Um time pra chamar de seu
Pouca gente pode dizer que já me ouviu falar sobre futebol. Não que eu seja indiferente ao esporte, pelo contrário, apenas não gosto de debatê-lo por aí com qualquer um. Gosto de pensar que tal postura me mantém a salvo da irracionalidade alheia, esta que costuma aflorar tão naturalmente de quem menos se espera quando o polêmico tema vem à tona. Na mesa de bar ou no banco de trás do táxi, portanto, prefiro divagar sobre política ou religião. Acreditem, dá menos trabalho. E é assim, de maneira discreta e serena, que sigo torcendo pelo meu Fluminense. Aos que duvidam da legitimidade desta relação, sobretudo aqueles que sabem da controversa participação que tive no registro de uma versão do Hino do Vasco (era com o Paulinho da Viola, pô!), atesto que, quando meu time joga, se necessário, chego até a acompanhar aquelas transmissões por texto via web, uma espécie de tortura chinesa pós-moderna que aproxima a experiência de um jogo da leitura de um telegrama. Diz aí se alguém que porventura não goste de futebol conseguiria resistir a 5 minutos que fosse daquele verdadeiro conta-gotas de emoções?
Aparentemente, essa não é a opinião da minha mulher. Sua notável incapacidade de ler as entrelinhas e de compreender a sutileza da minha devoção ao Tricolor das Laranjeiras a levou, imaginem, a acreditar que poderia sugerir ao nosso filho o impropério de torcer pelo Flamengo. Afinal, como não me vê gritando com a televisão ou xingando os vizinhos pela janela aos domingos, supôs que não me incomodaria assisti-la tentar deliberadamente influenciar o gosto do pobre menino. Seu sórdido plano começou de mansinho, pelas beiradas, a partir da improvável recuperação de uma camisa oficial infantil do clube da Gávea, que ganhou do avô quando tinha quatro anos. Na sequência veio uma palhaçada de gritar “mengo” toda vez que cruzávamos uma bandeira vermelha e preta na rua, “para demonstrar de forma didática o sentimento que o futebol desperta”, alegou. Outro dia, vejam só a audácia, ofereceu ao garoto num shopping um pavoroso meião vermelho; achei que a gravidade da situação exigia uma atitude, não em relação a minha mulher, claro, mas ao meu filho, ou vocês acham que eu iria polarizar a disputa de maneira tão primária? Esse é o jogo da minha oponente. O meu, definitivamente, é outro.
Se eu quiser que o Vicente se torne um legítimo tricolor, preciso fazê-lo pensar que a escolha se deu de maneira espontânea, e não por imposição. Seguindo a linha de raciocínio, meu primeiro movimento nesta direção foi cirúrgico. Quando, durante um almoço na semana passada, minha mulher forçou-o a afirmar na mesa que queria ser flamenguista, reagi com tranquilidade e demonstrei não me importar: “Eu entendo, filho, ser Flamengo é bem mais fácil mesmo, tanta gente já é, né?”. Silêncio. Prossegui: “Como você sabe, eu sou Fluminense, assim como o seu avô…”. “Mas por que você não é Flamengo igual a mamãe?”, perguntou, confuso, o menino. Nesse momento, dezenas de possíveis respostas para a emblemática pergunta passaram pela minha mente, acabei escolhendo a que melhor se adequava à capacidade de entendimento de uma criança com a sua idade: “Eu e o vovô não somos Flamengo porque esse é o time do Urubu”. “Bruno!”, exclamou a patroa, pela reação senti que o tiro havia sido certeiro. “Vamos pegar o iPad para conhecer o Urubu, mascote do time da mamãe?!”, sugeri, já procurando com a ponta dos dedos o aplicativo do Zoológico. “Esse aqui é o Urubu, filho”, sentenciei, empunhando o tablet de maneira incisiva, ao que ele reagiu com olhos arregalados. A cereja do bolo deixei por último, apertar no canto da tela o botão que dispara o som emitido pela ave. Amigos, pesquisem o som que faz o Urubu, mas nunca próximo da hora de dormir. Trata-se de uma mistura do Mumm-Ra dos Thundercats quando ficava nervoso com aquele vento de filme de terror que passa pela fresta da janela, antecipando a tempestade. Até eu fiquei com um pouco de medo.
No placar, 1X0 a meu favor.
Moral da história: minha mulher terminou a refeição de cara amarrada – constatando que esse jogo vai ser um tanto mais difícil do que previa – , Vicente acabou ficando curioso sobre o time do papai, e eu ganhei mais um tempo para preparar minha próxima investida: entrar no quarto dele, na calada da noite, fantasiado de Vágner Love, com tererê e tudo. Se no dia seguinte ele não me pedir um uniforme completo do Fluminense eu apresento a Tabela do Brasileirão!