Quem vai levar?

sex, 31/07/09
por Bruno Medina |

Pensar globalmente, agir localmente. É bem provável que você já tenha ouvido a surrada frase, espécie de mantra da sustentabilidade, e que pelo menos alguma vez tenha parado para refletir se está ou não agindo de acordo com este princípio. A depender do nível de consciência de cada um, a máxima pode sugerir mais do que apenas reciclar o lixo domiciliar, comprar lâmpadas econômicas ou diminuir o tempo embaixo do chuveiro; na prática, atesta a necessidade de nos responsabilizarmos, também, pelo que ocorre à nossa volta.

Ciente deste papel, procuro, sempre que posso, interar-me das questões relativas ao meu bairro, e do que mais pode ser feito para amenizar os efeitos desta noção esquizofrênica de convívio que assola o cotidiano das metrópoles. Não por acaso escolhi morar aonde ainda se usa dar “bom dia” aos desconhecidos na rua, compra-se fiado e comemora-se quando um novo estabelecimento comercial abre as portas. Imaginem então com que entusiasmo não foi recebida pelos moradores locais a notícia de que um daqueles hortifrutis de grande porte se instalava nas cercanias.

Para mim, que tenho um bebê em casa, basta dizer que a novidade sentencia o fim das incursões motorizadas de meio de semana à outras vizinhanças, em busca de frutas e legumes de melhor qualidade. Por isso adiei até quarta-feira a reposição dos itens faltosos na geladeira, na expectativa de aproveitar as benesses propiciadas pela loja desde seu primeiro dia de funcionamento. No horário indicado pelo panfleto que encontrei em minha caixa de correio seguimos, toda a família, para um passeio inaugural, nesta que promete se tornar a Disneylândia da alimentação saudável em nossa região.

Logo da entrada era possível constatar o grau de mobilização despertado pelo novo empreendimento, posto que, olhando para dentro, a visão remetia, em quantidade de pessoas e em empolgação, ao público de uma micareta. Eram tantas as cabeças flutuantes que tornava-se árdua até a tarefa de supor os corredores. A partir deste momento era nítida a impressão de que, fosse o que estivesse por vir, acabaria invariavelmente narrado neste blog. E foi pensando em vocês que deixei mulher e filho aguardando do lado de fora para me jogar na multidão.

Quando se está numa destas situações, a dica é soltar o corpo e tentar fluir com a boiada, num mesmo movimento. Não dá, por exemplo, para decidir caminhar contra o fluxo em nome de um tomate ou uma beterraba esquecidos para trás. O que estará dentro de sua cestinha é resultado direto do que seus braços conseguirem alcançar nas prateleiras, portanto esteja atento e não hesite. Conferir a data de validade do pão de forma? Quebrar a pontinha do quiabo? Apertar a manga? Não havia qualquer condição de ser criterioso a este ponto, sob o risco de permanecer rodando dentro do circuito indefinidamente, feito bóia abandonada na piscina de correnteza de um parque aquático.

A pressão incidia sobre os consumidores mais afoitos, e quando se deparavam com a caixa de morango por R$ 0,99, levavam logo seis, temendo perder a oportunidade. O mesmo acontecia ao filé mignon, só que neste caso, por se tratar de um produto bem mais caro, a economia era de fato significativa. Do meio da loja notava-se que a fila do açougue representaria um obstáculo enorme a ser transposto por quem, como eu, vinha pela via principal. Sugeri para a turma próxima que a gente jogasse tudo para a esquerda, no sentido da banca de limão siciliano, com o intuito de obter efeito semelhante ao de um carro de fórmula 1 contornando a curva pela chiqueine.

A manobra deu certo, muito embora tenha me levado à conclusão de que sair dali, mesmo de mãos abanando, já era lucro. No mais, a fila dos caixas batia na parede do fundo, e nem mesmo o pretexto de vivenciar aquela experiência de satisfação coletiva justificaria o sacrifício. A esta altura você pode estar se perguntando: como tanta gente dispõem da manhã de um dia de semana para se aventurar por um hortifruti lotado? Pois eu também não sei.

