Meu nome é trabalho

sex, 31/10/08
por Bruno Medina |

job.jpg Esta semana foi notícia em todos os jornais que o índice de desemprego no Brasil atingiu o nível mais baixo dos últimos dez anos. A notícia não deixa de ser um alento em tempos de abruptas oscilações nos mercados mundiais, muito embora seja provável que estes números reflitam o período anterior à crise e à declaração de prejuízos em quase todos os setores da economia (alguém aí disse: “alegria de pobre dura pouco”?).

Mas antes que se possa atribuir a redução do contingente de desempregados no país a alguma razão específica, cabe atentar para um fenômeno silencioso que parece evoluir numa escala proporcional à ocupação dos postos de trabalho. Perceba o potencial que este novo fator tem de interferir nas pesquisas e comprometer a acuidade dos resultados obtidos, afinal, é compreensível que as metodologias não estejam preparadas para aferi-lo.

Por esta razão desconheço que haja uma terminologia específica para denominá-lo, mas, por hora, acho que podemos chamá-lo de “nomenclatura pomposa para incrementar cargos”. Preste atenção como tem sido cada vez mais comum ouvir alguém se referir às mesmas profissões de outrora agora batizadas com nomes bacanas. Deve ser uma destas tendências que vêm de fora. Quem sabe é fruto da criatividade de algum guru especialista em programas de incentivo ao funcionário, mas o fato é que a “NPIC” é uma coqueluche. 

O vendedor virou representante comercial. O advogado é consultor jurídico. O cabeleireiro, hair stylist, a recepcionista, hostess, o jardineiro faz “design de jardins”, isso sem falar no personal. Esse termo há muito saiu das academias para designar uma enorme gama de funções que vão do cara que passeia com cachorros até o que ministra qualquer tipo de treinamento. A moda veio também a calhar para aqueles que possuem trabalhos esporádicos, pouco ortodoxos ou nenhum trabalho. Caso se enquadre em alguma destas categorias, e no passado já tenha se sentido desconfortável ao ser indagado sobre sua vida profissional, da próxima vez responda que seu ofício é produtor. São incontáveis as áreas associadas a esta denominação, um cargo que já trás na própria descrição o vigor da labuta.

Seguindo o raciocínio, atualmente quase todo mundo pode ser considerado produtor, representante, consultor, personal ou, ainda, promoter. Com tantas possibilidades profissionais, o difícil é encontrar alguém que se considere de fato desempregado; há tantos “sinônimos” para esta temida palavra, que seu uso se restringe apenas aos pouco criativos. Ao contrário destes, existe ainda uma outra turma que deriva dos adeptos do “NPIC”. São os multi-empregados, ou seja, aqueles que consideram ter múltiplos talentos e  atribuições. Eu, por exemplo, sou músico, produtor executivo de um projeto musical, escritor e blogueiro, um verdadeiro  orgulho para a família. E você que achava que depois do recesso do Los Hermanos eu estava meio paradão, hein?

O número 2

ter, 28/10/08
por Bruno Medina |

lauper.jpgFoi com grande surpresa e certa curiosidade que recebi a notícia sobre uma ronda de shows da cantora Cindy Lauper por diversas capitais brasileiras, a partir do próximo dia 11. Confesso que nos últimos vinte anos deixei passar qualquer indício capaz de atestar que esta cantora, tão presente em minha infância, ainda estaria em atividade.

Lembro nitidamente como pelos idos de 1985 era impossível ligar o rádio e não ouvir “Girls just want to have fun”, “True Colors” ou “Good Enough”, esta última tema principal do filme “Os Goonies” de Steven Spielberg. E quem como eu está por volta dos trinta sabe bem o que representava para a vida social de um pré-adolescente dançar coladinho “Time after time” numa festa de playground. Era quase namoro.

No encontro que reuniu em prol da África as maiores estrelas do pop internacional daquele momento, destacava-se a voz rouca e gritada de Cindy, entoando os versos que conduziam ao refrão de “We are the world”, possivelmente a música mais executada da década. Num curto intervalo de tempo foram tantos os hits emplacados pela moça que se chegou a pensar que a então aspirante a musa Madonna nunca seria páreo para ela. O que se deu foi justo o contrário; apesar das inevitáveis comparações, pelas beiradas, Madonna foi se consagrando absoluta na posição que disputavam, e à Cindy coube apenas conformar-se em ser a número 2.

