Superpoderes que (não) gostaríamos de ter

ter, 26/01/10
por Bruno Medina |

supermanPosso dizer sem falsa modéstia que, com o passar dos anos, o exercício de pinçar cenas triviais do cotidiano e traduzi-las em pautas que servissem a esse espaço me transformou numa espécie de estudioso do comportamento humano. Em se tratando de matéria-prima tão delicada, é preciso sempre estar atento a quase imperceptível fronteira que separa a fofoca propriamente dita do interesse profissional.

Não foram poucas, portanto, as ocasiões em que a lisura me dissuadiu de dissertar sobre temas promissores, verdadeiros diamantes brutos da vida alheia, pela simples razão de envolverem pessoas queridas; há, também, casos de autocensura, decorrentes da impossibilidade de descrever determinada situação sem expor os protagonistas.

O ofício dos cronistas, por assim dizer, exige a vigência de um código de ética individual, uma espécie de bússola moral intransferível que norteia a escolha dos assuntos passíveis (ou não) de serem aprofundados. Dentre as regras estabelecidas, ficou acordado comigo mesmo que me reservo o direito de abordar todo e qualquer assunto que possa ser captado através da janela da minha casa.

Longe de mim soar como futriqueiro, mas se estou em paz, sentado no sofá lendo jornal, e o sujeito resolve parar na calçada debaixo da minha soleira para contar a um amigo as peripécias da noite anterior, que culpa eu tenho? Se o casal aproveita a noite serena para sentar sob o capô de um carro e discutir a relação, como continuar assistindo a reprise chata de um filme na TV? Aí já seria como pedir ao cachorro para tomar conta da linguiça!

A questão é delicada porque, mesmo não querendo ouvir, em meio ao calor da discussão, um “hum-hum” que fosse só serviria para concientizá-los sobre como sua intimidade estava escancarada a um completo desconhecido, e isso pode ter consequências. Afim de evitar reações imprevisíveis, o melhor é permanecer no anonimato, pegar uma pipoca na cozinha e aproveitar o espetáculo. Mas, se a discussão que se impõe no momento errado é um aborrecimento, o contrário disso costuma ser o pânico de qualquer bom observador incidental; a conversa que apenas passa por ele.

Aquele papo do qual se pescam algumas frases, suficientes para despertar profundo interesse, e que depois vai embora junto com seu interlocutor, sem deixar pistas do desfecho. “Olha, você não me conhece, mas eu acabei ouvindo, agora senta aí e termina essa história”, quem nunca sentiu vontade de dizer isso? Nessas horas bate a inveja do Super-Homem, e de sua superaudição.

Aos que ficaram com a impressão de suas intimidades estarem ameaçadas, um único conselho: relaxar. Todos nós somos, ainda que sem perceber, objetos constantes do voyerismo alheio. No mais, é o tal negócio, quem está na chuva… bisbilhotar é inerente à nossa natureza, e se não o fazemos mais, sejamos sinceros, é por falta de oportunidade. Por outro lado, seria terrível estar à par de tantos enredos, já imaginaram a confusão? Pobre Super-Homem, pensando bem, a superaudição não é dom, é castigo!

Pandora é logo ali

sex, 22/01/10
por Bruno Medina |

Imaginem um lugar de vegetação exuberante, agraciado com uma biodiversidade riquíssima, capaz de fornecer aos seus habitantes o suficiente para viverem em harmonia e sem grandes preocupações por toda vida. Um paraíso? As semelhanças param por aí; a tranquilidade da tribo local passa a estar ameaçada pelas investidas de uma inescrupulosa mineradora, interessada nos pomposos lucros provindos da extração predatória de recursos naturais. Sem outra alternativa, os até então pacatos moradores desse santuário ecológico se lançam em defesa de sua terra, numa batalha em que o que está em jogo é sua própria sobrevivência.

O parágrafo acima não deixa dúvidas, trata-se de uma sinopse do filme Avatar. Agora leia-o de novo, com calma, e reflita sobre a seguinte pergunta: será que esse lugar já não existe no mundo real? Tem gente pensando que sim. Mais precisamente Lori Pottinger, colunista do Huffington Post, um conceituado site de notícias norte-americano. Em seu mais recente post a jornalista sugeriu que Pandora, o planeta imaginário no qual se ambienta a história de James Cameron, guardaria semelhanças mais do que explícitas com o Brasil.

