Sem legendas

seg, 28/03/11
por Bruno Medina |

Uma das maiores vantagens de não se compreender um idioma – se é que realmente existe alguma – consiste na possibilidade de abandonar usuais convicções para mergulhar de cabeça no pantanoso terreno das suposições. Neste contexto, qualquer sinalização não verbal assume enorme importância; olhares, gestos, entonação da voz e até postura corporal passam de coadjuvantes a protagonistas das ações, tornando-se, portanto, ferramentas indispensáveis ao entendimento de quem observa.

Posto isso, segue a descrição de uma cena que presenciei no metrô de Praga, ou, pelo menos, o que ela me pareceu:

São colegas, com certeza. Os livros idênticos que ambos carregam nas mãos denunciam. Pela capa, algo relacionado a finanças. Estão sentados lado a lado, sendo que a iniciativa da conversa parece sempre partir dele; ela tem uma atitude menos entusiasmada, e, ao falar, permanece voltada para a frente, ao contrário dele, que procura olha-lá nos olhos.

Ele articula as mãos demasiadamente, utiliza-as de maneira análoga a que faria um pavão com a própria cauda. Conta nos dedos, aponta para o infinito, invadindo a fronteira imaginaria que sua metade do banco determina. Ela recua o dorso através de um milimétrico movimento quando ele se aproxima demais, mas não deseja que ele note.

Ele conta casos que supõem serem engraçados, histórias que envolvem possivelmente amigos em comum. Ela parece rir apenas por educação, e ele se dá conta disso. Nos momentos menos inspirados, ele busca acompanhar o display que indica as estações, ela os ponteiros do relógio. A impressão é a de que ele quer parar o tempo, ela, o contrário disso.

Agora os dois olham para a frente, e a súbita mudança de postura dele denuncia, pela primeira vez, insegurança ou vulnerabilidade. De repente é como se ele se concentrasse para executar ou dizer algo previamente planejado. Seu semblante remete ao de um atleta olímpico, antes de iniciar a performance que selara seu destino.

Por alguns instantes, é como se ele abandonasse a persona que criou, este sujeito que argumenta de maneira eloquente, se expressa através de gestos largos e toma a iniciativa. Seria um momento de autoavaliacao? Quem sabe uma hesitação diante do esforço empregado até então, uma constatação realista das chances que possui. O breve momento de reflexão teve, como consequência, uma indesejável ruptura, permitindo que ela se refugiasse na leitura de uma página qualquer do livro que antes mantinha fechado no colo.

É nítido que a embaraçosa situação caminha pra um desenlace. Ela não quer rechaçá-lo, mas tem consciência de que já é tarde demais para que ele recue. Aqueles minutos de trajeto compartilhado no metrô eram tudo que restava a ele, e, de certa forma, a demonstração de seu interesse por ela, o ponto máximo de uma relação fadada ao esquecimento.

Como um bom guerreiro, ele decide morrer de pé. A expressão confiante do rosto retorna, mas, dessa vez, com menor convicção. Ele propõe um encontro talvez, a fala está contaminada de apreensão. Ela arregala os olhos, cruza os braços e, ainda voltada para frente, responde com alguma desculpa que acabara de inventar. Só então o encara, oferecendo uma contra-proposta que parece estar muito aquém do que ele imaginava. Pronto.

Por três estações um silêncio aterrador se sustenta. Ela apavorada, com o nariz enterrado no livro, ele fitando o nada, como quem recapitula os movimentos errados num tabuleiro de xadrez. Chegada a hora dela saltar, a sensação de alívio é evidente para os dois. Antes de levantar, ela se despede estendendo a mão, de onde ele cava um abraço e um beijo na proibitiva área do pescoço.

Do banco de trás, testemunho o tiro de misericórdia: um movimento vertical das mãos dela alisando de palma aberta as costas dele, de cima pra baixo. Um carinho respeitoso e protocolar que em qualquer parte do mundo significa exatamente a mesma coisa.