Quando avistei a rota de fuga, percebi que seria preciso muita determinação para passar ileso pela mocinha que distribuía sucos de graça. Ali era, sem dúvida, um ponto crítico. Para piorar (como se precisasse) os funcionários decidiram, seguindo ordens da gerência, posicionar naquele instante o tapete vermelho que não havia chegado em tempo hábil. De dimensões que o aproximavam às da sala de um apartamento conjugado, foi preciso que dez homens se ocupassem de interromper o trânsito, enquanto outros dez carregavam o mastodonte.

A atitude, tanto abrupta quanto inconsequente, separou mães de seus filhos, senhoras idosas de seus carrinhos de feira, copinhos de suco dos consumidores sedentos por ofertas de inauguração. Tal qual um muro, passando bem na artéria central daquela Berlim de leguminosas, a barreira humana produziu um clarão na massa atônita. Como se pudesse atenuar a irritação generalizada a mocinha, coitada, oferecia suco de laranja com abacaxi, para os que não tinham outra alternativa senão esperar. “É muito bom para a gripe”, dizia ela, e foi aí que me dei conta do quão inapropriado era estar num lugar daqueles em pleno surto de gripe suína.

Foi a gota d’água. “Isso é um absurdo!”, gritei, para, em seguida, ser apoiado pelos demais. A insurreição tomou corpo e partiu para cima com tudo, dispersando inclusive a barreira humana e fazendo o tapete vermelho voar como o do Aladim, por sobre a geladeira de iogurtes. Aproveitei o vácuo para ganhar terreno e, por fim, alcancei a saída. A indesejada epopeia culminou em ao menos uma derradeira visita ao bairro vizinho para fazer compras, sobretudo a sensação de que, nesta semana, o abacaxi eu dispenso.

When I’m 64

ter, 28/07/09
por Bruno Medina |

Num dia aprende-se a andar. Num outro, a escrever. A descoberta do primeiro amor, não muito depois, precede a eclosão de espinhas e de sentimentos contraditórios que norteiam a puberdade. Segue-se a formatura na escola, a turma de amigos que são para sempre, a primeira habilitação, o primeiro emprego, os primeiros fios de cabelo branco. E antes que se possa notar você vai estar como eu, domingo à noite numa farmácia, lendo o rótulo de um antisséptico bucal que promete branqueamento eficaz dos dentes.

Pelas próximas quatro semanas serão vários os bochechos diários com a misteriosa substância withening, na esperança de que, conforme consta da bula, amenizem em meu sorriso o efeito natural da passagem dos anos. Aos que se indagam sobre a decisão por este recurso, de resultados pouco palpáveis se confrontado com a eficiência de um tratamento administrado em consultório odontológico, respondo com uma outra pergunta: por que os calvos preferem acreditar em xampús milagrosos a encarar a necessidade de um implante?

Pelo menos dessa aí escapei, eu acho, muito embora meu receio seja o de que a preocupação com a tonalidade dos dentes se estenda ainda aos pés de galinha e ao bigode chinês, cada vez mais nítidos nas fotografias. Se fosse para dar um palpite, arriscaria que a súbita maré de autocrítica tenha algo a ver com a proximidade do meu aniversário; mas não vou me repetir e, como no ano passado, aproveitar a data para discorrer sobre os dilemas a serem enfrentados pelos balzacos, sob o risco de me apontarem sintomas de senilidade precoce.

Se a carapuça não serve a nenhum dos jovens leitores – que neste exato instante caçoam de mim – me restrinjo a dizer (e não é praga de velho) que o dia de vocês não tardará em chegar. Não pensem que questões relativas à cor da dentadura, à careca, à barriga saliente, à celulite, ao peito murcho ou seja lá ao que for, surgirão de maneira acintosa. É assim, num estalo, de uma hora para outra, que o sinal amarelo acende. Pode ser, por exemplo, quando te convidam para um show e você logo quer saber: “é pra ficar de pé ou vai ter lugar pra sentar?”.

A situação acima descrita é tão emblemática que mereceria até ser encaixada no parágrafo inicial. Ali, entre a constatação dos primeiros fios brancos na cabeça e o interesse por métodos de clareamento dos dentes. Já repararam como no Brasil o conceito de “show” voltado para o público jovem dificilmente está associado a uma plateia sentada? Mesmo nas casas de maior porte, onde este tipo de acomodação é viável, os ingressos costumam ser mais caros, dando a entender que se sentar é privilégio, não opção.

