Passo em falso
O exercício de escrever crônicas, como é de se supor, frequentemente envolve a angústia de não se ter claridade quanto ao próximo tema a ser abordado. Pois eis que aqui está uma janela a expor um olhar sobre o cotidiano, e cabe apenas a mim definir, dia após dia, o que será visto através dela. Acontece, por vezes, de dois ou mais temas surgirem como candidatos, e em seguida se digladiarem pela chance de ganhar vida através da leitura de vocês; pela experiência adquirida, quando as forças se apresentam em seus cantos no ringue, é chegada a hora de assistir ao embate, até ser convencido por uma vitória soberana.
Mas, como diz o velho ditado, para toda regra há exceções. Neste caso específico uma bem desagradável – daquelas que grudam na sola do sapato dos distraídos – se colocou bem no meio do caminho. Foi em Copacabana, a noite, numa esquina mal iluminada, entre a calçada e um canteiro, saindo do carro. Enquanto esfregava meu pé como um alucinado na terra, não pude deixar de pensar que a cena em muito remetia a de um cachorro em seu passatempo predileto, de cavar com as patas no chão. Seria irônico se não fosse quase trágico.
A essa altura, acho que já cabe pedir perdão aos mais sensíveis, caso considerem o assunto de alguma forma inapropriado. Em minha defesa, alego que é justo de onde menos se espera que os cronistas costumam se inspirar para ganhar seu pão. Prosseguindo. De volta à compostura, constatei que ciscar como uma galinha por quase dez minutos não representava nem metade do que precisaria ser feito para resolver o – digamos – “problema”.
Não sei a quantos milênios o homo sapiens desfruta da comodidade de calçar sapatos, mas será que esse período, certamente tão extenso, ainda não foi o bastante para que os especialistas aprendessem a desenhar solas compatíveis com esse inconveniente, também milenar? Afinal, por que diabos elas precisam se assemelhar a pneus de bólidos de Fórmula 1? Para que servem tantas ranhuras? Para garantir estabilidade nas curvas ou adesão no momento da frenagem de quem nunca se locomove a mais do que 1 km por hora?
Acontece que as benditas ranhuras, na prática, nada mais são do que depositórios inalcançáveis, brechas ínfimas que só um meticuloso artesão dotado de agulha e muito pouca noção de higiene poderia acessar. Como não me aplico ao perfil, o jeito foi caminhar batendo forte com os calcanhares, pisar em todas as poças avistadas, fazer moonwalk e alisar com os pés os degraus e quinas das guias que me separavam de meu destino final.
Tal qual um famigerado dançarino do Stomp num patético espetáculo pelas ruas da princesinha do mar, via a cada instante diminuídas as chances de me ver livre da embaraçosa situação, antes de bater à porta de alguém que mal conhecia. Na portaria, admito que arrastar os pés pelo carpete vermelho foi um ato de desespero, até porque, durante o trajeto do elevador, o mau cheiro era a prova cabal de que tudo havia sido em vão.
Já antecipava a “sem gracisse” de chegar espalhando pegadas de vocês sabem bem o quê, ou de me enfurnar na área de serviço do pequeno apartamento, rodeado de roupas íntimas penduradas no varal, um pé descalço outro vestido, esfregando no tanque a sola com uma escova de lavar roupas, a qual o bom senso decretaria que fosse jogada fora imediatamente após o uso.
Quando a porta se abriu, reluziram meus pés descalços, para surpresa do anfitrião: “Gente, como vocês conseguem ficar de sapatos com o calor que está fazendo lá fora? Parece que nasceram na Rússia!”, disse tendo as meias ainda nas mãos.