As verdades absolutas
Está lá no grande Livro da Vida, página 3: “na vida existem dois tipos de verdade: as verdades-verdadeiras e as verdades absolutas”. As verdades-verdadeiras se definem pela conformidade com o real, o factível. Já as verdades absolutas são afirmações consagradas por sua incidência e avalizadas pela sabedoria popular, ou seja, apesar do nome pomposo, quase sempre mentiras.
Há também os que crêem que a verdade não exista, como Nietzsche, para quem esta seria apenas um ponto de vista. No entanto, como a intenção não é complicar, vamos nos ater ao que consta do livro. São exemplos de verdades absolutas máximas como as que fazem referência a paixão de todo brasileiro por samba e futebol, a inaptidão das mulheres ao volante ou o perigo de se misturar manga com leite numa mesma refeição, dentre tantas outras patacoadas.
Afirmações incontestáveis poderiam até ser engraçadas caso não funcionassem como uma espécie de dogma, uma regra inflexível contra a qual não cabe oposição, a menos que se esteja disposto a gastar muito latim. Normalmente aqueles que justificam seu discurso a partir de verdades absolutas agem como se tivessem as criado, isso quando não se baseiam em suas próprias experiências para desqualificar qualquer outro tipo de vivência.
Que o universo dos recém-nascidos é um terreno extremamente fértil para o surgimento de convicções radicais, disso eu já sabia muito antes de visitar a Feira de Bebês e Gestantes. Para dizer a verdade -se é que ela existe- deixei-me levar pela voz dos experientes e me preparei apenas para o pior; estava claro que o nascimento do Vicente seria um rito de passagem para um novo estilo de vida, recheado de estresse, dúvidas e privação de sono, afinal não houve quem dissesse o contrário.
Madrugadas inteiras seriam passadas em claro por conta dos urros que costumam acompanhar as temíveis crises de cólica, ou que ocorrem mesmo sem nenhuma razão aparente. E quando ao raiar do dia o choro finalmente cessasse, seria preciso sublimar o sono para lidar com as roupas sujas, o banho (complicadíssimo), a queda do umbigo e as unhas grandes que, se não aparadas, podem fazer com que o bebê corte o próprio rosto. As necessidades básicas dos pais, tais como ir ao banheiro, se alimentar ou dormir, estariam vinculadas à vontade dele. Sobretudo seria preciso acreditar que a paternidade vale à pena.
Quase dois meses se passaram e a profecia não se cumpriu. Vicente nunca teve uma crise de cólica, dorme a noite toda, exceto quando está mamando, e não chora, a não ser que tenha um bom motivo para tal. Quando o faz, pára em minutos. Adora tomar banho e não se corta com as próprias unhas. As roupas sujas são de fato muitas, mas nada que não se resolva com um pouco de organização e boa vontade.
Às vezes tenho a impressão de que as pessoas se decepcionam quando constatam que pais e filho estão se saindo tão bem juntos. Chego a ficar sem saber o que dizer aos muitos que perguntam sobre as noites mal dormidas. Como esse é o tema central de todas as conversas que desenvolvo ultimamente, quando digo que não tenho tido problemas à noite o assunto fica sem ter para onde seguir e o papo termina ali mesmo.
Já decidi que a partir de agora vou sempre dizer que está tudo um horror e que me sinto como um zumbi, para não contrariar a força da sabedoria popular. E para os hesitantes marinheiros de primeira viagem gostaria de deixar meu testemunho otimista de que não existe verdade absoluta sobre o quanto de trabalho dão os bebês, cada caso é um caso. Para os que insistem em discordar, deixo uma frase de Nelson Rodrigues que também consta do Livro da Vida: “toda unanimidade é burra”.