Curioso como apenas mencionar este assunto já me causa a impressão de estar defendendo uma coisa muito errada, como se cogitar assistir a uma banda de rock de outra maneira que não no meio da galera fosse heresia, comparável ao ato de tacar pedras na cruz. Pedras na cruz?? Sei não, esse papo tá ficando muito estranho. Se entra aqui alguém que não me conhece vai pensar que tenho mais de 60 anos! O pior é que quando eu tiver essa idade não será improvável que meus dentes estejam mais claros do que são hoje, e que eu assista até TV de pé, só para comprovar a firmeza nas pernas. Mas isto, é claro, não passa de suposição. E como não lembrar da música dos Beatles? Mas será que o Paul, aos 67, corresponde a imagem que ele próprio descreveu, aos 24?

When I’m sixty-four (Paul McCartney & John Lennon)

When I get older, losing my hair,

Many years from now,

Will you still be sending me a Valentine

Birthday greetings, bottle of wine?

If I’d been out till quarter to three

Would you lock the door?

Will you still need me, will you still feed me,

When I’m sixty-four?

oo oo oo oo oo oo oo oooo

You’ll be older too, (ah ah ah ah ah)

And if you say the word,

I could stay with you.

I could be handy, mending a fuse

When your lights have gone

You can knit a sweater by the fireside

Sunday mornings, go for a ride.

Doing the garden, digging the weeds,

Who could ask for more?

Will you still need me, will you still feed me,

When I’m sixty-four?

Every summer we can rent a cottage

In the Isle of Wight, if it’s not too dear

We shall scrimp and save

Grandchildren on your knee:

Vera, Chuck, and Dave

Send me a postcard, drop me a line,

Stating point of view

Indicate precisely what you mean to say

Yours sincerely, Wasting Away.

Give me your answer, fill in a form

Mine for evermore

Will you still need me, will you still feed me,

When I’m sixty-four?

As minirrejeições

ter, 21/07/09
por Bruno Medina |


Eu sei, você sabe, todo mundo sabe, viver é extremamente tenso. Atribua à conta de um daqueles mecanismos involuntários de autopreservação a capacidade desenvolvida pelos cidadãos considerados normais, de relevar o potencial nocivo inerente às experiências sociais cotidianas. E olha que aqui não me refiro aos engarrafamentos, às filas de banco, nem à implicância do patrão, e sim às situações que vez ou outra nos esfregam na cara o quão difícil é lidar com a rejeição, seja em que nível for.

Enquanto reuno argumentos para sustentar minha teoria, torna-se mais e mais claro como alguns comportamentos extremos poderiam ser justificados como incapacidade em tolerar publicamente a pressão do julgamento alheio. Indo direto ao ponto, é o caso, por exemplo, da mulher que resolve mandar bala no marido adúltero, ou do sujeito, humilhado, que sequestra um ônibus para chamar a atenção da ex-namorada.

Mas nem só através de acontecimentos trágicos como estes caminha a humanidade. Numa outra esfera, bem distante das páginas policiais ou do banco dos réus, encontra-se incubada a dimensão diminuta deste mesmo sentimento, aquela passível de ser experimentada por qualquer pessoa de bem. São as minirrejeições (Jesus, como isso soa estranho depois da reforma ortográfica).

Estou certo de que você já passou por algo parecido: mesa grande, lugar barulhento, uma pergunta ou um comentário dirigido a alguém lá na outra ponta. O próprio não ouve, mas os demais, sentados próximos a ele, sim. Suas palavras permanecem, então, ecoando no vazio, suspensas no ar, sem resposta. Aqueles segundos são insuportáveis, né? Meio sem graça você tenta mais uma vez: “mas hein, fulano, eu estava dizendo que…”. Vácuo, de novo.

O cara ao seu lado se constrange, ri de nervoso, mais alguns segundos se passam. Agora você não hesita em gritar o nome de quem te ignora, e quase todo mundo no restaurante já percebeu seu empenho, que não se justifica, afinal o comentário nem faz mais sentido depois de tanto tempo. Provavelmente, se ainda assim não for atendido, você levantará de seu lugar para cutucar o ombro, ou quem saber disparar um soco certeiro na nuca do seu amigo.