Sua suspeita teria se aguçado pelo fato de que, na China, o filme esteve em cartaz por um período menor do que o usual. A questão – que continua sem resposta – é por que uma produção do tipo blockbuster, que caminha para se tornar a maior bilheteria cinematográfica de todos os tempos, foi substituída prematuramente pela exibição de uma biografia sobre Confúcio? Parece meio óbvio que o sensato seria a tragetória do filósofo esperar os proprietários das salas de exibição locais encherem os bolsos de dinheiro antes de entrar em cartaz, certo?

avatarO aparente tiro no pé comercial aponta para mais uma das manobras do Partido Comunista Chinês, sempre atento à possibilidade de disseminação de conteúdo considerado subversivo. Até aí nenhuma novidade, mas, afinal, o que o Brasil tem a ver com isso? Bom, segundo Lori, as reflexões despertadas por Avatar seriam bem mais nocivas ao governo brasileiro, tanto que seu artigo foi batizado por um sugestivo título que, em português, significa algo como Avatar: o Brasil deveria banir o filme?

“Provavelmente a sorte de Lula é que a maioria dos povoados amazônicos não tem um multiplex na esquina, para que as pessoas assimilem esse golpe”

Verdade seja dita, a moça não deixa de ter certa razão. A trama realmente dá margem à comparações entre o drama dos Na’vi e os inúmeros conflitos que perduram por décadas na região. Se a intenção dos produtores hollywoodianos foi ou não mandar um recado específico para os espectadores brasileiros… aí são outros quinhentos. Analogias à parte, os mais pessimistas poderiam até afirmar que o enredo do filme é um prenúncio do que pode acontecer à nossa floresta num futuro não muito distante. Exagero? Polêmica lançada, alguém concorda com a tese?

Quem vê cara não vê coração

ter, 19/01/10
por Bruno Medina |

expressionsComecemos esse post com um teste trivial, daqueles, estilo psicotécnico: você consegue dizer que sensação cada um dos rostos ao lado evoca? Imagino que as respostas dificilmente fugirão ao big six, as seis grandes emoções humanas. Durante décadas houve consenso entre cientistas e psicólogos quanto ao fato de raiva, medo, desgosto, surpresa, alegria e tristeza formarem um grupo de sentimentos suficientes para abranger toda a gama de reações passíveis de serem expressas por uma pessoa.

Apesar de eficiente, a teoria não previu uma variável importantíssima; assim como o mundo em que vivemos, nós também estamos em constante transformação. As situações cotidianas – que hoje parecem arraigadas em nosso comportamento – já são, na verdade, muito distintas das que os estudiosos consideraram para criar a classificação. Frente a incontestável percepção, fez-se necessário revisar a tal lista.

Em meio a muita controvérsia, interesse, gratidão, orgulho e confusão são alguns dos postulantes a novos sentimentos básicos. Na prática, funciona como aquele pacote de expansão que se baixa da página do fabricante para evitar bugs em determinado software. É o que poderia se chamar de  “Emoções Humanas versão séc. XXI”. No site científico New Scientist é possível encontrar o artigo que detalha a ocasião em que os recém-identificados comportamentos se manifestam, dentre os quais destaco a “elevação”.

Se o nome já soou poético, espere pela descrição: trata-se de um formigamento atrás do pescoço, acompanhado por calor no peito, lágrimas marejando os olhos e um leve estrangulamento, a sensação que muitos simpatizantes de Barack Obama reportaram ao ouví-lo em seu discurso de posse. Em outros contextos, há relatos de que a reação tenha sido observada também no Japão, na Índia e nos territórios palestinos, argumento que aponta para uma incidência universal. Se não me falha a memória, acho que senti isso uma vez, assistindo ao desfecho de um filme dos Trapalhões.

