As verdades absolutas

ter, 29/07/08
por Bruno Medina |

bi.jpgEstá lá no grande Livro da Vida, página 3: “na vida existem dois tipos de verdade: as verdades-verdadeiras e as verdades absolutas”. As verdades-verdadeiras se definem pela conformidade com o real, o factível. Já as verdades absolutas são afirmações consagradas por sua incidência e avalizadas pela sabedoria popular, ou seja, apesar do nome pomposo, quase sempre mentiras.

Há também os que crêem que a verdade não exista, como Nietzsche, para quem esta seria apenas um ponto de vista. No entanto, como a intenção não é complicar, vamos nos ater ao que consta do livro. São exemplos de verdades absolutas máximas como as que fazem referência a paixão de todo brasileiro por samba e futebol, a inaptidão das mulheres ao volante ou o perigo de se misturar manga com leite numa mesma refeição, dentre tantas outras patacoadas.

Afirmações incontestáveis poderiam até ser engraçadas caso não funcionassem como uma espécie de dogma, uma regra inflexível contra a qual não cabe oposição, a menos que se esteja disposto a gastar muito latim. Normalmente aqueles que justificam seu discurso a partir de verdades absolutas agem como se tivessem as criado, isso quando não se baseiam em suas próprias experiências para desqualificar qualquer outro tipo de vivência.

Que o universo dos recém-nascidos é um terreno extremamente fértil para o surgimento de convicções radicais, disso eu já sabia muito antes de visitar a Feira de Bebês e Gestantes. Para dizer a verdade -se é que ela existe- deixei-me levar pela voz dos experientes e me preparei apenas para o pior; estava claro que o nascimento do Vicente seria um rito de passagem para um novo estilo de vida, recheado de estresse, dúvidas e privação de sono, afinal não houve quem dissesse o contrário.

Madrugadas inteiras seriam passadas em claro por conta dos urros que costumam acompanhar as temíveis crises de cólica, ou que ocorrem mesmo sem nenhuma razão aparente. E quando ao raiar do dia o choro finalmente cessasse, seria preciso sublimar o sono para lidar com as roupas sujas, o banho (complicadíssimo), a queda do umbigo e as unhas grandes que, se não aparadas, podem fazer com que o bebê corte o próprio rosto. As necessidades básicas dos pais, tais como ir ao banheiro, se alimentar ou dormir, estariam vinculadas à vontade dele. Sobretudo seria preciso acreditar que a paternidade vale à pena.

Quase dois meses se passaram e a profecia não se cumpriu. Vicente nunca teve uma crise de cólica, dorme a noite toda, exceto quando está mamando, e não chora, a não ser que tenha um bom motivo para tal. Quando o faz, pára em minutos. Adora tomar banho e não se corta com as próprias unhas. As roupas sujas são de fato muitas, mas nada que não se resolva com um pouco de organização e boa vontade.

Às vezes tenho a impressão de que as pessoas se decepcionam quando constatam que pais e filho estão se saindo tão bem juntos. Chego a ficar sem saber o que dizer aos muitos que perguntam sobre as noites mal dormidas. Como esse é o tema central de todas as conversas que desenvolvo ultimamente, quando digo que não tenho tido problemas à noite o assunto fica sem ter para onde seguir e o papo termina ali mesmo.

Já decidi que a partir de agora vou sempre dizer que está tudo um horror e que me sinto como um zumbi, para não contrariar a força da sabedoria popular. E para os hesitantes marinheiros de primeira viagem gostaria de deixar meu testemunho otimista de que não existe verdade absoluta sobre o quanto de trabalho dão os bebês, cada caso é um caso. Para os que insistem em discordar, deixo uma frase de Nelson Rodrigues que também consta do Livro da Vida: “toda unanimidade é burra”.

A miopia que ninguém quer enxergar

sex, 25/07/08
por Bruno Medina |

drummond1.jpgObrigados a conviver com as imposições do crime organizado -e também do desorganizado- tendo a rotina constantemente afetada pela barbárie e pela inoperância do poder público, o carioca há muito acostumou-se a relativizar o absurdo. A violência e a corrupção, eu sei, estão longe de serem mazelas exclusivas desta bela cidade, mas permitam-me chorar pitangas já maduras e reivindicar, por usucapião ou por direito, a propriedade da expressão “aqui o buraco é mais embaixo”.

Em meio a padronização do noticiário policial, recheado de assaltos, assassinatos e ocorrências que comprovam a eficiência do poder paralelo exercido pelo tráfico e pelas milícias (não estou bem certo se o termo é conhecido em todo o país), é provável que quase ninguém tenha dado atenção ou importância a nota de pé de página que registrava a reincidência de um furto.