Uma variação disto é aquele cumprimento lançado de longe, que em seguida vira uma tentativa canhestra de passar a mão no cabelo ou de alisar a barriga, visto que não foi correspondido. Ningúem, eu disse ninguém, nem mesmo o rei da autoconfiança, aguenta admitir um aceno para as paredes, ou sustentar a mão estendida sem aperto. Dói demais. Mas talvez a pior dentre todas as modalidades de minirrejeição social, pior até do que as evidenciadas pelos relacionamentos amorosos, seja a decorrente da pergunta “lembra de mim?”. Nunca, em nenhuma hipótese, tais palavras devem ser proferidas. Há outros meios menos contundentes de se obter tal confirmação, sem correr o risco de causar embaraço para ambas as partes.

Aqui no blog tenho obtido provas concretas de como uma leve suspeita de minirrejeição já consegue transformar elogios em xingamentos. Basta que os comentários demorem um pouco a ser publicados para determinados leitores se enfezarem. No entanto, tais palavras, carregadas de ódio e de rancor, não me aborrecem, muito menos me fazem sentir minirrejeitado. Tenho plena consciência de como é desagradável estar submetido a este código que supervaloriza a aceitação do outro, e sob o qual estamos expostos   desde a infância.

Da próxima vez em que se sentir minirrejeitado, faça como eu. Pense na situação daquelas pessoas que declaram seus amores nos programas de auditórios, e que, portanto, tomam toco na frente de centenas de milhares de telespectadores. É um método politicamente incorreto, mas, sem sombra de dúvida, bastante eficiente.

De que lado você está?

sex, 17/07/09
por Bruno Medina |

Já não é novidade para ninguém que os números de venda de CDs, ano após ano, só fazem despencar em todo o mundo e que, assim sendo, estaríamos testemunhando estes que seriam os últimos suspiros da música atrelada ao formato físico. Embora ainda se identifique entre as gravadoras a intenção de estender ao máximo o modelo de consumo que vigorou por tantas décadas, o fato é que qualquer solução que derive desta mesma raiz (música distribuída em pen drives, disco semimetálico, cartões slotmusic, etc.) parece já surgir fadada ao fracasso.

Escrevo isto enquanto me envolvo na tentativa de recuperar um mastodôntico CD-Carrossel, que devido à absoluta falta de uso parou de funcionar. Claro que não deve ter ajudado muito quando meu cachorro, ainda filhote, elegeu o tocador de disquinhos como território a ser demarcado, mas o real propósito em mencioná-lo é atestar o quão obsoleto aparelhos como este se tornaram.

Removendo a poeira de seus há muito intocados botões, me lembrava de quando – lá pelo início dos anos 90 – botei pela primeira vez os olhos num provável avô dele. Na ocasião pensei que ouvir três discos inteiros sem precisar se mexer representava, para os amantes da música, uma revolução comparável à invenção do fósforo.

Também pudera, na época do vinil o máximo de relaxamento que se conseguia atingir era o propiciado pela execução de cinco os seis músicas consecutivas; depois disto o sujeito invariavelmente precisava levantar do sofá para trocar a bolacha de lado, podendo ou não aproveitar o ensejo para ir ao banheiro ou preparar um sanduíche na cozinha.

Como não existiam meios de evitar que a audição dos discos fosse interrompida de maneira abrupta, o intervalo que a tarefa demandava passou a ser considerado por muitos como forma de expressão. Ramificar as possibilidades estéticas do conjunto de faixas contidas nos álbuns adicionou um significado extra ao Lado B, fazendo com que a expressão mais tarde extrapolasse inclusive os limites do universo musical, para se tornar sinônimo do que não está no centro das atenções.

Atendo-se aos registros fonográficos, a simples ideia de haver se estabelecido um espaço reservado ao experimentalismo, à introspecção ou mesmo à desobrigação de emplacar mais um hit, foi fundamental para a história da música na segunda metade do século XX. Logo começou-se a notar que as primeiras canções do lado B não raro coincidiam com os momentos mais inspirados, ousados e criativos dos bons LP, levando muita gente a iniciar o contato com seus artistas prediletos justo por ali. Passou-se, então, a dizer que as músicas do lado A eram para as rádios, e as do lado B, para os verdadeiros fãs.