Ah, o número 2… segundo a numerologia este é o algarismo que remete à paciência e ao colaborismo. Seu princípio passivo influencia pessoas a quem se pode atribuir diplomacia e facilidade de adaptação. Assim sendo o 2 é o complemento natural para o 1. No mundo do entretenimento o numeral é sinônimo da “síndrome de Tony Bennett”, expressão maldosa que alude à falta de sorte deste intérprete nova-iorquino, condenado a viver à sombra de seu contemporâneo, Frank Sinatra.

Mas o número 2 nem sempre carrega consigo a simbologia do derrotado. Há situações em que 2 é o desejável resultado da soma entre 1+1. É assim com o Gordo e o Magro, Bonnie e Clyde, Batman e Robin ou Xitãozinho e Xororó. São também muitos os exemplos em que o posto secundário foi ostentado sem rivalidade, com devoção e até orgulho. Dedé Santana, Erasmo Carlos e Paulo Coelho (de quem estou me esquecendo?) são a prova de como é possível prestar talento ao outro em beneficio de uma sólida parceria.

Menos comuns são os casos em que o número 1 teme ser superado pelo número 2. Dizem que ao ser capturado na selva boliviana Che Guevara era desafeto de Fidel, porque este já se ressentia do prestígio alcançado pelo colega de revolução. Em benefício da longevidade das duplas o melhor é ter os papéis muito bem definidos. A conclusão que se pode tirar de qualquer um dos pares citados parece caber numa mesma indagação: o que seria do 1 se não houvesse o número 2? E pra falar a verdade sempre fui mais simpático à Cindy Lauper…  

E você, tem medo do quê?

sex, 24/10/08
por Bruno Medina |

fear1.jpgMal começou a sexta-feira e já se consolida a nefasta perspectiva de outro dia de enormes perdas nas bolsas de valores. Enquanto eu e você tentamos descobrir que transformações esta crise econômica sem precedentes acarretará de fato em nossas vidas, há sempre alguém –nas mesas redondas da TV ou no boteco da esquina- disposto a dizer que o pânico generalizado é o verdadeiro vilão, o responsável por as atuais perdas serem bem mais acentuadas do que deveriam ser.

Investidores enfartam, conglomerados submergem, a recessão parece inevitavelmente chegar a galope e, por conta disso, o mundo treme de medo. A volatilidade dos mercados traduz a descrença na solidez das instituições ou em qualquer outra coisa que o valha. O quadro desfavorável reflete com a fidelidade de um espelho o retrato de nossa época: vivemos na era do medo, nunca se sentiu tanto medo.

A paranóia é tamanha que se podia prever, em algum momento, o estouro da bolha. Como num efeito dominó, não duvide que os pequenos receios possam influir com grandes consequências no rumo dessa maré de pessimismo que nos assola. Calma, não precisa concordar, mas é o que eu penso. A seguir uma lista dos meus, dos seus, dos medos -genuínos ou não- que pairam por aí, loucos pra grudar na gente:

Medo de não ter dinheiro.

Medo de não estar “de acordo”.

Medo do glúten e da gordura trans.

Medo de não saber.

Medo de dizer o que pensa.

Medo de perder o emprego.

Medo de não ser querido.

Medo de ter síndrome do pânico.

Medo de sentir saudade.

Medo de ser de esquerda ou de direita.

Medo de pegar fila ou engarrafamento.

Medo do escuro.

Medo de estar aquém.

Medo de ser enganado.

Medo de ser barrado.

Medo de ficar maluco.

Medo de ser o primeiro.

Medo de ser processado.

Medo de ser esquecido.

Medo de crescer.

Medo de se atrasar.

Medo de falar besteira.

Medo de ser superado.

Medo de ser morto.

Medo de encalhar.

Medo de ser incompreendido.

Medo de passar do ponto.

Medo de ser incoerente.

Medo do outro.

Medo de gostar demais.

Medo de sentir medo. Quem não tem?

Toda nudez será castigada?

ter, 21/10/08
por Bruno Medina |

nude.jpgNão faz muito tempo ainda era possível ouvir, numa roda de amigos, saltar da boca de algum detrator do cinema nacional a manifestação de repúdio quanto ao fato da pornografia haver se tornado adereço corriqueiro da imensa maioria dos roteiros, fossem dramas ou comédias. É certo que este argumento se respalda nas ditas pornochanchadas, gênero predominante nas produções rodadas no país durante os anos 70 cujos reflexos ainda ecoavam em meados da década seguinte, quando supostamente caiu em desuso.