A vítima em questão era um notável brasileiro já falecido, carioca por opção, que pode se gabar de um recorde, uma triste estatística que envolve a memória de seu valoroso legado. Carlos Drummond de Andrade, ou melhor, a estátua construída em sua homenagem, teve, por cinco vezes apenas neste ano, os óculos roubados.

O monumento esculpido em bronze é singelo como sua obra; ao invés de reproduzido em enormes proporções -como, aliás, faria jus à sua contribuição para nossa literatura- cercado por grades, projetado para adornar o centro de uma praça qualquer, a imagem do poeta foi concebida em tamanho natural, para que estivesse sempre entre os freqüentadores da praia de Copacabana, no exato banco onde gostava de sentar para admirar o entardecer no posto seis.

A questão dos óculos do Drummond já virou motivo de chacota na cidade: em resumo, a prefeitura não consegue evitar que o artefato seja sucessivamente roubado! A peça torna-se vulnerável por ser soldada ao rosto da escultura e, derretida, possui valor de mercado em torno de R$ 3 mil. Parece-me no mínimo inocente esperar que gatunos, acostumados a pilhar o patrimônio público por qualquer trocado, despertem algum tipo de consciência (se é que lhes foi ensinado ter alguma) e deixem em paz o pobre poeta. Quantas vezes os óculos forem substituídos, garanto que serão levados.

A estátua acaba assim perdendo sua função principal, que é a de manter viva a lembrança do homenageado, para se tornar um embaraçoso monumento a incompetência dos órgão responsáveis por sua preservação. Mais do que isso, é outra das incontáveis provas cabais de que a cidade está completamente dominada pelo crime, em todas as instâncias.

Chega a ser até melancólico passar por aquela parte do calçadão e presenciar o Drummond sem seu característico par de óculos, para, em seguida, concluir que nada nem ninguém pode se considerar à salvo. Tomei conhecimento de que um fabricante de lentes de contato (parece piada mas não é) comprometeu-se a cuidar da manutenção da estátua em troca da utilização do espaço para propaganda. De repente a solução proposta pela empresa será dizer que o poeta resolveu aposentar os velhos óculos para aderir as lentes.

Pode ser que o prefeito se orgulhe de conseguir envolver a iniciativa privada numa função que deveria estar sob sua responsabilidade, para mim ainda sim resta a pergunta: como podemos acreditar na redução dos índices de criminalidade se a força policial não consegue conter um simples ato de vandalismo, capaz de desmoralizá-la? Aconteceu no Rio, mas poderia ser em tantas outras cidades brasileiras, ou não?

(crédito da foto-Ricardo Leoni)

Do nada para lugar algum

ter, 22/07/08
por Bruno Medina |

taxi1.jpgNão sei se já mencionei anteriormente o meu hábito de sempre conversar com taxistas. Não importa o horário ou o tamanho do trajeto, se a conversa não surge de forma espontânea eu mesmo me encarrego de puxar o assunto. O curioso é que não sou exatamente uma pessoa expansiva, faladora ou do tipo que se auto-intitula comunicativa, pelo contrário, sou tímido e de poucas palavras, salvo quando sentado no banco de trás de um táxi, é claro.

Uma explicação plausível para esse fenômeno, digamos, de eloqüência seletiva, se justifica a partir da crença de que porteiros e taxistas, por motivos bastante óbvios, são aliados imprescindíveis de cronistas e escritores de qualquer sorte, afinal seria possível citar alguma outra categoria profissional que envolva maior conhecimento da essência humana? Não vai me dizer que você pensou nos psicanalistas…

A favor dos taxistas e de suas invejáveis coleções de histórias está a natureza da relação que desenvolvem com seus clientes; pega-se a pessoa num determinado lugar, leva-se a outro e, provavelmente, motorista e passageiro nunca mais se cruzarão. Os quinze ou trinta minutos de convivência obrigatória são uma ótima oportunidade para ambos testarem pontos de vista polêmicos ou discorrerem sobre interesses específicos, que normalmente não seriam divididos com os amigos.

A principal diferença entre uma seção de terapia e uma corrida de táxi é o preço. A segunda, além de bem mais barata, nos livra da desconfortável obrigação de falar sobre nossos “podres”, isso sem mencionar que, de quebra, acabamos ouvindo uns bem piores do que os nossos. Minha estratégia é introduzir o papo com trânsito, política ou futebol. Normalmente quatro minutos depois já sei de todas as novidades, fofocas e incidentes -inventadas ou não- dos últimos dias.

É incrível pensar que estes profissionais funcionam como uma ponte entre realidades muito distintas, propagando histórias de pessoas que nunca sequer se conhecerão. Vários dos textos postados aqui, inclusive, surgiram depois de uma destas conversas. Claro que certas vezes o tiro saiu pela culatra; já lamentei ter respondido ao bom dia, porque, algumas vezes, este foi o ensejo para monólogos tediosos e intermináveis. É claro, também, que já me senti inclinado a mudar o rumo da prosa, pela certeza de estar conversando com alguém fora de seu juízo perfeito. Nesses casos é melhor concordar com tudo.