Na era do CD a distinção continuou existindo, no entanto de maneira bem mais discreta. Seguindo a tendência natural, é razoável concluir que a extinção do formato físico determinará também o fim desta maneira de se pensar um coletivo de músicas. Mais ainda, evidencia a aterradora realidade de que o próprio conceito de álbum está com os dias contados.

Esta semana tive em mãos o ipod de um rapaz de quinze anos e me chamou a atenção como ele não possui mais do que oito ou dez músicas de nenhum artista. São milhares de títulos que se amontoam e se confundem, uma sucessão ilógica de hits radiofônicos.

Se esta maneira de comercializar faixas avulsas se tornar padrão – e tudo indica que irá – estaremos fadados, num futuro não muito distante, a conviver com uma saraivada de artistas que enxergarão um lançamento como quatorze tentativas individuais de se atingir a fama, se é que isto já não está acontecendo. Saudosos lados B, abstratos, misteriosos, despretensiosos, corajosos e instigantes. Saudosos os dias em que carreiras eram construídas passo a passo, e que o sucesso era a consequência, e não a causa.

Falando nisso, que tal relembrar os “lados B” mais antológicos de todos os tempos?

O robô que existe em cada um de nós

ter, 14/07/09
por Bruno Medina |

Hoje vos escrevo de um posto diferente; meu laptop, companheiro de todas as horas, faleceu, de causas naturais, no sábado último. Uma tragédia, é preciso dizer. Jovem ainda, nem dois anos de idade completos. Causa: desconhecida. Antes de assimilar o tranco e aceitar o prejuízo do conserto, orçado em R$ 2.700, resolvi contatar o fabricante do produto, na esperança de que este defeito, tão improvável quanto fatal, desperte neles alguma compaixão.

Pelo 0800 do Brasil o máximo que consegui foi ser atendido por um estagiário que perguntava tudo ao supervisor. Quando solicitei falar logo com o sujeito, provavelmente em pé ao seu lado, o rapaz respondeu que o chefe não podia vir ao telefone, porque não se encontrava em posição de atendimento.

Pedi, então, que me passasse seu e-mail, para descrever o problema e candidatar a máquina a uma extensão de garantia. Desta vez o pobre Pedro foi obrigado a me dizer, encabulado, que não havia nenhum endereço específico para esta finalidade, sugerindo que eu registrasse minha “queixa” na seção de comentários do site.

Agora me digam como, numa empresa que produz computadores, não existe um endereço eletrônico disponível para encaminhar a um funcionário a avaliação do meu caso? E que energúmeno se contentaria em tratar um problema desta importância através de um box inespecífico, sem ter uma pessoa sequer a quem se reportar?

Decepcionado com a pouca atenção dispensada pelos compatriotas decidi arriscar um tiro no escuro, uma última tentativa de reverter esta lastimável – e onerosa – condição. Orientado por uma amigo expert em computadores liguei para a central do fabricante, nos Estados Unidos.

No hemisfério norte fui atendido por Nicole Russell, gente boa. Ouviu pacientemente toda a descrição do problema, fez perguntas, pediu que lhe enviasse os poucos documentos e o inconclusivo laudo que me foi apresentado. Ao que pude entender, ela própria decidirá a providência a ser tomada. Nicole me forneceu um e-mail com seu nome, e disse que me escreveria ainda hoje. Fiquei espantado.

O mais curioso foi concluir que no Brasil, o país do calor humano, a atual política de atendimento ao consumidor determina que se evite, até sob tortura, o contato pessoal. Já na terra do Tio Sam, conhecida pela distância das relações, não há problema algum em se mostrar ao cliente como pessoa, ao invés de robô. O melhor de tudo? Ninguém me chamou de senhor.

Acredito que, enquanto escrevo, Nicole está em sua sala, localizada em alguma parte do Idaho ou de Minessota, considerando o que fazer com aquele bando de notas fiscais, orçamentos e relatórios escritos numa língua que não compreende. Balança as pernas, gira na cadeira e batuca sobre a mesa o que pensa ser um samba, imaginando ter ouvido que o inverno carioca é mais quente do que seu verão.

