Quem vai levar?
Pensar globalmente, agir localmente. É bem provável que você já tenha ouvido a surrada frase, espécie de mantra da sustentabilidade, e que pelo menos alguma vez tenha parado para refletir se está ou não agindo de acordo com este princípio. A depender do nível de consciência de cada um, a máxima pode sugerir mais do que apenas reciclar o lixo domiciliar, comprar lâmpadas econômicas ou diminuir o tempo embaixo do chuveiro; na prática, atesta a necessidade de nos responsabilizarmos, também, pelo que ocorre à nossa volta.
Ciente deste papel, procuro, sempre que posso, interar-me das questões relativas ao meu bairro, e do que mais pode ser feito para amenizar os efeitos desta noção esquizofrênica de convívio que assola o cotidiano das metrópoles. Não por acaso escolhi morar aonde ainda se usa dar “bom dia” aos desconhecidos na rua, compra-se fiado e comemora-se quando um novo estabelecimento comercial abre as portas. Imaginem então com que entusiasmo não foi recebida pelos moradores locais a notícia de que um daqueles hortifrutis de grande porte se instalava nas cercanias.
Para mim, que tenho um bebê em casa, basta dizer que a novidade sentencia o fim das incursões motorizadas de meio de semana à outras vizinhanças, em busca de frutas e legumes de melhor qualidade. Por isso adiei até quarta-feira a reposição dos itens faltosos na geladeira, na expectativa de aproveitar as benesses propiciadas pela loja desde seu primeiro dia de funcionamento. No horário indicado pelo panfleto que encontrei em minha caixa de correio seguimos, toda a família, para um passeio inaugural, nesta que promete se tornar a Disneylândia da alimentação saudável em nossa região.
Logo da entrada era possível constatar o grau de mobilização despertado pelo novo empreendimento, posto que, olhando para dentro, a visão remetia, em quantidade de pessoas e em empolgação, ao público de uma micareta. Eram tantas as cabeças flutuantes que tornava-se árdua até a tarefa de supor os corredores. A partir deste momento era nítida a impressão de que, fosse o que estivesse por vir, acabaria invariavelmente narrado neste blog. E foi pensando em vocês que deixei mulher e filho aguardando do lado de fora para me jogar na multidão.
Quando se está numa destas situações, a dica é soltar o corpo e tentar fluir com a boiada, num mesmo movimento. Não dá, por exemplo, para decidir caminhar contra o fluxo em nome de um tomate ou uma beterraba esquecidos para trás. O que estará dentro de sua cestinha é resultado direto do que seus braços conseguirem alcançar nas prateleiras, portanto esteja atento e não hesite. Conferir a data de validade do pão de forma? Quebrar a pontinha do quiabo? Apertar a manga? Não havia qualquer condição de ser criterioso a este ponto, sob o risco de permanecer rodando dentro do circuito indefinidamente, feito bóia abandonada na piscina de correnteza de um parque aquático.
A pressão incidia sobre os consumidores mais afoitos, e quando se deparavam com a caixa de morango por R$ 0,99, levavam logo seis, temendo perder a oportunidade. O mesmo acontecia ao filé mignon, só que neste caso, por se tratar de um produto bem mais caro, a economia era de fato significativa. Do meio da loja notava-se que a fila do açougue representaria um obstáculo enorme a ser transposto por quem, como eu, vinha pela via principal. Sugeri para a turma próxima que a gente jogasse tudo para a esquerda, no sentido da banca de limão siciliano, com o intuito de obter efeito semelhante ao de um carro de fórmula 1 contornando a curva pela chiqueine.
A manobra deu certo, muito embora tenha me levado à conclusão de que sair dali, mesmo de mãos abanando, já era lucro. No mais, a fila dos caixas batia na parede do fundo, e nem mesmo o pretexto de vivenciar aquela experiência de satisfação coletiva justificaria o sacrifício. A esta altura você pode estar se perguntando: como tanta gente dispõem da manhã de um dia de semana para se aventurar por um hortifruti lotado? Pois eu também não sei.
Quando avistei a rota de fuga, percebi que seria preciso muita determinação para passar ileso pela mocinha que distribuía sucos de graça. Ali era, sem dúvida, um ponto crítico. Para piorar (como se precisasse) os funcionários decidiram, seguindo ordens da gerência, posicionar naquele instante o tapete vermelho que não havia chegado em tempo hábil. De dimensões que o aproximavam às da sala de um apartamento conjugado, foi preciso que dez homens se ocupassem de interromper o trânsito, enquanto outros dez carregavam o mastodonte.
A atitude, tanto abrupta quanto inconsequente, separou mães de seus filhos, senhoras idosas de seus carrinhos de feira, copinhos de suco dos consumidores sedentos por ofertas de inauguração. Tal qual um muro, passando bem na artéria central daquela Berlim de leguminosas, a barreira humana produziu um clarão na massa atônita. Como se pudesse atenuar a irritação generalizada a mocinha, coitada, oferecia suco de laranja com abacaxi, para os que não tinham outra alternativa senão esperar. “É muito bom para a gripe”, dizia ela, e foi aí que me dei conta do quão inapropriado era estar num lugar daqueles em pleno surto de gripe suína.
Foi a gota d’água. “Isso é um absurdo!”, gritei, para, em seguida, ser apoiado pelos demais. A insurreição tomou corpo e partiu para cima com tudo, dispersando inclusive a barreira humana e fazendo o tapete vermelho voar como o do Aladim, por sobre a geladeira de iogurtes. Aproveitei o vácuo para ganhar terreno e, por fim, alcancei a saída. A indesejada epopeia culminou em ao menos uma derradeira visita ao bairro vizinho para fazer compras, sobretudo a sensação de que, nesta semana, o abacaxi eu dispenso.