O tema, claro, dá muito pano pra manga, até porque, por se tratar de matéria absolutamente abstrata e individual, as emoções, além de incontáveis, parecem não caber em nenhum tipo de catalogação. Minha mulher, por exemplo, jura sentir as tais borboletas no estômago ao receber uma notícia feliz. Alguém já sentiu isso? Assim sendo, não resisti à tentação de sugerir a inclusão de alguns sentimentos que ultimamente têm chamado minha atenção, os quais, embora não mencionado pelo estudo, parecem bastante corriqueiros:

Frustração tecnológica – é o que ocorre quando o HD do seu computador queima, quando, após lermos um manual de cabo a rabo, somos incapazes de fazer funcionar uma máquina de café expresso, ou quando escrevemos aquele e-mail de 50 linhas que some antes de ser enviado.

Amor virtual – como ninguém ainda tentou descrever isso? É a paixão entre pessoas que nunca se viram, aquele namoro que começa na sala de bate-papo e nem sempre chega à vida real. Aliás, o que deve ser considerado como “vida real”? Bom, isso já é outra discussão, mas, sem dúvida, aí está uma forma diferente de amar.

Fadiga de hiperconexão – se você é uma daquelas pessoas que mantém  Myspace, Orkut, Twitter, Facebook, MSN, Fotolog, Flickr, tudo aberto ao mesmo tempo, e ainda lê blogs, notícias e conversa via chat com 13 pessoas, é provável que saiba a que me refiro.

Será que me esqueci de alguma coisa? Se alguém identificar um sentimento novo, ou mesmo um que seja bem particular e ainda não tenha sido citado, não hesite em descrevê-lo. Vamos incrementar essa lista!

O herói invisível

qua, 13/01/10
por Bruno Medina |

suorDia desses de calor escaldante, bati os olhos num artigo que me deixou intrigado; vocês já pararam alguma vez para pensar em como é tênue a linha que separa bem e mal estar? Em quão delicado e engenhoso é o perfeito equilíbrio de nosso organismo? Considerem, por exemplo, a temperatura normal de um ser humano, 36.5 graus Celsius. Seja por que razão for, caso os mecanismos responsáveis por conter a evolução do aquecimento corpóreo não entrem em ação e o termômetro passar de 42 graus, a pessoa… morre!

Está certo que esse assunto pode até soar macabro, especialmente durante um princípio de verão tão intenso, mas, trocando em míudos, se a matemática não falha, chego a aterradora conclusão de que o que separa uma pessoa saudável, tomando picolé na beira da praia, de um moribundo à beira de bater as botas são apenas 5,5 tracinhos numa escala. Também não é exatamente reconfortante constatar que o guardião dessa fronteira, o agente de cuja atuação depende nossa sobrevivência em condições de temperatura muito elevedas, o suor, é o mesmo execrado por molhar nossas roupas, exalar odor desagradável e causar constrangimento.

Não se engane, a transpiração é realmente um advento genial. Claro que tem lá suas mazelas, mas nem por isso devemos deixar de reconhecer virtudes. A simplicidade e a eficiência de seu funcionamento são, de fato, dignos de causar inveja a qualquer designer de produto. Afinal, de onde você acha que veio a inspiração para aqueles splinkers que disparam jatos d’agua quando um prédio pega fogo? Do seu sovaco. Até posso imaginar o debate que originou o recurso:

“Bom, se o cara estiver com muito frio ele treme, pra movimentar a musculatura e se aquecer. Mas e se for o contrário? E se ele estiver com muito calor?”

“É mesmo, não tinha pensado nisso. O que o Senhor acha da gente colocar, ao invés dos rins, um orgão dotado de uma hélice, que gire muito rápido e ventile o organismo?”

“Não sei se é isso ainda.”

“Então que tal uma mini-serpentina na artéria do coração, que gele o sangue enquanto ele passa?”

“Vai dar muito trabalho para projetar… que tal secretar uma substância incolor por todos os poros da pele, que crie uma camada…”

“Desculpe, Senhor, acho que não vai pegar. O pessoal vai reclamar que pinga, que molha, que fede… proponho pensarmos melhor sobre isso amanhã.”

“Não. Amanhã é o sétimo dia, de descanso. Tá decidido, vai ser assim mesmo.”