Aqui de casa, na outra metade do mundo, em frente a reduzida tela do meu computador antigo que, devido a falta de costume, agora me embaralha a vista, torço para que meu apelo seja atendido. Lá no Idaho ou em Minessota sou apenas um punhado de letras e números, não mais do que uma linha no monitor de Nicole, um dos vários problemas que ela precisa resolver hoje, antes de deixar o escritório.

Pressinto que a solução deste pequeno drama afetará diretamente minha fé na possibilidade de diálogo entre seres humanos. A ficção errou em suas catastróficas previsões: retratou cidades dizimadas pelo ataque de robôs gigantes, mas não considerou uma ameaça muito mais nociva: a dos homens e mulheres que se portam como robôs. E o pior é que nós dependemos deles.

Para os que ficaram curiosos com o desfecho da história: 48 horas após o primeiro contato recebi uma ligação de Nicole, não do Idaho ou de Minesotta, mas sim do Canadá, aonde sempre esteve. Ponderou em sua mesa sobre meu tormento, resistiu aos apelos da lógica coorporativa e resolveu autorizar a reposição da peça danificada, sem qualquer cobrança.

A decisão é tão sem precedentes que surpreendeu o técnico encarregado no Brasil. Inspirado pelo ato de generosidade resolvi retribuir: ousei transpor a enorme barreira que nos separava e falei deste post, do blog e de como alguns brasileiros torciam por um final feliz para este caso. Ela achou graça. Pelo visto, robôs 0 X 1 humanidade.

Sentado à beira do caminho

sex, 10/07/09
por Bruno Medina |

Lembro-me de que era inverno, julho talvez. Retornava para casa após uma longa temporada fora, numa daquelas intermináveis jornadas de ônibus que atravessam noite e dia. Em algum ponto do estado do Espírito Santo, mal o sol havia surgido, o motorista decidiu fazer uma escala para tomar café da manhã; a razão sugere sempre acompanhá-lo, independente da fome com que se esteja no momento.

Notava-se um pouco de nevoeiro, não muito mais do que o suficiente para acrescentar alguma dramaticidade a este relato. Servido de pão com manteiga e de uma média em copo de vidro tentava lutar contra o sono mantendo a atenção na pista, aonde os carros passavam mais ligeiros do que meus olhos podiam acompanhar. Lá do fundo da lanchonete escutava-se o rádio, baixinho: “eu cheguei em frente ao portão/meu cachorro me sorriu latindo/minhas malas coloquei no chão/eu voltei”.

Aqueles versos se apoderaram do silêncio de quase madrugada de maneira avassaladora, difícil de explicar. De repente, era como se os presentes agissem em reação à música, como num daqueles mágicos instantes em que a vida se assemelha a um videoclipe. Os movimentos da senhora triste lavando pratos atrás do balcão, o cansaço do caminhoneiro, o cigarro solitário da jovem escorada no poste, tudo parecia meticulosamente ensaiado, e tudo fazia enorme sentido. Sugerido talvez pelas saudades de casa, ou quem sabe pelo sono, tive a nítida impressão de que, por alguns segundos, as histórias daquelas pessoas se entrelaçaram, e foi neste preciso momento que entendi Roberto Carlos.

Quando criança achava graça de seus especiais na televisão. Meu avô costumava dizer que não aguentava mais vê-lo com brinco de pena, chapéu de caubói ou andando de calhambeque. Mesmo assim, por muito tempo, Roberto foi o cara que entrava em nossas salas uma única vez por ano, e que todo mundo – inclusive meu avô – parava para assistir.

Naquela época me intrigava a maneira com que arrebatava públicos tão dispares, mistério que só fui desvendar depois de adulto. E por mais que suas músicas ainda não tivessem grande significado para mim, o impressionante carisma do rei já me dava pistas de que um dia também eu poderia estar grudado na frente daquela TV. Dito e feito. Os anos se passaram e a obra de Roberto permeou minha existência, assim como acontece a maioria dos brasileiros.