Bitte wecken Sie mich um 9 Uhr

seg, 21/03/11
por Bruno Medina |


Berlim, Alemanha, 6:25h, temperatura externa, -2C. Deitado na cama do hostel, digito letra a letra estas mal traçadas linhas na tela do smartphone, na expectativa de aplacar a inalienável solidão da insônia causada pelo fuso horário.
A razão da viagem é gozar destas que serão minhas primeiras férias em muitos anos (inclusive, vocês do G1, considerem- se avisados).

A perspectiva é, além de passar pela capital germânica, conhecer Praga e voltar a Paris.
Tudo muito bacana, coisa fina, não fosse o inconveniente fuso horário. Tudo bem, eu sei, na Ásia por exemplo, poderia ser muito pior. Mas quando estive no Japão, anos atrás, fiquei literalmente 4 dias sem dormir e pensei de verdade que fosse morrer.

Com apenas 4 horas de diferença, que é meu caso atual, e esse frio lá de fora, o máximo que acontece é ficar olhando pro teto, esperando dar no Brasil um horário decente para ligar para a família, sem que achem que o telefonema trata-se de alguma daquelas notícias tenebrosas de meio de madrugada.

Se pensarmos bem, além de atrapalhar turistas incidentais como eu, o fuso horário ate que tem lá suas virtudes.
Imaginem como seriam os réveillons se não pudéssemos antes saber que já é ano novo na Austrália e em Singapura? Para os insones, também funciona pensar que enquanto só você permanece acordado, em algum lugar do planeta outras pessoas já estão em plena atividade no meio de seus dias.

Acho que quando Deus criou o mundo, deve ter achado que essa coisa de fuso poderia ser, de alguma forma, um alento. Afinal, se toda a humanidade ficasse acordada ao mesmo tempo, seria muito difícil administrar tantas demandas simultâneas. Com a metade do mundo acordada e a outra dormindo, com certeza torna-se menos estafante o trabalho.

Outra coisa bem evidente é como certas pessoas de fato nasceram numa faixa de fuso horário errada. Tem um amigo meu por exemplo, que nunca consegue acordar dignamente no Brasil antes das 13h, e por isso sofre com a áurea de vagabundo que lhe é atribuída. Mas se morasse no Oriente médio, por exemplo, seria um trabalhador acima de qualquer suspeita.

Já eu, infelizmente, sou daqueles que acorda cedo sempre, sejam quais forem as circunstâncias, o que me leva a concluir que há certas pessoas que possuem um fuso próprio, independente de fatores externos. O meu sempre fica regulado no módulo “cedo”. No caso, ter meu próprio fuso, aqui na Alemanha me permitiu ir ao banheiro coletivo, no que seria madrugada pra eles, de sobre-tudo aberto e cueca, com a certeza de que não seria testemunhado por ninguém durante a pouco edificante caminhada.

Olhando pelo lado positivo, agora mesmo o dia nem começou na Europa, nem pensa em começar no Brasil, e eu já estou produtivo, escrevendo um texto enorme no tecladinho virtual do IPhone, coisas do fuso horário. Se amanha eu acordar de novo a essa hora, já esta decidido, vou fazer aulas virtuais de tricô, através de vídeos postados por praticantes do novelo no youtube! Mas se alguém tiver uma dica melhor, agradeço.

Maricota e Juvenal

seg, 14/03/11
por Bruno Medina |

Eu devia ter uns 8 anos quando meu pai chegou em casa anunciando a grande novidade: “comprei um coelho!”. Se bem me lembro, eu havia pedido de aniversário um pônei, aceitaria um macaco, mas acho que o coelho foi uma escolha sensata, dada as dimensões de nosso apartamento. Só um tempo depois entendi que a inusitada opção pelo bichano teve um dedo do Seu Clemente, porteiro do prédio em que morávamos à época, detentor, ele próprio, de um coelho que dizia ter mais de 15 anos.