Até hoje, no entanto, há quem pense que se por um lado o auge do “estilo” foi responsável pelas maiores bilheterias alcançadas por filmes brasileiros, por outro prestou o desserviço de associá-los a enxurrada de palavrões e as cenas de sexo gratuitas características desta que foi a época de ouro para a indústria cinematográfica tupiniquim. No início a nudez abundante nas telas representou uma forma de resistência à censura e ao cerceamento da liberdade de expressão vigentes durante a ditadura militar, mas em algum momento cedeu seu caráter político e se transformou num mero recurso para alavancar audiência que, embora atenuado, perdura.

“… é sobre as atrizes que a opressão da pornografia é exercida com maior violência, uma vez que ela atende, na imensa maioria das vezes, a um anseio sexual do homem. É raro o convite de trabalho, seja filme ou novela ou programa de humor, que não inclua cenas desse tipo para o elenco feminino”. Foi o que declarou Pedro Cardoso no Festival do Rio durante a primeira sessão de “Todo Mundo Tem Problemas Sexuais”, filme do qual participa como ator. A frase citada é apenas um trecho do manifesto redigido e lido pelo próprio para uma platéia majoritariamente composta por atores e diretores.

A declaração, obviamente, repercurtiu no mundo das artes e não faltou quem a tachasse de moralista. O diretor Zé Celso Martinez, que diz considerar o nu como o melhor dos fugurinos, classificou o manifesto como “uma volta à inquisição”. Reação semelhante partiu do cineasta Carlos Reichenbach em entrevista à Folha: “Representar é se colocar nu. Essa postura de ator que renega o corpo me assusta”.

A polêmica, que dava indícios de ter perdido força, voltou à tona por intermédio da atriz Graziella Moretto, em matéria que ocupa a capa do Segundo Caderno do jornal O GLOBO desta terça-feira: “… essa suposta falta de pudor exigida do ator não existe. Parece ser quase contingência da profissão você ficar pelado. Uma jovem atriz acha que não pode dizer “não” quando vai fazer teste para um filme e o diretor manda ela tirar a roupa. Já ouvi milhões de histórias assim”.

Eu também. A mim parece pouco sensível a argumentação de quem prefere enxergar  na corajosa iniciativa de Pedro Cardoso uma atitude pudica. Simplificar a relevante discussão proposta a estes termos chega a soar leviano. A disponibilidade para ficar nu em cena nada diz à respeito da capacidade de qualquer ator, afinal o que não falta é gente sem qualquer compromisso artístico acreditando que ficar pelado vai servir de trampolim para a fama. Seriam então estes -os que aceitam a nudez de seus personagens sem qualquer questionamento- mais competentes ou profissionais do que os demais colegas?

Este manifesto visa apenas desvincular a nudez como um fator classificatório, bem como fomentar o debate sobre a qualidade do que se assiste atualmente. As palavras de Pedro podem ter representado um golpe contundente, em especial para os que se acostumaram a conviver com clichês e enredos apelativos em suas obras. Uma análise pouco mais apurada indicará que o discurso na verdade foi em defesa da nudez; evitar sua banalização e a melhor maneira de eternizá-la. 

Brasil, do vinil ao download

ter, 14/10/08
por Bruno Medina |

bandeira.jpgAs primeiras horas da manhã desta terça-feira cinzenta em Aracaju prenunciavam o tédio que invariavelmente assola os que estão de passagem por cidades praianas em dias chuvosos. Pelo menos era o que despontava em meu horizonte até eu me entregar a leitura de “Música, Ídolos e Poder- do vinil ao download”, uma auto-biografia escrita por André Midani.

Para os que não estão familiarizados com este nome posso assegurar que trata-se de uma das mais importantes figuras da indústria fonográfica brasileira, o homem que ajudou a consolidar as carreiras de artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Raul Seixas, Elis Regina e Nara Leão, apenas para citar alguns.

