Passo em falso

sex, 26/03/10
por Bruno Medina |

O exercício de escrever crônicas, como é de se supor, frequentemente envolve a angústia de não se ter claridade quanto ao próximo tema a ser abordado. Pois eis que aqui está uma janela a expor um olhar sobre o cotidiano, e cabe apenas a mim definir, dia após dia, o que será visto através dela. Acontece, por vezes, de dois ou mais temas surgirem como candidatos, e em seguida se digladiarem pela chance de ganhar vida através da leitura de vocês; pela experiência adquirida, quando as forças se apresentam em seus cantos no ringue, é chegada a hora de assistir ao embate, até ser convencido por uma vitória soberana.

Mas, como diz o velho ditado, para toda regra há exceções. Neste caso específico uma bem desagradável – daquelas que grudam na sola do sapato dos distraídos – se colocou bem no meio do caminho. Foi em Copacabana, a noite, numa esquina mal iluminada, entre a calçada e um canteiro, saindo do carro. Enquanto esfregava meu pé como um alucinado na terra, não pude deixar de pensar que a cena em muito remetia a de um cachorro em seu passatempo predileto, de cavar com as patas no chão. Seria irônico se não fosse quase trágico.

A essa altura, acho que já cabe pedir perdão aos mais sensíveis, caso considerem o assunto de alguma forma inapropriado. Em minha defesa, alego que é justo de onde menos se espera que os cronistas costumam se inspirar para ganhar seu pão. Prosseguindo. De volta à compostura, constatei que ciscar como uma galinha por quase dez minutos não representava nem metade do que precisaria ser feito para resolver o – digamos – “problema”.

Não sei a quantos milênios o homo sapiens desfruta da comodidade de calçar sapatos, mas será que esse período, certamente tão extenso, ainda não foi o bastante para que os especialistas aprendessem a desenhar solas compatíveis com esse inconveniente, também milenar? Afinal, por que diabos elas precisam se assemelhar a pneus de bólidos de Fórmula 1? Para que servem tantas ranhuras? Para garantir estabilidade nas curvas ou adesão no momento da frenagem de quem nunca se locomove a mais do que 1 km por hora?

solaAcontece que as benditas ranhuras, na prática, nada mais são do que depositórios inalcançáveis, brechas ínfimas que só um meticuloso artesão dotado de agulha e muito pouca noção de higiene poderia acessar. Como não me aplico ao perfil, o jeito foi caminhar batendo forte com os calcanhares, pisar em todas as poças avistadas, fazer moonwalk e alisar com os pés os degraus e quinas das guias que me separavam de meu destino final.

Tal qual um famigerado dançarino do Stomp num patético espetáculo pelas ruas da princesinha do mar, via a cada instante diminuídas as chances de me ver livre da embaraçosa situação, antes de bater à porta de alguém que mal conhecia. Na portaria, admito que arrastar os pés pelo carpete vermelho foi um ato de desespero, até porque, durante o trajeto do elevador, o mau cheiro era a prova cabal de que tudo havia sido em vão.

Já antecipava a “sem gracisse” de chegar espalhando pegadas de vocês sabem bem o quê, ou de me enfurnar na área de serviço do pequeno apartamento, rodeado de roupas íntimas penduradas no varal, um pé descalço outro vestido, esfregando no tanque a sola com uma escova de lavar roupas, a qual o bom senso decretaria que fosse jogada fora imediatamente após o uso.

Quando a porta se abriu, reluziram meus pés descalços, para surpresa do anfitrião: “Gente, como vocês conseguem ficar de sapatos com o calor que está fazendo lá fora? Parece que nasceram na Rússia!”, disse tendo as meias ainda nas mãos.

Na trilha certa

dom, 21/03/10
por Bruno Medina |

god-1Imagine você, caro leitor, se, no lugar de uma sombra, estivesse em nosso encalço, 24 horas por dia, um… Dj. Assim era em meu sonho, um mundo em que toda e qualquer criatura tinha a trilha sonora da própria vida criada em tempo real. Os personals Djs, por assim dizer, não se assemelhariam aos profissionais que cobram para rechear ou turbinar Ipods alheios com músicas da moda, não. Tampouco seu ofício teria a ver com aquela rádio interna, a rádio cabeça, que frequentemente nos brinda com o surrealismo de sua programação, ou a exaustiva execução de canções as quais nem gostaríamos de ter conhecido.

Os personals Djs seriam como narradores onipresentes, ou, quem sabe, seres divinos, dotados de poder para intervir, sempre que assim desejassem, no curso de nossos dias com seus comentário musicais. Tal habilidade os concederia artifícios suficientes para, mais do que influenciar tomadas de decisões, determinar o desfecho de circunstâncias específicas.