E eis que surgiu o suor, da maneira como o conhecemos. Portanto, da próxima vez que aquela pizza pintar debaixo do braço, que a camisa colar nas costas, que a cueca ficar ensopada por dentro da calça, agradeça. Provavelmente se não houvesse transpiração você nem estaria aqui, lendo esse texto. Por outro lado, também não teria sido má ideia limitar a temperatura do planeta a um nível mais ameno, assim nem precisaríamos suar. Pensando bem, acho que quem fechou o projeto não foi O cara, é sim um estagiário.

Hiper-sinceridade: como matar uma mosca com bala de canhão

sex, 08/01/10
por Bruno Medina |

target copyAposto que, assim como eu, em toda sua vida você nunca deve ter conhecido alguém que não gostasse de sorvete, certo? Não se sabe ao certo porquê (deve haver alguma explicação científica para isso) a deliciosa – e aparentemente unânime – receita que mistura leite, açúcar, gordura hidrogenada a infindáveis sabores resulta num dos mais universais ícones do prazer degustativo. Sejam quais forem as circunstâncias, convenhamos, uma bola de sorvete oferecida quase sempre é uma bola de sorvete tomada.

Mas e se mudássemos um pouco a perspectiva das coisas? Digamos se, ao invés de uma bola, a oferta consistisse num daqueles potes de 2 litros de sorvete, inteirinho pra você, assim, como sobremesa pós-almoço. A estapafúrdia proposição nada mais é do que uma maneira bastante didática de comprovar a tese que inspira um conhecido provérbio: a diferença entre remédio e veneno está na dose.

Conceito assimilado, sigamos a diante para o verdadeiro tema desse post, que é a hiper-sinceridade. Talvez você ainda não tenha tido a oportunidade ou o estímulo apropriado para pensar sobre ela, ou, quem sabe, até a conheça por outro nome, mas o fato é que aqui está o genuíno exemplo de uma qualidade que, quando exacerbada, transforma-se num terrível defeito.

A ficção já nos deu ideia do que pode ocorrer quando se abandona a polidez que intermedeia as relações cotidianas em prol de adotar a verdade estrita como bússola. Os personagens de Luis Fernando Guimarães em Super Sincero e de Jim Carrey no filme O Mentiroso são os primeiros que me vem a mente entre os que personificaram arquétipos extremados de quem não hesita em dizer tudo o que pensa.

Descontados os exageros, na vida real acontece muito de um sujeito reconhecidamente sincero ser estimulado por sua virtude ao ponto de, sem notar, atingir o outro extremo; ou seja, sua opinião, antes requisitada, de tão “eficiente” passa a ser evitada. Este é o caso da hiper-sinceridade adquirida. Há também a que já vem de berço, a que deriva de uma demanda profissional, a que surge a partir de um ciclo de convivência e a dos que abraçam a categoria apenas por a confundirem com autenticidade. Tá complicado de entender? Então vamos aos exemplos comentados:

Situação 1 – casal de namorados em crise, ela faz a típica pergunta sem se dar conta de que o ser amado é um hiper-sincero:

“Você me ama?”

“Claro que eu te amo…” (o bom senso recomendaria parar por aí, no entanto por que facilitar o que pode ser muito complicado?) “… mas assim, não sei se é aquele amor de imaginar uma vida juntos, de casar, de ter filhos. Isso a gente só tem como descobrir mais para frente”.

Situação 2 – mãe e filha conversam, sendo que a segunda pede opinião sobre o vestido que acabara de comprar:

“Me diz o que você achou. Ficou legal em mim?”

“Bom, você sabe que eu sou sincera, né?” (quando a resposta começa com essa introdução é melhor se preparar, porque lá vem bomba) “… o vestido é bonito sim, não combina com o sapato, que é feio, e nem com essa bolsa cafona que você está pensando em usar, muito embora eu pense que enquanto você não perder uns 10 quilos nada vai te cair bem”.

Situação 3 – um rapaz solicita ao colega de trabalho ajuda para finalizar seu projeto, cabendo a este a incumbência de ler o material em busca de possíveis erros ortográfico e de pequenos ajustes:

“E então, pegou alguma coisa aí?”