Mesmo não tendo chegado a metade do livro já me sinto bastante à vontade para recomendá-lo. A leitura flui fácil e o elenco, é claro, contribui para isto. Merecem destaque as divertidas passagens envolvendo Caymmi, João Gilberto, Tom e Vinícius, este último protagonista de uma suspeita que levava os amigos mais íntimos às gargalhadas: o poeta não desmentia nem confirmava a tese de que havia feito “Eu sei que vou te amar” pensando na birita, e não em uma mulher.

As memórias de Midani assumem caráter histórico por retratarem o período que antecede o estabelecimento do showbusiness como um negócio milionário no Brasil, uma época em que se desconhecia o significado de expressões como marketing, público-alvo ou jabá, no tempo em que discos eram vendidos de porta em porta.

A trajetória pessoal deste sírio que ainda criança testemunhou o desembarque das tropas aliadas na Normandia -naquele que viria a ser conhecido como o “dia D”- é marcada por elementos tão fantásticos quanto este, capazes de explicar ao leitor como um confeiteiro desertor se tornou um dos principais executivos da música mundial. Não seria exagero afirmar que os acontecimentos responsáveis por o trazerem até este país se confundem com os cursos assumidos pela própria MPB.

Foi iniciativa dele, por exemplo, encomendar a Chico, Gil e Caetano discos gravados no exílio para serem lançados aqui, o que acabou se configurando uma declarada afronta ao regime militar. Uma década antes coube também a ele convencer a diretoria da extinta Odeon quanto a viabilidade da novíssima bossa se tornar o fenômeno de música jovem brasileira que tanto buscavam. O livro é repleto de casos como estes, em que a sensibilidade de Midani foi fundamental ao determinar sem hesitação o rumo a ser seguido.

Mais do que um apanhado de boas histórias “Músicas, Ídolos e Poder” é um valioso registro, um fragmento indispensável para a compreensão do que se deu com nossa música nos últimos cinqüenta anos, como ele próprio diz, do vinil ao download. Em suas páginas estão expostos os mecanismos que possibilitaram o surgimento de uma música genuinamente brasileira e popular, bem como os primórdios da constituição de personalidades artísticas sólidas e originais. Se hoje “Ivetes”, “Calypsos” e “Nx-zeros” atestam o peso da popularidade no equilibrio da balança que determina a longevidade de cada artista no mercado, é bem provável que este livro indique quando e porquê isto começou.

E-mail de bêbado não tem dono

sex, 10/10/08
por Bruno Medina |

beer.jpgEsta, imagino, muita gente vai achar que é invenção. Eu mesmo, quando li a notícia, precisei me certificar de que não se tratava de mais uma daquelas pegadinhas que volta e meia surgem com o intuito de confundir jornalistas da seção de informática. De fato parece difícil compreender a motivação que levou os programadores do Google a desenvolverem uma ferramenta de aplicação e eficiência tão questionáveis, um recurso que visa proteger seus usuários…de si mesmos!

Sexta-feira, 4:20 da manhã. Você acaba de chegar em casa da balada e, antes de deitar, resolve dar uma conferida nas notícias do dia que está prestes a começar. De repente bate uma inexplicável vontade de se expressar, de dividir com o mundo os sentimentos sufocados pela razão, aquelas verdades que não costumam ter qualquer chance de serem ditas quando você está sóbrio.

Tá bom, você bebeu um pouco, e daí? Nem por isso o que tem a dizer deve ser desconsiderado, pelo contrário, escrever para alguém, dadas as condições, só endossa a urgência de tais palavras. Afinal existe momento mais apropriado para enviar um e-mail para a ex-namorada? Não, por isso é hora de aproveitar o ensejo e mandar bala.

Em linhas gerais você declara que nunca a esqueceu. Que vive perambulando pela noite, passando o rodo, que inclusive já até pegou uma amiga dela, no entanto, nada diminui a saudade que sente. Admite que quando namoravam não soube dá-la o devido valor, que nunca conseguiu ser fiel, mas que agora, pelo menos, percebe a besteira que fez. Para não perder a viagem e fechar com chave de ouro, chama o atual namorado dela de “babaca” e ainda diz ter certeza de que ele também não a merece, porque sempre o vê pelos bares muito bem acompanhado. Pronto. Posto isto vai dormir leve como uma pluma.

Por volta de uma da tarde acorda com a boca seca, dor de cabeça e uma vaga lembrança de ter passado pelo computador no caminho para a cama. Abre o programa de e-mail, checa a pasta de itens enviados e já se arrepia só de ler o nome do último destinatário. Tarde demais. Caso a situação lhe pareça de algum modo familiar, se já mandou ou recebeu um e-mail destes, foi para ajudar pessoas como você que se criou o “mail goggles”.

