Também morre quem atira
Não sei se já cheguei a comentar isso aqui, mas eu ronco. Ronco legal. O distúrbio tão comum, que atinge gente de qualquer idade, em mim se manifesta devido a uma alergia respiratória crônica, sendo que quando o clima esfria como agora, minha vulvuzela interna soa, e soa alto. Pelo menos é o que diz minha mulher, e a mim, por motivos óbvios, só resta acreditar.
Pois a sina de todo roncador, se é que esse termo existe, é depender da avaliação de terceiros para mensurar o tamanho real de seu “problema”. Ao que pude constatar, supondo que houvesse uma Escala Richter para categorizar o grau de transtorno gerado por um ronco, o meu equivaleria a um daqueles tremores de terra amenos, que derruba coisas das prateleiras, desloca móveis, mas não culmina em vítimas fatais.
Mesmo o caso não se tratando dos mais graves, a síndrome gerou e ainda gera muito constrangimento, claro. Nesses vários anos de estrada e de quartos divididos com colegas, vocês podem imaginar que não foram poucas as vezes em que quis desaparecer no meio da noite, por testemunhar as consequências diretas do ato inconsciente.
Só para citar alguns exemplos, já me deparei com um sujeito dormindo de fones de ouvido para abafar o som ambiente, e com outro que preferiu levar cobertor e travesseiro para deitar no chão frio do banheiro. Mas o mais acintoso caso de desaprovação e intolerância foi, sem dúvida, protagonizado por um amigo que, durante uma viagem internacional, passou a noite em claro balançando meu pé, para me acordar e dizer que eu estava roncando.
“De que adianta isso?”, pensava, entre um e outro sonho interrompido. Como se alguém roncasse de propósito! Depois que a má fama se espalha não tem jeito, o pobre roncador passa a ser vítima de preconceito e, não raro, se vê relegado à indesejável companhia de seus semelhantes. Sim, porque, o fato de uma pessoa roncar não a impede de também se incomodar com o ronco alheio. Afinal, como diz o trecho da versão de Hey Joe, gravada pelo Rappa, “também morre quem atira”.
Não desejo, portanto, nem aos inimigos participar da lastimável competição – ou batalha se preferirem – que consiste em tentar desesperadamente dormir antes da esperada sinfonia começar. O vencedor leva como prêmio a noite de sono, o perdedor… E como se isso não fosse degradante o suficiente, o que dizer de quando uma surpreendente noite de amor termina com a mais surpreendente ainda constatação de que o saldo da noite passou de positivo a negativo em questão de segundos?
Atire a primeira pedra quem nunca viu o príncipe ou a princesa da balada, na intimidade, se transformar num javali roncador. O pior é, no dia seguinte, ao comentar com certo humor o ocorrido, lidar com a reação indignada da outra parte, e o clássico (e mentiroso) comentário: “Roncar? Eu? Imagina… você deve ter sonhado”. Covardia. Eu, pelo menos, sempre assumi.
Felizmente os casados não precisam lidar com isso. Visto que o calibre de seus roncos não precisam mais ser escondidos ou disfarçados, o máximo que pode acontecer é sua mulher te pedir para não deixar a babá eletrônica ligada durante a noite, a fim de evitar que o filho, dormindo no quarto ao lado, ao ouvir o ronco do pai amplificado, desperte chorando, assustado com o ensurdecedor ruído que prenunciaria o fim do mundo.