O valioso legado transpôs o tempo e chegou até mim, em sua própria voz ou na de outros, da mesma forma que irá chegar às gerações que se seguirem. Sua contribuição artística é tão fundamental que confunde-se com quase tudo que ouvimos depois dele, sendo redundante até classificá-la como influência. Ao longo destas cinco décadas de carreira Roberto e suas músicas transformaram-se num incomensurável patrimônio nacional, como a Amazônia ou a estátua do Cristo Redentor.

Amanhã, quando estiver se apresentando no Maracanã, possivelmente o palco mais importante deste país, tenho certeza de que se sentirá em casa. O estádio, que serviu aos maiores nomes da música internacional, com inexplicável atraso irá receber o artista que dentre todos o ocupará com maior merecimento. Assim como poderia prever meu avô, o repertório não deve trazer surpresas, mas quem se importa?

Naquela parada de ônibus aprendi que a tão citada majestade de Roberto Carlos se deve a uma habilidade especial desenvolvida por ele, de se apropriar de passagens significativas das vidas de cada um de nós. Quando cantar a primeira sílaba de uma daquelas músicas que conhecemos de cor, uma parte de nós deverá seguir com ele. Pelo menos assim foi nos últimos 50 anos. E, provavelmente, assim será pelos próximos 50.

‘Eu faço assim porque sou assado’, ou a morte anunciada da canção

ter, 07/07/09
por Bruno Medina |

Chico Buarque (de novo ele) em entrevista concedida anos atrás externou sua preocupação quanto as evidências de que o gênero “canção” estaria se tornando obsoleto. Muito embora a discussão a altura já tivesse tomado corpo pelas vozes de estudiosos e especialistas, o fato é que nunca no Brasil alguém com tamanha visibilidade havia admitido tal hipótese.

Segundo o renomado compositor, o formato que ao longo do século anterior mostrou-se imprescindível para levar a música às massas padece, enfraquecido pela falta de novos rumos e pelo vazio decorrente de seu afastamento do discurso político-social. Não só em nosso país como no mundo todo.

A teoria – para dizer o mínimo – dá panos pra manga, e não deixo de concordar com o Chico ao notar, entristecido, uma tendência cada vez mais clara nas novas composições, de as letras funcionarem como mera paisagem para a parte instrumental. Discorda? Então vai ouvir rádio. A impressão é a de que atualmente todo esforço empenhado em demonstrar precisão no que é executado e atestar qualidade às gravações justifica o desdém com o que se canta. Como se as palavras fossem um adendo, ou aquela porção de aipim frito que os garçons insistem em servir nas mesas de churrascaria.

É, meus caros, o que no passado foi um trunfo, motivo de orgulho para nossos pais e avós, hoje está relegado a segundo plano; nesta busca pela primazia técnica podemos estar, sem perceber, nos afastando do que fazíamos melhor. Mas o empobrecimento da estrutura da canção deve ser atribuído apenas ao desgaste natural sofrido com os anos e a condições específicas de nossos dias? Provavelmente não.

Se soa dramático falar em morte da canção, considere ao menos que a diminuição de sua relevância pode dizer mais do que se pensa sobre esta época em que vivemos. Tenho urticárias só de pensar que meu filho crescerá sob influência desta turma de artistas que acham o máximo aqueles outros, gringos, que dispensam dólares pela janela de suas limusines, e que enaltecem o culto à autoimagem quando cantam algo do tipo “eu faço assim porque sou assado”.

Infelizmente, como bem poderiam dizer, “o buraco é mais embaixo”. Tá certo, sempre houve espaço para o entretenimento sem maiores pretensões, mas cadê o contraponto? Se a música pop caminha conformada para a fórmula “batida eletrônica + falação” (ou qualquer outra variação minimalista que o valha), e se, assim, condena a artefato de museu a figura do compositor preocupado com a mensagem a ser transmitida, digo que isto é sinal dos tempos.

Basta olhar em volta e perceber que estamos atolados até o pescoço na banalidade. Corremos sério risco de passarmos à história como a geração Twitter: das abreviações, da praticidade extrema, do pragmatismo, da reclusão não reflexiva, do discurso taquigráfico e ainda assim irrelevante, das amenidades.

Quando a própria classe musical, vaidosa, ocupa suas melhores horas se entorpecendo com a possibilidade de narrar minúcias do cotidiano aos seus fãs, como esperar que haja tempo ou estímulo para se envolverem numa produção artística de qualidade? Se é verdade que a arte imita a vida, então pode encomendar o velório: a canção está mesmo com os pés na cova.