A principal função deste aplicativo é fazer com que seus usuários pensem um pouco antes de enviarem mensagens durante o período da madrugada. Quando habilitado, o botão “send” da caixa de saída fica indisponível até que se resolvam -em curto prazo de tempo- cinco problemas matemáticos simples (o grau de complexidade das operações pode ser alterado).

A aposta dos engenheiros do Google é que, ao dificultar o envio de e-mails, evitem o arrependimento comum entre aqueles que se encontram bêbados demais para discernir sobre o teor do que escreveram. Caso o remetente não consiga multiplicar cinco por sete é bem provável que pela manhã agradeça ao Google. Perguntado sobre a inspiração que resultou na esdrúxula engenhoca o responsável alegou estar apenas atendendo ao pedido de alguns conhecidos e garantindo que ele próprio pare de mandar e-mail embaraçosos.

O invento é uma espécie de lei-seca virtual, um mecanismo de auto-censura que impede desastres emocionais. Seu nome remete a uma gíria em inglês que descreve aquele curioso efeito responsável por tornar as pessoas mais bonitas depois que tomamos alguns copos. Se funciona ou não, é testar pra crer. Só espero, pelo bem da humanidade, que não inventem algo semelhante para ser usado nos bares.

Em busca da trilha

ter, 07/10/08
por Bruno Medina |

transito.jpg(esta história começou no post anterior)

Quem trouxe o cd? Ninguém levou o cd. Ele estava tão integrado às nossas rotinas que simplesmente nem era preciso se lembrar de levá-lo para o hospital; por isso nos esquecemos completamente dele, entenderam? A perspectiva de que o parto fosse realizado sem as músicas, que já haviam se associado tão intrinsecamente ao evento, era aterradora.

Faltando pouco mais de uma hora para o grande momento, não havia muito o que fazer. Mais sensato seria esquecer o plano, esquecer da lista e aceitar que Vicente nasceria em silêncio. Decisão tomada. A apreensão causada pela condição de espera podia ser medida através da conversa sem propósito que se dava no quarto, entre alguns parentes. Nestas horas ninguém quer demonstrar preocupação, sendo assim o assunto gira em torno de banalidades, coisas sem a menor importância, o que só aumentava a minha sensação de impaciência.

O clima que se estabeleceu apenas corroborou para distrair nossa percepção quanto ao fato de aquelas músicas terem se tornado uma espécie de amuleto, uma bengala emocional imprenscindível para as horas que estavam por vir. Posto isso, não havia muito mais a considerar. Mesmo dispondo de pouco tempo, resolvi sair em busca do cd. Preferimos inventar uma desculpa para os parentes ao invés de tentar convencê-los de que fazia sentido sim deixar o hospital naquelas condições, por um motivo que, inclusive, eles nem considerariam relevante.

Leia-se por “naquelas condições” minha certeza de que seria necessário transpor o trânsito caótico de Botafogo pouco depois das seis da tarde de uma segunda-feira, ou seja, o pior cenário possível. Entrei no primeiro táxi que avistei e, em poucos minutos, o motorista e eu já havíamos nos tornado amigos de infância, conversando sobre fé, destino e filhos. Gastei trinta minutos para cumprir o percurso de pouco mais de cinco quilômetros que separava a minha casa da paternidade.

Como não sabia que condições enfrentaria no caminho de volta, bolei uma estratégia detalhada, um esquema tático visando demorar o mínimo que conseguisse nesta imprevista escala. O abrir da porta do carro seria como o estopim que antecede a largada para os corredores de uma maratona. Poucos metros antes de pararmos completamente não consegui evitar o pensamento sobre o quão irônica era aquela situação; tanto planejamos, tanto antecedemos aquele dia e, por fim, a lógica prevaleceu. Afinal nada mais justo que, na prática, tudo se desse de outra maneira.

Era chegada a hora de pôr o esquema à prova: saí do carro, abri a porta de casa, deixei o cachorro sair para fazer xixi no poste, peguei a chave do carro e o controle que abre a porta da garagem, deixei o cachorro no poste, abri a porta da garagem, corri até o carro, abri o carro, peguei o cd que estava no painel, fechei o carro, abri o carro de novo para confirmar que havia pego o cd certo, fechei o carro de novo, fechei a porta da garagem, peguei o cachorro e botei pra dentro de casa, deixei a porta de casa aberta (não era pra deixar), fechei a porta de casa e entrei no táxi de volta. Tudo isso em dois minutos.

