Aonde os calos apertam
Essa semana um fato trivial da convivência doméstica ressaltou o que seguramente pode ser considerado como um dos mais evidentes aspectos capazes de diferenciar os gêneros masculino e feminino: a atenção que cada um destes dispensa ao que calça. Salvo pontuais exceções, não seria exagero afirmar que homens costumam se contentar em dispor de 4 ou 5 pares de sapatos, quando muito (inclusos chinelos e tênis), tidos como mais do que suficientes para conduzi-los a seja qual for a ocasião. Já as mulheres…
Bem, a minha, que está longe de poder ser classificada como consumidora voraz de tais acessórios, se dizia impossibilitada de comparecer a uma festa, visto que a roupa recém comprada não combinava com nada apresentável para cobrir os pés. A fim de solucionar o dilema, cogitou que, antes da festa, fizéssemos uma escala estratégica no shopping. Enquanto avaliava a proposta e cogitava alternativas menos emocionalmente dispendiosas, me senti como o Shrek chafurdando na lama ao constatar que, naquele instante, calçava o que julgo ser meu melhor par de sapatos, o mesmo, inclusive, que utilizara horas antes para ir ao supermercado.
Sim, porque homens, quando gostam muito de um determinado sapato, passam a usá-lo todos os dias, ao contrário das mulheres, que os poupam para situações especiais. Talvez por esta razão nunca se tenha ouvido falar de príncipe ou magnata que possuísse coleção de sapatos à altura sequer do closet de uma das integrantes da série “Sex and the City”. Muito menos de amigos, que a exemplo de Carrie Bradshaw e suas fiéis escudeiras, combinassem de ir juntos a uma sapataria em liquidação para afogar as mágoas.
Sendo pai de um menino e de uma menina, provavelmente não poderei estender aos meus filhos o saudável hábito que havia na casa dos meus pais, o de repassar, de um irmão para o outro, bons sapatos com pouco uso. Eu até tento investir em cores e modelos híbridos, muito embora o mercado de calçados infantis pareça sempre estar mais motivado a apostar no binômio azul e rosa. A despeito de pais preocupados em não torrar fortunas em sandalinhas que se perdem em poucos meses, me parece natural que a maioria das pessoas prefira não suscitar dúvidas sobre a que gênero se destinam os sapatos que usam.
A princípio não foi o que pensou minha mãe quando, anos atrás, resolveu me presentear com um modelo de calçado que poderia ser definido como impermeável e “unissex”. Dizia ela que o sapato se ajustava tanto ao solo pedregoso de recifes e cachoeiras, quanto a homens e mulheres. Acreditando na força da novidade, levei-o comigo para um final de semana em Mauá, de quando guardo vívidas na lembrança as sensações de fazer laminha entre os dedos e de ser observado com desconfiança pelos locais, aparentemente despreparados para compreender o conceito libertário do dito sapato anfíbio.
Para me confortar, minha namorada na época alegou que, na França, é comum se deparar com rapazes trajando suas Melissinhas, mas desconfio que isso não seja verdade. Ao menos quanto aos sapatos, continuarei acreditando que homens e mulheres habitam planetas distantes; a não ser, claro, que alguém me convença dos benefícios de se passar uma noite inteira com os dedos espremidos sobre o salto agulha de um scarpin.