Flip-Vapt-Vupt

sex, 03/07/09
por Bruno Medina |

Acabo de regressar de minha primeira incursão à FLiP. Embora pareça estranho deixar Paraty no segundo dia do evento, justo enquanto o fluxo de visitantes que chegam à cidade só faz aumentar, a sensação não é de todo inédita; a razão de minha breve passagem pelo lugar foi acompanhar a Adriana no show de abertura da feira, e isto costuma implicar aos músicos partirem antes de usufruir do melhor da festa. Ossos do ofício.

Infelizmente o cronograma apertado não previa tempo para assistir a qualquer palestra, ou me deixar extasiar pela deslumbrante arquitetura colonial do simpático balneário. Mesmo assim, aproveitei uma brecha entre os compromissos para me sentar num banco da praça e imaginar aquilo ali séculos antes, sem livros pendurados por barbantes nas copas das árvores, sem o zum zum zum dos leitores peregrinos, sem o trombar acidental de grandes escritores pelas esquinas. A FLiP é mais ou menos isso, uma Disneylândia para os amantes da literatura.

Após quatro horas de curvas e saculejo, pisei no calçado irregular do centro histórico como um beduíno que vislumbra o oásis no horizonte. Antes de “matar a sede”, recebi a informação de que, por motivos operacionais, seria alojado em outra pousada. Notícias como esta, em turnês, não raro são presságio de banhos frios, dores na coluna e lençóis ásperos. Neste caso, no entanto, a mudança era de burro para cavalo: troquei um hotelzinho modesto, na parte nova da cidade, por um tradicional e luxuoso casarão do século XVIII.

Como se isto já não fosse suficiente para alegrar minha tarde, me convidaram para um almoço que acontecia logo ali perto. Sendo sincero, mesmo que servissem sopa de tijolo eu estaria dentro, tamanha a fome de quem tem por hábito acordar às seis da matina (filho pequeno) e não havia almoçado ainda, às três da tarde. Para minha surpresa, em torno das mesas de madeira rústica, estavam as grandes estrelas da festa; Edna O´Brien, Richard Dawkins e Alex Ross são apenas alguns dos que pude reconhecer no pátio do Sobrado Dom João, confortável propriedade instalada no melhor ponto de Paraty, pertencente à família real, nossos anfitriões.

Para quem contava em pedir uma comidinha no quarto, não deixou de ser uma agradável surpresa entrar na fila do bobó de camarão bem atrás do Milton Hatoum. Durante este almoço percebi que, devido a um provável equívoco da produção, havia sido hospedado, sozinho, na melhor pousada da cidade, dividindo corredores com a fina nata da literatura internacional. No dia seguinte a confirmação veio através da presença de um engravatado Gay Talese no café da manhã, se servindo de salada de frutas ao meu lado no bufê.

Depois da comilança passamos o som, bebemos cachaça e demos uma volta pelo perímetro do centro, o que não leva mais do que vinte minutos. A cachaça, aliás, que possui tanta afinidade com o ato de escrever livros (?), é um dos atrativos de Paraty, a ponto do nome da cidade ter sido eternizado por Assis Valente como sinônimo da bebida, nos versos de Camisa Listrada (1938). A fama de possuir alambiques de qualidade, por tradição, atrai os bons bebedores, e os maus também, ao que pude constatar pelo gringo caído dentro de um arbusto, com uma garrafa na mão. Coitado, deve ter pensado que os livros pendurados nas árvores estavam flutuando…

À noite nos apresentamos, possivelmente, para todas as pessoas que conhecemos nas horas anteriores, inclusive para os bêbados que estavam acordados e para os vira-latas vadios que perambulam pelos estandes, alheios aquele burburinho todo. Na FLiP, é assim. Parti com muita vontade de retornar no ano que vem. Mesmo sem direito a almoços estrelares e pousadas luxuosas, mesmo tendo ido embora antes do início, valeu muito a pena! Em edições vindouras, caso você tenha a oportunidade de ir, não pense duas vezes. Afinal, em que outro lugar do mundo é possível conhecer cachorros que frequentam eventos literários?



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