A volta ainda custou um tanto, e o pessoal que estava no hospital começou a me ligar, perguntando aonde eu tinha ido numa hora daquelas.

- Fui buscar o cd.
– Hã?

Chega logo, chega logo. Vou sair do carro, saí. Despedi-me de meu novo grande amigo e atravessei a avenida à pé, porque era mais rápido do que esperar o carro dar a volta. E lá fui eu correndo por entre os carros parados e fugindo das motos. Entrei no hospital esbaforido, trazendo o cd nas mãos como um estandarte. A corrida só terminou no balcão da recepção, onde havia uma pequena fila para a identificação dos visitantes.

– Eu não sou visita, sou pai de uma criança que vai nascer, que deve estar nascendo…
– Senhor, todos, sem exceção, precisam se identificar.

– O cd chegou, pronto – gritei ao pisar no quarto, para absoluta incompreensão dos presentes. Foi só o tempo de lavar o rosto e o enfermeiro já chegou com a maca. Percebi então que a aventura ao menos serviu para que eu me distraísse, talvez pior teria sido ficar ali com os parentes, compartilhando daquela expectativa coletiva. Entramos no centro cirúrgico, vesti minha roupa esterilizada e já podia reconhecer a voz dos médicos à postos. “A máscara sufoca um pouco ou sou eu que estou nervoso?”, pensei.

– Bruno, você fica sentado aqui.

O parto começou sem muita anunciação. “O importante é respirar, será que eu vou passar mal?”. Mãos dadas, manter a calma, está tudo indo bem. “Vai ser rápido, vocês vão ver”.

– Trouxeram o cd? A hora de colocar é agora.
– Claro, aqui está—admito que tirei-o do bolso com certo orgulho.
– Ok, cadê o som?
– Que som?
– O som, para colocar o cd.
– Que som pra colocar o cd? Ninguém falou de som nenhum, só de cd.
– Não, aqui? Aqui não tem som.
– Aqui não tem som? Por que ninguém me avisou?

Não sei se isso é consenso pra todos que estão lendo, mas já tomei conhecimento de vários partos realizados com música, no entanto NUNCA ouvi falar da necessidade de se levar um aparelho de som para o centro cirúrgico. Como eu poderia imaginar que eles esperavam que eu levasse o meu som, imundo, repleto de bactérias e com a tampinha quebrada para um ambiente completamente esterilizado? Como eu poderia imaginar que eles esperavam que eu levasse o meu ipod com caixinhas à tira colo para o centro cirúrgico?

Não, eu não poderia imaginar. E assim termina esta história em que o final feliz é questionável. Tudo ocorreu muito bem, Vicente nasceu rápido e cheio de saúde, mas sem música. Atendendo a pedidos e sem prestar maiores esclarecimentos, aí vai a lista com as músicas que não foram ouvidas naquele dia:

Lua de São Jorge – Caetano Veloso
O Mundo é um Moinho – Cartola
Conversa de Botas Batidas – Los Hermanos
Cigarettes and Chocolate Milk – Rufus Wainwright
Flores Astrais – Secos e Molhados
Samba De Orly – Chico Buarque
Brincar de Viver – Maria Bethânia
Here Comes The Sun – The Beatles
Pela Luz Dos Olhos Teus – Tom /Vinicius / Toquinho /Miucha
Shiny Happy People – R.E.M.
Amanhã – Guilherme Arantes
I Saw The Light – Todd Rundgren
Modern Nature – Sondre Lerche
All You Need Is Love – The Beatles
Maria, Maria – Milton Nascimento
My Sweet Lord – George Harrison
The More I See You – Chris Montez
Everlasting Love – U2

Música para nascer

sex, 03/10/08
por Bruno Medina |

barriga2.JPGTalvez influenciado pela perspectiva de passar os próximos vinte dias longe de casa, qualquer acontecimento tem me parecido ser capaz de remeter à saudade que já sinto do meu filho. Agora mesmo, antes de começar a escrever, assistir a uma entrevista do Palavra Cantada desencadeou em mim a lembrança dos gritinhos e dos sorrisos generosos distribuídos por Vicente a cada vez que tocam as músicas do grupo.