O coelho do Seu Clemente, apesar da idade avançada, saltava obstáculos, ficava de pé sozinho e rolava no chão; o nosso apenas comia ração, batia com a cabeça nos móveis e fazia xixi no carpete. Numa fatídica manhã, duas semanas após ter chegado, nosso peludo amiguinho, de súbito, bateu as botas. Segundo o veterinário, supostamente intoxicado pelas doses constantes de cachaça que lhe eram administradas, a fim de que aparentasse euforia frente aos possíveis compradores. Mas isso também explica porque vivia batendo com a cabeça nos móveis…

Antes que a decepção e a tristeza se abatessem sobre as crianças da casa, meu pai decidiu agir. Para contornar o fiasco da investida anterior, saiu, no mesmo dia, em busca de um casal de periquitos. Pela lógica, nosso vizinho, Robson, deveria ter sido consultado, visto que sabidamente mantinha um viveiro com mais de dez daquelas avezinhas no apartamento ao lado. Mas isso não aconteceu. Recentemente ele havia se tornado persona non grata, por ter velado os negativos de nossa visita ao Simba Safári: o veterano fotógrafo nos convenceu de que poderia ampliar as fotografias de nossas férias, não só por um preço mais em conta, como também com maior qualidade em seu laboratório particular. Deu no que deu.

Pois bem, com ou sem especialista, agora tínhamos um belo par de periquitos, que tão logo foram batizados de Maricota e Juvenal. Bastaram poucos dias para que os graciosos pássaros se tornassem o divertimento da casa, sendo inclusive comum, ao invés de assistir TV, a família toda se reunir em frente a gaiola, para vê-los tomar banho, balançar no poleiro e até namorar. O tratamento especial ao qual eram submetidos incluía banhos diários de sol, quando Ricardina, nossa empregada, pendurava a gaiola deles na janela da sala por alguns minutos.

Reza a lenda, foi por ouvir no rádio uma música de Roberto Carlos – a qual a fez lembrar do ex-namorado – que a desajeitada Ricardina se emocionou a ponto de desequilibrar-se da escada, justo no momento em que Maricota e Juvenal rumavam para a janela. Nem precisa dizer que a gaiola escapou de suas mãos num vertiginoso e fatal mergulho, desde o 7o andar até o chão. Lembro de que descemos as escadas do prédio correndo e chorando, Ricardina vinha atrás, correndo, chorando e pedindo desculpas, cena de filme.

Permanecemos atônitos por alguns instantes perante a gaiola, contemplando aquele que seria o segundo desfecho trágico da tentativa de termos um bichinho. Eis que lá de cima, informado por Seu Clemente do ocorrido, Robson superou a picuinha com os vizinhos e gritou: “tenta reanimar eles, massageia o coração!”. Meu pai então abriu a gaiola e, meio sem acreditar, desatou a fazer uma massagem cardíaca de dedo indicador no peito do Juvenal.

Nesse ínterim, Maricota abriu os olhos, balançou a cabeça e, para nossa alegria, deu sinais de que poderia se recuperar. Mas enquanto tentávamos pegá-la para melhor investigar seu estado, o imponderável aconteceu. Juvenal, até o momento desfalecido, rodopiou em torno do próprio eixo, sacudiu as asas e voou pra fora da gaiola. No meio da confusão, Maricota se esgueirou pela brecha da portinhola aberta e fez o mesmo. O casal zuniu ligeiro pelos céus de Copacabana, deixando para trás, além do antigo habitat dilacerado, a sensação de terem se aproveitado do incidente para viver seu amor bem longe dali.