Ontem mesmo durante uma corrida até a avenida Presidente Vargas o cara começou falando sobre as eleições municipais e, na altura do mergulhão, já estava com as veias do pescoço saltadas, gritando e cuspindo perdigotos no volante em prol da defesa de sua teoria conspiratória que mesclava corrupção, impunidade e a Guerra do Golfo. Segundo ele é preciso agradecer a invasão do Iraque, pois é graças ao conflito que a cotação do dólar não está em oito reais. Ele repetiu bastante este valor. 

Das vezes em que senti estar perdendo o controle, a que mais me deixou apreensivo foi quando o motorista passou todo o trajeto fazendo afirmações acertadas sobre mim e meus costumes, baseado em técnicas de observação aprendidas na época em que trabalhou como inspetor da polícia. Teve uma outra vez que o sujeito pediu licença para sair do carro e buscar uma encomenda. Estivesse você na minha situação diria o que? “Não permito porque o taxímetro vai continuar rodando e sou eu quem vai pagar por isso”, ou quem sabe “não permito, afinal o senhor pode estar envolvido em alguma atividade ilícita”?

Tudo bem, ossos do ofício. Só perco mesmo a esportiva e a vontade de tagarelar quando estou em outra cidade e percebo que o motorista, assim como eu, não conhece o endereço e, ao invés de ter a decência de admitir ou de perguntar, prefere ficar dando voltas, à espera de que um raio caia sobre o carro e indique o caminho certo. Bom, de certa forma os psicanalistas fazem coisa parecida e ainda escondem o taxímetro.

O fusca, a barriga e os milhões

sex, 18/07/08
por Bruno Medina |

bola.jpgA cada dia considero mais árdua a tarefa de encontrar uma boa razão para permanecer cinco minutos que seja assistindo a um mesmo canal. Na tarde de ontem, no entanto, um daqueles clássicos filmes dos Trapalhões me fez esquecer do controle remoto por um bom tempo. A trama era a mesma de sempre, (mas afinal não era disso mesmo que a gente gostava?) sendo o convidado/participação especial, Pelé, interpretando um repórter esportivo amigo do Didi.

Numa determinada seqüência – provavelmente a que o diretor idealizou meticulosamente para apresentar o ídolo causando impacto à altura de sua importância – o Rei chega “abafando” com seu Fusca conversível cereja, dando aquela característica pinta de galã anos 80, um pouco antes da piadinha em que finge não ser quem é e, em seguida, pisca para a câmera. Imediatamente me veio a mente uma pergunta: caso hoje ainda se fizessem filmes como este, quem seria escalado para desempenhar o papel de supercraque amigo da garotada?

Levanto do sofá e vou para o computador. A notícia da tarde é a milionária transferência de Ronaldinho Gaúcho para o Milan. Ele que andava esquecido no Barcelona, afastado de sua melhor forma e, conseqüentemente, da imprensa esportiva, agora aparece oferecendo seu sorriso para todas as lentes, aparentando alívio por ainda estar no páreo. O futebol é mesmo cruel. A má fase lhe arrancou alguns milhões de dólares no processo de
negociação – nada que vá fazer falta, eu diria – mas ainda sim deve ser um peso tirado das costas saber que está num dos melhores times da Europa, e com boas chances de se recuperar pra ser o destaque da seleção olímpica.

Num box menor o outro Ronaldo também é notícia, por um motivo bem menos nobre do que o xará. Exilado em Ibiza desde o episódio dos travestis e desempregado pela primeira vez em sua vida, o craque de outrora é vítima de chacota mundo afora, por ter se deixado flagrar ostentando uma barriga digna de peladeiro de final de semana. Tive pena dele. Com mais de trinta anos, recuperando-se de outra grave lesão no joelho, não seria exagero dizer que sua carreira profissional está próxima do fim. O futebol é mesmo cruel.

Os “Ronaldos” atingiram o ápice de suas trajetórias numa época em que ser bom de bola é metade do negócio, a outra metade é saber tirar proveito financeiro da própria imagem. A má fase, a noitada na boate, o excesso de peso ou a conturbada vida afetiva são fragmentos determinantes que alimentam uma indústria de factóides ávida por novidades. Nesse novo modelo jogar por uma grande equipe é tão importante quanto se manter afastado de escândalos, afinal os paparazzi atualmente parecem apresentar ameaça maior do que as contusões.

