena nosso charmoso protagonista, um sujeito que forjou nas ruas seu savoir fare, que sobrevive às custas da benevolência feminina, e que se diverte com isso. Nada nele é indigno ou degradante, tudo nele é mistério e sedução. Aí está uma história que merece ser compartilhada, sobretudo porque encontra-se a quilômetros de distância dos muquifos imundos e apinhados de viciados que se formam atrás dos tapumes de obra ou debaixo dos viadutos das grandes cidades, lugares que Rafael possivelmente frequentou. Das mazelas de Rafael Nunes, no entanto, ninguém quer saber, elas não rendem sequer uma linha no Facebook, mas já as do “Mendigo Gato”…
Neste último sábado foi noticiado que, após ter sido localizado pela família, Rafael havia finalmente aceitado se internar numa clínica de reabilitação. Final feliz? Creio que não ainda, porque este simplesmente não parece ser um desfecho a altura da curiosidade despertada por este caso. Porque não vamos nos conformar em esperar meses para ter notícias de seu estado, queremos já conhecer o interior da clínica, os médicos da equipe, seus colegas de tratamento, sua família e, claro, ouvir o que ele tem a dizer de tudo isso. Será que vai retomar a carreira de modelo? Será que vai participar de um reality show? Será que toparia arrumar uma namorada através de um programa de auditório? O tempo irá dizer. Ao deixar a clínica, a despeito do assédio ao qual será submetido, Rafael terá uma importante escolha a fazer, quem sabe até a mais importante de toda sua vida. Esta se resumirá a decidir se dali pra frente deseja seguir como Rafael Nunes ou como o personagem que lhe foi imputado. Mendigo ou príncipe?