Por via das dúvidas, na minha casa nunca mais se falou em animalzinho de estimação…

Sua majestade, o mijão

seg, 07/03/11
por Bruno Medina |

Não tem pra Rei Momo, madrinha de bateria, musa de camarote, político bebum ou celebridade internacional; entra ano sai ano, o protagonista incontestável do Carnaval carioca continua sendo o mijão. Apesar dos esforços empenhados pelas autoridades locais em combatê-lo, o onipresente personagem ainda se mantém como maior vilão dos blocos, deixando, por onde passa, sua marca registrada: um rastro de degradação, fedor e desrespeito ao próximo. A fim de compreender a intrigante psique por trás deste perfil, o INSTANTE POSTERIOR imergiu na folia popular, com a missão de dar voz ao inimigo público número 1 da cidade nestes tempos. Durante o desfile de um bloco de grandes proporções pelas ruas da Zona Sul do Rio, encontramos O PEGADOR, autointitulado codinome de nosso entrevistado. Segue a transcrição da conversa:

INSTANTE POSTERIOR: “por favor, estamos fazendo uma pesquisa sobre blocos de rua, você poderia responder a algumas perguntas?”

PEGADOR: “pô, mas tem que ser agora? (…) Beleza, vai lá…”

IP: “não pude deixar de notar que você estava urinando atrás de um banheiro químico…”

P: “você é da prefeitura?!”

IP: “não.”

P: “ainda bem, só faltava agora eu ser preso. Cara, você me deu um susto, me pegou com a boca na botija! (…) Pensando bem, se você for escrever isso, coloca que você me pegou com a mão na massa, senão fica um pouco estranho, né?”

IP: “ok, mas voltando a pergunta…”

P: “ah, sim. É verdade, eu estava mijando ali atrás mesmo, porque do outro lado está a maior fila. Brother, com cinco latinhas de cerveja no bucho, não dá pra esperar. Fora que o banheiro já deve estar a maior imundice.”

IP: “como você se posiciona quanto ao fato da prefeitura considerar a urina feita nas vias públicas o maior problema enfrentado pelo carnaval de rua carioca?”

P: “sinceramente acho um pouco de frescura. Por que os cachorros podem e eu não? No mais, é questão de ponto de vista. Pra mim, o maior problema do carnaval de rua carioca são essas mulheres que ficam se fazendo de difícil.”

IP: “explique melhor…”

P: “a gente pega a mulher pelo braço pra iniciar uma conversa amigável e elas nem dão uma moral, nem olham na nossa cara! Pô, isso pra mim é uma questão de respeito, saca? As pessoas, no geral, andam muito sem educação hoje em dia, os valores familiares estão sendo ignorados.”

IP: “sei. Voltando ao tema principal, qual seria, na sua opinião, uma solução plausível para evitar que as pessoas urinassem na rua?”

P: “bom, pra começo de conversa, acho que essa história de banheiro químico não vai funcionar nunca, pode botar quantos quiser. Se você pensar bem, as pessoas sempre fizeram xixi na rua, até mesmo fora do Carnaval, e vão continuar fazendo. Isso é uma coisa natural do ser humano. Acho que a prefeitura deveria aceitar que, depois que os blocos passam, é preciso gastar dinheiro com limpeza, faz parte. Pega um caminhão de bombeiro, taca um mangueirão de água na rua e tudo certo.”

IP: “e o que você pensa da repressão aos mijões?”

P: “a repressão só piora as coisas, como dizia Che Guevara. Agora, por exemplo, tem amigos meus que inovaram e estão se aliviando durante o desfile do bloco mesmo.”

IP: “como assim?”

P: “seguinte: com medo de ir parar na delegacia, ali na confusão, eles botam o p.. pra fora e seguem andando, como se nada estivesse acontecendo. O problema é que o cara tem que estar meio sóbrio, senão acaba mijando dentro do próprio sapato, né não? (risos)

IP: “e você já experimentou essa nova técnica?”

P: “até agora não, mas até o fim do desfile, quem sabe. Irmão, se você me der licença eu queria parar por aqui, porque essa conversa me deu uma certa vontade de fazer xixi…”

IP: “dessa vez você vai fazer como?”

P: “pô, a fila tá gigante ainda… acho que vou experimentar a nova técnica, sei lá. Valeu então, boa sorte aí nas entrevistas. Só não aperto tua mão porque…”

IP: “eu entendo.”



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