(esta história começou no post anterior)
Quem trouxe o cd? Ninguém levou o cd. Ele estava tão integrado às nossas rotinas que simplesmente nem era preciso se lembrar de levá-lo para o hospital; por isso nos esquecemos completamente dele, entenderam? A perspectiva de que o parto fosse realizado sem as músicas, que já haviam se associado tão intrinsecamente ao evento, era aterradora.
Faltando pouco mais de uma hora para o grande momento, não havia muito o que fazer. Mais sensato seria esquecer o plano, esquecer da lista e aceitar que Vicente nasceria em silêncio. Decisão tomada. A apreensão causada pela condição de espera podia ser medida através da conversa sem propósito que se dava no quarto, entre alguns parentes. Nestas horas ninguém quer demonstrar preocupação, sendo assim o assunto gira em torno de banalidades, coisas sem a menor importância, o que só aumentava a minha sensação de impaciência.
O clima que se estabeleceu apenas corroborou para distrair nossa percepção quanto ao fato de aquelas músicas terem se tornado uma espécie de amuleto, uma bengala emocional imprenscindível para as horas que estavam por vir. Posto isso, não havia muito mais a considerar. Mesmo dispondo de pouco tempo, resolvi sair em busca do cd. Preferimos inventar uma desculpa para os parentes ao invés de tentar convencê-los de que fazia sentido sim deixar o hospital naquelas condições, por um motivo que, inclusive, eles nem considerariam relevante.
Leia-se por “naquelas condições” minha certeza de que seria necessário transpor o trânsito caótico de Botafogo pouco depois das seis da tarde de uma segunda-feira, ou seja, o pior cenário possível. Entrei no primeiro táxi que avistei e, em poucos minutos, o motorista e eu já havíamos nos tornado amigos de infância, conversando sobre fé, destino e filhos. Gastei trinta minutos para cumprir o percurso de pouco mais de cinco quilômetros que separava a minha casa da paternidade.
Como não sabia que condições enfrentaria no caminho de volta, bolei uma estratégia detalhada, um esquema tático visando demorar o mínimo que conseguisse nesta imprevista escala. O abrir da porta do carro seria como o estopim que antecede a largada para os corredores de uma maratona. Poucos metros antes de pararmos completamente não consegui evitar o pensamento sobre o quão irônica era aquela situação; tanto planejamos, tanto antecedemos aquele dia e, por fim, a lógica prevaleceu. Afinal nada mais justo que, na prática, tudo se desse de outra maneira.
Era chegada a hora de pôr o esquema à prova: saí do carro, abri a porta de casa, deixei o cachorro sair para fazer xixi no poste, peguei a chave do carro e o controle que abre a porta da garagem, deixei o cachorro no poste, abri a porta da garagem, corri até o carro, abri o carro, peguei o cd que estava no painel, fechei o carro, abri o carro de novo para confirmar que havia pego o cd certo, fechei o carro de novo, fechei a porta da garagem, peguei o cachorro e botei pra dentro de casa, deixei a porta de casa aberta (não era pra deixar), fechei a porta de casa e entrei no táxi de volta. Tudo isso em dois minutos.
A volta ainda custou um tanto, e o pessoal que estava no hospital começou a me ligar, perguntando aonde eu tinha ido numa hora daquelas.
- Fui buscar o cd.
– Hã?
Chega logo, chega logo. Vou sair do carro, saí. Despedi-me de meu novo grande amigo e atravessei a avenida à pé, porque era mais rápido do que esperar o carro dar a volta. E lá fui eu correndo por entre os carros parados e fugindo das motos. Entrei no hospital esbaforido, trazendo o cd nas mãos como um estandarte. A corrida só terminou no balcão da recepção, onde havia uma pequena fila para a identificação dos visitantes.
– Eu não sou visita, sou pai de uma criança que vai nascer, que deve estar nascendo…
– Senhor, todos, sem exceção, precisam se identificar.
– O cd chegou, pronto – gritei ao pisar no quarto, para absoluta incompreensão dos presentes. Foi só o tempo de lavar o rosto e o enfermeiro já chegou com a maca. Percebi então que a aventura ao menos serviu para que eu me distraísse, talvez pior teria sido ficar ali com os parentes, compartilhando daquela expectativa coletiva. Entramos no centro cirúrgico, vesti minha roupa esterilizada e já podia reconhecer a voz dos médicos à postos. “A máscara sufoca um pouco ou sou eu que estou nervoso?”, pensei.
– Bruno, você fica sentado aqui.
O parto começou sem muita anunciação. “O importante é respirar, será que eu vou passar mal?”. Mãos dadas, manter a calma, está tudo indo bem. “Vai ser rápido, vocês vão ver”.
– Trouxeram o cd? A hora de colocar é agora.
– Claro, aqui está—admito que tirei-o do bolso com certo orgulho.
– Ok, cadê o som?
– Que som?
– O som, para colocar o cd.
– Que som pra colocar o cd? Ninguém falou de som nenhum, só de cd.
– Não, aqui? Aqui não tem som.
– Aqui não tem som? Por que ninguém me avisou?
Não sei se isso é consenso pra todos que estão lendo, mas já tomei conhecimento de vários partos realizados com música, no entanto NUNCA ouvi falar da necessidade de se levar um aparelho de som para o centro cirúrgico. Como eu poderia imaginar que eles esperavam que eu levasse o meu som, imundo, repleto de bactérias e com a tampinha quebrada para um ambiente completamente esterilizado? Como eu poderia imaginar que eles esperavam que eu levasse o meu ipod com caixinhas à tira colo para o centro cirúrgico?
Não, eu não poderia imaginar. E assim termina esta história em que o final feliz é questionável. Tudo ocorreu muito bem, Vicente nasceu rápido e cheio de saúde, mas sem música. Atendendo a pedidos e sem prestar maiores esclarecimentos, aí vai a lista com as músicas que não foram ouvidas naquele dia:
Lua de São Jorge – Caetano Veloso
O Mundo é um Moinho – Cartola
Conversa de Botas Batidas – Los Hermanos
Cigarettes and Chocolate Milk – Rufus Wainwright
Flores Astrais – Secos e Molhados
Samba De Orly – Chico Buarque
Brincar de Viver – Maria Bethânia
Here Comes The Sun – The Beatles
Pela Luz Dos Olhos Teus – Tom /Vinicius / Toquinho /Miucha
Shiny Happy People – R.E.M.
Amanhã – Guilherme Arantes
I Saw The Light – Todd Rundgren
Modern Nature – Sondre Lerche
All You Need Is Love – The Beatles
Maria, Maria – Milton Nascimento
My Sweet Lord – George Harrison
The More I See You – Chris Montez
Everlasting Love – U2