Sem legendas
Uma das maiores vantagens de não se compreender um idioma – se é que realmente existe alguma – consiste na possibilidade de abandonar usuais convicções para mergulhar de cabeça no pantanoso terreno das suposições. Neste contexto, qualquer sinalização não verbal assume enorme importância; olhares, gestos, entonação da voz e até postura corporal passam de coadjuvantes a protagonistas das ações, tornando-se, portanto, ferramentas indispensáveis ao entendimento de quem observa.
Posto isso, segue a descrição de uma cena que presenciei no metrô de Praga, ou, pelo menos, o que ela me pareceu:
São colegas, com certeza. Os livros idênticos que ambos carregam nas mãos denunciam. Pela capa, algo relacionado a finanças. Estão sentados lado a lado, sendo que a iniciativa da conversa parece sempre partir dele; ela tem uma atitude menos entusiasmada, e, ao falar, permanece voltada para a frente, ao contrário dele, que procura olha-lá nos olhos.
Ele articula as mãos demasiadamente, utiliza-as de maneira análoga a que faria um pavão com a própria cauda. Conta nos dedos, aponta para o infinito, invadindo a fronteira imaginaria que sua metade do banco determina. Ela recua o dorso através de um milimétrico movimento quando ele se aproxima demais, mas não deseja que ele note.
Ele conta casos que supõem serem engraçados, histórias que envolvem possivelmente amigos em comum. Ela parece rir apenas por educação, e ele se dá conta disso. Nos momentos menos inspirados, ele busca acompanhar o display que indica as estações, ela os ponteiros do relógio. A impressão é a de que ele quer parar o tempo, ela, o contrário disso.
Agora os dois olham para a frente, e a súbita mudança de postura dele denuncia, pela primeira vez, insegurança ou vulnerabilidade. De repente é como se ele se concentrasse para executar ou dizer algo previamente planejado. Seu semblante remete ao de um atleta olímpico, antes de iniciar a performance que selara seu destino.
Por alguns instantes, é como se ele abandonasse a persona que criou, este sujeito que argumenta de maneira eloquente, se expressa através de gestos largos e toma a iniciativa. Seria um momento de autoavaliacao? Quem sabe uma hesitação diante do esforço empregado até então, uma constatação realista das chances que possui. O breve momento de reflexão teve, como consequência, uma indesejável ruptura, permitindo que ela se refugiasse na leitura de uma página qualquer do livro que antes mantinha fechado no colo.
É nítido que a embaraçosa situação caminha pra um desenlace. Ela não quer rechaçá-lo, mas tem consciência de que já é tarde demais para que ele recue. Aqueles minutos de trajeto compartilhado no metrô eram tudo que restava a ele, e, de certa forma, a demonstração de seu interesse por ela, o ponto máximo de uma relação fadada ao esquecimento.
Como um bom guerreiro, ele decide morrer de pé. A expressão confiante do rosto retorna, mas, dessa vez, com menor convicção. Ele propõe um encontro talvez, a fala está contaminada de apreensão. Ela arregala os olhos, cruza os braços e, ainda voltada para frente, responde com alguma desculpa que acabara de inventar. Só então o encara, oferecendo uma contra-proposta que parece estar muito aquém do que ele imaginava. Pronto.
Por três estações um silêncio aterrador se sustenta. Ela apavorada, com o nariz enterrado no livro, ele fitando o nada, como quem recapitula os movimentos errados num tabuleiro de xadrez. Chegada a hora dela saltar, a sensação de alívio é evidente para os dois. Antes de levantar, ela se despede estendendo a mão, de onde ele cava um abraço e um beijo na proibitiva área do pescoço.
Do banco de trás, testemunho o tiro de misericórdia: um movimento vertical das mãos dela alisando de palma aberta as costas dele, de cima pra baixo. Um carinho respeitoso e protocolar que em qualquer parte do mundo significa exatamente a mesma coisa.