“Bom, sendo muito franco…” (notem como a escolha da obsoleta expressão sempre anuncia que alguém está prestes a ser descascado) “… os vários erros que identifiquei nem são o mais grave. O problema é que a conclusão final é tão fraca que depõe contra você profissionalmente. Faz o seguinte, joga essa porcaria no lixo e começa tudo de novo.“

Com um amigo desses quem precisa de inimigo?

Se algum dos casos acima fez lembrar uma pessoa conhecida, fica a sugestão de encaminhá-la o link do texto, vai que a carapuça serve. Agora, se a carapuça já serviu… cuidado, porque, cedo ou tarde, não duvide, vai aparecer alguém ainda mais sincero do que você. Para terminar, uma frase do pensador alemão Emanuel Wertheimer:

“Um mérito se deve reconhecer na hipocrisia: aprendeu a falar com sinceridade.”

Senhor da razão

seg, 04/01/10
por Bruno Medina |

Dali“O tempo é o relógio da vida”. A frase, talhada no tampo da mesa da portaria, não era poesia, era sintoma de tédio. Ao menos assim achou Eraldo em seu segundo dia no emprego; fora contratado para a ingrata função de ocupar o posto deixado por Seu Clemente, o homem que durante quarenta e três anos sentou-se na cadeira que passara a ser sua. Não era de estranhar, portanto, quando alguém esquecia de lhe dar bom dia, afinal, sonegar o rotineiro cumprimento foi a forma que muitos encontraram para driblar a saudade.

Assim sendo, apenas no segundo ano completo de serviço o novato considerou-se pleno em sua função. Vinte quatro meses foi o quanto levou para que os outros e – diga-se, ele próprio – o vissem como legítimo zelador daquele edifício. Em seu extenso estágio probatório desenvolveu habilidades tais que o permitiram deter com maestria um vazamento de gás na cobertura, resgatar três vítimas presas no elevador e evitar que uma colisão na garagem e duas festas de arromba culminassem em ocorrências policiais.

Aos poucos, Eraldo se deu conta de que havia não só aprendido a desempenhar seu ofício com perfeição, mas também a admirá-lo. Adquirir domínio técnico sob as delicadas engrenagens que faziam a máquina funcionar era mesmo conquista digna de ser exultada, mas nada se comparada à complexidade de captar a essência das pessoas que cruzavam sua mesa todos os dias. As tardes mais monótonas quase sempre lhe instigavam o desejo de conversar com Seu Clemente, e de indagá-lo sobre as teorias, por vezes fantásticas, que tecia a respeito de determinados moradores.

Como por exemplo a jovem senhora que habitava o 304. Daria um dedo da mão direita para obter informações sobre seu passado. O que estaria por trás da vaidade tão exacerbada? Por que aquela bela mulher entregara-se ao ridículo de querer aparentar cada dia menos idade? Por uma década o porteiro foi testemunha das muitas intervenções estéticas as quais se submeteu. As linha de expressão que tentava inutilmente apagar, permaneciam como cicatrizes invisíveis das batalhas perdidas para o tempo. O esforço, no entanto, não impediu que a solitária dama morresse ainda com pouca idade.

Aos olhos de Eraldo parecia ter sido ontem. O incessante movimento de idas e vindas, ao longo de quase vinte anos, era como um borrão numa tela impressionista. Após tanto tempo o sujeito consegue encontrar graça até na irritação que causa aos mais afoitos dois ou três minutos de espera pelo elevador. Por que insistem em duelar contra o tempo? Essa era, com certeza, uma das perguntas que faria ao antecessor.

A essa altura o fantasma do velho já não assombrava ninguém além de Eraldo. A mensagem esculpida em madeira, que o acompanhou por boa parte da existência, tornou-se um legado, uma espécie de incentivo para que prosseguisse no exercício da profissão – apesar do reumatismo lhe pedir o contrário. Em seu relógio os ponteiros ultimamente davam impressão de caminhar mais rápido, mas a sensação não chegava a lhe causar receio, talvez apenas a convicção de que a frase, talhada no tampo da mesa da portaria, não era poesia, era conselho.

Obs: o conto foi inspirado na proposta de Leonardo Aquino (comentário 12), aliado à tentativa de responder – de maneira pouquíssimo ortodoxa, é verdade – à questão levantada por André Brasília (comentário 20).

Feliz 2010!



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