Em meu sonho eu estava deitado no sofá, assistindo TV, quando começou a tocar “Vai trabalhar vagabundo” do Chico Buarque. Coagido pelo recado, resolvi dar um tapa na moleza e entrar no banho antes de sair de casa. Enquanto tirava do armário as roupas que pretendia usar, como trilha motivacional, meu Dj escolheu “Eye of Tiger”, a música tema de Rocky Balboa. Tive que almoçar ouvindo em looping o hit oitentista, provavelmente no afã de impedir uma subta mudança nos planos daquela tarde.

Fosse um filme, o espectador pressentiria que algo grande estava por vir, mas, como era sonho, voltei para o sofá e conversei com minha professora de história sobre a distribuição dos Royalties do Pré-Sal. Corte abrupto: agora eu era adolescente e estava dentro de um conversível, deslizando por estradas tortuosas nos Alpes Suíços, um cenário que em muito remetia aos filmes do James Bond. Ao meu lado, no banco do carona, minha paixão platônica da 7a série.

Parei o carro num vale tirado de cartão-postal, o sol se punha no horizonte, tudo conspirava a favor, mas, no momento do bote, o rádio passou a tocar “Florentina”, do Tiririca, afinal meu personal Dj também tem senso de humor. Conformado com a impossibilidade do romance, dirigindo sozinho, aceitei de bom grado “Say it ain´t so” do Weezer. Talvez arrependido pela brincadeira de mal gosto, o Dj tentou se redimir com uma sequência que se iniciava com “Isn´t she lovely” do Stevie Wonder e terminava com Thaj Mahal, do Jorge Ben Jor. Daí em diante não me lembro de mais nada.

O curioso foi, acreditem ou não, no dia seguinte ao sonho, quando sentado na sala de espera do consultório do dentista ouvi de novo “Isn´t she lovely”. Seria um recado? Vai ver a forma que meu Dj particular encontrou para atestar sua existência, ainda que, por ora, o consideremos como acaso. Afinal de contas, não seria Deus o Dj incumbido de comandar as carrapetas nessa rave muito louca que chamamos de vida?

O silêncio é que tem medo de você

qua, 10/03/10
por Bruno Medina |

tosse1Faz um bom tempo –  suficiente para me envergonhar de admitir quanto – que eu não assistia a uma peça de teatro. O hiato se encarregou de me fazer esquecer, por exemplo, daquela instigante sensação de presenciar o espetáculo se construindo ali, poucos metros a frente, e de como pode ser tênue a linha que divide palco e plateia. Outra coisa da qual eu não lembrava era a gama de sons capazes de serem produzidos por seres humanos, em especial quando a ocasião pede o silêncio.

Uma sinfonia de tosses de todos os calibres e intensidades, pigarros, fungadas, entre outros ruídos que nem consigo classificar, disputavam minha atenção, pau a pau, com o que se dava no foco dos refletores. Ao longo de pouco mais de uma hora, em meio a tanta barulheira, não consegui deixar de imaginar que técnicas atores têm que dominar para obter a devida concentração em um monólogo.

Pior ainda é concluir que o comportamento de pessoas confinadas em salas onde se preza a discrição parece obedecer a um protocolo pouco variável, quiçá mundial, embora me faltem dados específicos para afirmar isso. Do mesmo jeito, não me parece convincente a teoria de que pessoas tossem, espirram, grunem, ou seja lá o que for que fazem, mais ou menos de maneira uniforme, embora quase nunca nos demos conta disso.

Sinceramente, prefiro acreditar que os inconvenientes acessos, tanto repentinos quanto coletivos, decorrem apenas da impossibilidade sugerida pelo momento. É como quando bate aquela coceira na perna justo quando estamos com as mãos ocupadas. Em suma, a proibição da tosse é o que, de fato, faz com que o desejo de tossir se torne irresistível. Simples assim.

Talvez haja algum estudo científico que associe a tosse à manifestação velada de nossa voz interior, uma expressão que não se pode censurar – ainda que se tente – e que nos assegura a sensação de individualidade perante o todo. Seria, portanto, a tosse, durante um monólogo, o jeito inconsciente de dizer ao artista “oi, eu estou aqui”?

Para nós, brasileiros, a referida questão evidenciou-se a partir da conhecida aversão de João Gilberto em relação ao público, muito por conta da dispersão que plateias, digamos, “tossidouras” podem provocar. O pródigo filho de Juazeiro já atribuiu acordes errados à crises repentinas, chegando, certa vez, ao cúmulo de oferecer xarope aos que o assistiam!

