Ameaça invisível
Pouco antes de dormir, entregue ao estágio meio barro, meio tijolo – aquele, limiar entre convicções plenas e impressões vagas – a voz masculina que ressoava, baixinho, do aparelho de TV me deixou alarmado. Numa reação instintiva, sentei-me na cama e tateei por sobre a colcha, em busca da tecla que aumenta o volume no controle remoto. Ainda recobrando a consciência, supus ser imprescindível ouvir com atenção a mensagem, que alertava para uma ameaça invisível e sua potencial capacidade de gerar óbitos.
“Meu Deus – pensei – será que estamos preparados?”. Àquela altura da noite é claro que não dispunha de recursos suficientes para evitar que a cena de uma chuva de asteróides ardendo em fogo, de um exército formado por zumbis assassinos e de um terremoto de proporções continentais, tudo em simultâneo, povoasse meus pensamentos. Nada disso. Segundo o locutor, o grande mal não viria do espaço ou do centro da terra. A bem da verdade, nesse exato momento ele pode estar à espreita, dentro de qualquer um de nós; eis que percebo, até com certo alívio, tratar-se tão somente da chamada de um documentário sobre os supervírus e as superbactérias.
Cabe esclarecer que não é minha intenção duvidar dos malefícios capazes de serem causados por microorganismos, muito pelo contrário. Mas os leitores hão de convir que, diferente do que estava sendo cogitado, esses, ao menos, costumam ser combatidos com comprimidos à venda em qualquer esquina. Ainda assim tenho notado que, de uns tempos para cá, a fauna de seres que não vemos, mas que sabemos estarem ao nosso redor, tem galgado importantes posições no ranking que assinala os maiores vilões da humanidade. Portanto é compreensível que – como diz-se da própria infecção “oportunista” – atrações televisivas aos moldes da citada tenham se alastrado no vácuo deixado por essa primeira onda de pandemia da gripe suína.
Pois, se o maior legado dos ataques terroristas do 11 de Setembro foi a exacerbação (com ares de paranóia) das medidas de segurança com as quais o mundo ocidental estará sempre obrigado a conviver, me parece inevitável que os supervírus e as superbactérias nos releguem um futuro onde frascos de álcool gel serão transformados em artigos de primeira necessidade.
O fato é que o item, antes apenas encontrado nas nécessaires dos aficionados por assepsia ou em consultórios médicos, ao longo do ano popularizou-se com espantosa rapidez. A versão viscosa, até então preterida ante à tradicional, líquida, passou de objeto encalhado à campeão de vendas, e, de uma hora para outra, o que sobrava nas prateleiras desapareceu. Alguns meses atrás, vocês lembram, era comum ouvir relatos sobre peregrinações por incontáveis farmácias, ou de quem, ao se deparar com o faltoso produto, ainda que superfaturado, decidisse levar quantos pudesse, afim de imunizar também amigos e parentes. “Três unidades por cliente apenas”, dizia o atendente detrás do balcão.
Nas fábricas, imagino, era com determinação e a certeza de receber muitas horas-extras que funcionários varavam noites produzindo no limite da capacidade. Nas ruas, quem tossisse ou espirasse recebia de imediato olhares de repúdio ainda piores do que os destinados a criminosos perigosos. E pensar que todo esse escarcéu se deu por conta de uns trocinhos que sequer conseguimos enxergar…
Agora que a peteca está no hemisfério norte, a tendência é relaxarmos um pouco, ao menos até inventarem uma outra terrível ameaça. Na loja que vende empadas aqui perto protagonizei outro dia uma passagem curiosa. Ao ver eu me lambuzar todo com o generoso recheio de palmito o sujeito, provavelmente dono da loja, orgulhoso, disse:
“está vendo ali? Aquilo é um dispositivo de álcool gel”
“estou mais pra um guardanapo mesmo, pode ser?”, respondi.