Desliguei o aparelho sem pensar duas vezes, não tanto pelo receio de ser acometido por uma profunda tristeza, mas sim porque era o mais sensato a fazer, a partir da aparente constatação de que a tela da TV estava suando. Mais tarde descobri que o fenômeno é comum em cidades da região amazônica, como Belém, onde a umidade relativa do ar chega a espantosos 90%.

 

Voltando ao Palavra Cantada (se você não os conhece é porque não tem filhos), este tem sido o som preferido da família durante as trocas de fraldas, o banho, e até na hora de colocar o pequeno para dormir. Mais por iniciativa da mãe do que por minha própria, havia o desejo de que música sempre fizesse parte da vida do Vicente, mesmo ainda dentro da barriga.

 

Agora, tendo pouco mais de três meses, não é difícil perceber como seu humor pode ser afetado pelo que escuta. O gosto que procuramos incentivar desde cedo chegou a testar nosso empenho através de uma situação enfadonha que hoje pretendo dividir com vocês.

 

Antes da data prevista para o parto havia em meu caminho uma longa turnê de shows em Portugal com a Adriana. Por precaução, resolvi partir deixando preparado o cd com as músicas que pretendíamos levar para o centro cirúrgico do hospital, as primeiras que Vicente ouviria quando chegasse a este mundo. O plano era o de que a compilação reunisse faixas escolhidas em comum acordo pelo casal, tarefa que provou ser das mais árduas e que quase resultou em briga.

 

Deveríamos optar simplesmente pelas preferidas de cada um ou pelas que coincidiam o gosto de ambos? As mais simbólicas, as que se relacionaram com algum evento memorável de nossa vida juntos, ou as que melhor se adequavam à ocasião? Ou as que gostaríamos que fizessem parte da vida dele? O conceito de democracia de fato não se aplica muito nestas horas, afinal não era aceitável para nenhum dos dois pensar em fazer concessões. Imagina se o médico puxa o menino e está tocando “I still haven’t found what I’m looking for” do U2?

 

Este não é um exemplo hipotético, foi uma questão real que surgiu. Tenho direito de não querer que o primeiro som a ser ouvido pelo meu filho seja a voz do Bonno Vox, poxa. Numa festa de casamento ainda vai, mas na sala de parto, não sei. Milton Nascimento pode até dar sorte, mas a letra de “Maria, Maria” tem uns versos que soam estranhos em determinadas circunstâncias. Guilherme Arantes é bom, bota aí “Amanhã, será um lindo dia..” tudo à ver. Chico Buarque, tem que ter, mas as letras… só pedrada, procura uma alegre do Chico aí! Beatles, até duas, mas quais?

 

Enfim, acreditem que extremamente complicado decidir uma coisa destas. Horas de discussão foram necessárias para que chegássemos a uma lista de apenas dezoito faixas. Embarquei para Lisboa levando uma cópia do cd; a outra ficou no Rio. Pouco mais de um mês era tempo suficiente para que aquelas músicas escolhidas com tanto esmero se justificassem e nos convencessem. Ao longo da viagem, tanto lá, do outro lado do Atlântico, quanto aqui, aprendemos a amar aquelas canções. Antecipávamos cenas que transbordavam emoção e felicidade embaladas por aquela trilha sonora tão especial, que já fazia parte da história do Vicente mesmo antes dele nascer.

 

Voltei de Portugal e o cd era só o que escutávamos. Ele morava dentro do carro e nos acompanhava para onde quer que fôssemos. De repente, sem muito aviso, chegou o grande dia. Estava voltando de um fim de semana de shows em São Paulo e praticamente só tive tempo de passar em casa para pegar as malas já prontas e seguir para o hospital. Providências tomadas, tudo encaminhado, era só esperar o momento.

 

Ansiedade, apreensão, adrenalina à mil, tudo ao mesmo tempo agora, um dia muito louco. Você vai vivendo cada instante sabendo que nunca mais vai se esquecer daquilo tudo. A enfermeira entra no quarto, faz uma entrevista minuciosa e avisa que vai voltar em breve para nos levar. Frio na barriga, só mais um pouco. Está tudo indo muito bem até agora, pensei. Estaria melhor não fosse pela falta do cd. Quem trouxe o cd?!

 

(continua no próximo post)



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