Só resta supor o clima de terror que deve ter se instaurado no Theatro Municipal do Rio, há dois anos, quando João Gilberto, após longa ausência, voltou a apresentar-se na cidade. Se nesse contexto um “hum-hum” já despertaria olhares de reprovação, imagina o que poderia acontecer ao dono do telefone que desatasse a tocar?

Pobre do fã, que desde a primeira música do show sustentava uma posição desconfortável na poltrona, apenas para não correr o risco de fazê-la ranger; amigo, quando a tosse vem, não há como dissuadi-la a voltar. A vontade vem girando em espiral, ganhando força, os olhos se comprimem, a boca se abre e “cof, cof”. Tarde demais, ídolo devidamente desconsertado.

Fica a sugestão para que eventos como esse sejam patrocinados por fabricantes de medicamentos, pastilha, xaropes e afins. Quer propaganda mais eficaz do que o show chegar ao bis?

Vai encarar?

ter, 02/03/10
por Bruno Medina |

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Se o problema é dor de dente, todo mundo sabe, não tem o que inventar: o jeito é agendar uma visita ao dentista. Mas e quando o defeito é com o carro, que outra alternativa senão procurar um mecânico? Quando a barriguinha sobressai na silhueta, academia nela. Não passou no vestibular? Cursinho. Bebeu além da conta? Banho frio. Perdeu o namorado? Balada. Ficou sem dinheiro? Empréstimo consignado. Quebrou o telefone celular? Assistência técnica autorizada.

Bom, quanto a esse último exemplo ao menos, há controvérsia. Afinal, alguém conseguiria me convencer de que o ciclo de existência dos bichinhos se estende por mais do que um ano? E, assim sendo, qual a razão de sequer se dar ao trabalho de tentar consertá-los? Era o que, aparentemente, eu pretendia descobrir.

Experiências prévias me indicavam que muito aborrecimento poderia ser evitado contanto que minhas expectativas fossem  adequadas à realidade. Trocando em miúdos, saí de casa consciente de que contrariar a lógica da indústria de bens consumo e aumentar a vida útil de um aparelho idealizado para ser descartável era uma iniciativa a ser considerada, no mínimo, otimista.

Ainda mais se tivermos em conta que no Brasil de hoje são mais de 175 milhões de telefones celulares caindo no chão, molhando na chuva, sendo arremessados na parede em momentos de fúria, enfim, os percalços do dia a dia. Pois, ao chegar à loja, obtive logo uma provinha dessa tão falada inclusão digital; era a fila de pegar senha para o atendimento. O panorama nada animador que, inevitavelmente, envolveria considerável prazo de espera, era amenizado pelo segurança-relações públicas do estabelecimento, que tinha por estratégia anunciar, no ato de entrega da senha, quantas pessoas ainda estavam na frente.

“42 é seu número, está no 37”, disse, como quem se surpreendia com a suposta eficiência do sistema. O que não ficou claro na ocasião foi o tempo médio dedicado a cada caso, cerca de 10 minutos, então façam vocês as contas do quanto esperei. Nesse interim houve oportunidade suficiente para contemplar a cândida imagem que revestia a parede por detrás do balcão principal. A foto, em close, de um bebê aninhado no colo da mãe, envolto num poupudo manto de lã, sob a inscrição “tranquilidade de se sentir bem cuidado”, assinada pelo fabricante.

Dentro do contexto, parecia provocação ou piada. Ora, que diabos a condição de qualquer um ali dentro tinha que ver com um bebê “mimindo” no colo da mãe? Eu estava sentado num sofá daqueles compridos, que contornam pilastras, onde ainda assim só cabia meia bunda, espremido entre desconhecidos com os quais, acreditem, vocês não gostariam de conversar.

Sentado, ali, tive a certeza de que esse tipo de serviço cumpre atualmente a função de ser uma espécie de receptáculo de agressividades, uma forma moderna e civilizada de arrumar confusão, bater boca e se exaltar sem maiores consequências. Se antigamente o sujeito comprava um saco de boxe, pendurava no teto da sala de casa e, pensando no chefe, socava até se cansar, hoje ele vai na assistência técnica autorizada de qualquer produto eletrônico para obter o mesmo benefício.

É impressionante como as pessoas estão calmas e, de súbito, se transformam em guerreiros sanguinários quando ouvem a frase “em que posso ser útil?”. Pulam na jugular do pobre atendente, xingam até sua décima geração, engatam o velho discurso do  “vocês ganham milhões….” e saem de lá sem nada resolvido, mas de alma lavada. Era um round atrás do outro, eu assistindo o espetáculo e pensando: “por que não trouxe um saco de pipoca?”



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