Apesar dos deslizes a aposentadoria de ambos estará garantida pelos contratos de publicidade que assinaram no auge. Não tiveram esta mesma sorte jogadores brilhantes como o próprio Pelé, que foi o maior de todos e ainda sim não faturou nem um décimo do que os dois aí de cima. Para os de sua geração era preciso se contentar com a idolatria dos fãs e uma ponta no filme dos Trapalhões. O futebol é mesmo cruel.

Respondendo a minha própria pergunta, creio que no mundo de hoje simplesmente não caberia um roteiro em que qualquer jogador chegasse “abafando” em algo equivalente a um Fusca cereja. Acho que nem as crianças acreditam que exista um supercraque amigo da garotada, “it’s just business”. É, o futebol é mesmo cruel…

Dias de Suécia

ter, 15/07/08
por Bruno Medina |

bafometro.jpgTenho lido quase tudo que encontro sobre esta nova lei de trânsito, e olha que não é pouca coisa. O assunto, como não poderia deixar de ser, é daqueles que transcendem as esferas habituais, pleiteando o posto de “azeitona da empada” de qualquer debate, discussão ou conversa -furada ou não- puxada nas duas últimas semanas. Mesmo aqueles espaços onde normalmente não se vêem pautas relacionadas ao tema (caso deste blog), sentem-se inclinados a registrar os desdobramento desta mais recente tentativa de evitar que bebuns saiam por aí em seus carros causando acidentes fatais.

Esperei um pouco para me manifestar sobre o polêmico tema porque sabia que uma transformação abrupta aplicada a um costume tão enraizado em nossa cultura -de achar que pequenos delitos nunca terão graves conseqüências- propiciaria a manifestação de um outro, ainda mais característico e muito mais contraditório, que é esta mania do brasileiro de achar que só ele pode resolver tudo com “jeitinho”. Isso sem mencionar que a lei corria (ainda corre?) sério risco de não “pegar”, uma vez que esta possibilidade sempre está presente quando uma resolução afeta verdadeiramente a vida das pessoas.

Há uns bons dez anos inventaram uma história de multar o pedestre que atravessasse o sinal fora da faixa, alguém mais lembra disso além de mim? Na ocasião inclusive testemunhei em Copacabana um rapaz tomando uma canetada na carteira de identidade. Coitado, deve ter sido o único, pois pouco depois a lei foi aposentada. E quem se lembra da obrigatoriedade de carregar kits de primeiros socorros dentro do veículo? Tenho o meu guardado no armário até hoje.

Óbvio que o caso agora é diferente, a nova norma tem efetivamente evitado mortes no trânsito, basta acompanhar as estatísticas. Fica a impressão de que, pela primeira vez, a infração de dirigir embriagado será punida de acordo com a gravidade que representa, como, alias, vem se tornando tendência mundo afora. Concorde você ou não com a tolerância zero para a ingestão de álcool ao volante, é louvável a iniciativa dos órgãos responsáveis, e também a adesão da população, que, por medo de perder a habilitação ou por conscientização tardia, parece estar respeitando a lei.

Nunca antes os donos de botequim atraíram tantos holofotes, afinal são eles os protagonistas desta novela mexicana que parece estar ainda longe do fim. Basta ligar a TV para vê-los chorando as pitangas da queda na clientela, tendo mesas vazias ao fundo. Por outro lado é impressionante o número de soluções criativas que estão surgindo para amenizar o problema; já soube de restaurante que busca o cliente em casa de limusine, de bares que pagam o táxi da volta e outros que oferecem descontos em hotéis para quem decidir tirar um cochilo antes de assumir a direção. A pergunta que não quer calar é: porque não pensaram nisso tudo antes?

Não deixa também de ser engraçado observar a forma como a imprensa tem tratado o assunto. Todo santo dia estão lá nos jornais dois ou três gatos pingados flagrados pelo teste do bafômetro na noite anterior. Muito provavelmente alguns deles devem estar se sentindo injustiçados, estampando as manchetes por causa de uma ou duas cervejas. Enquanto não se chegar a conclusão de qual é o limite seguro de álcool para todos os condutores, este será o preço a ser pago.

Tenho um palpite de que esta lei irá se flexibilizar, para que ninguém seja autuado apenas por ter comido bom-bom de licor. Até lá chegarão as notícias de policiais corrompidos por motoristas inconseqüentes e das falsas blitz realizados com bafômetros irregulares. Só então o Brasil deixará de viver seus dias de Suécia, lugar onde se respeitam as leis e os bebuns ainda são as estrelas das páginas policiais. Ao final, não poderia deixar de perguntar: a nova lei é apropriada ou exagerada? 

O encontro com o Carrasco

sex, 11/07/08
por Bruno Medina |

carrasco.jpgEsta semana, enquanto aguardava por atendimento num consultório médico, acometido pelo tédio profundo do confinamento de uma anti-sala claustrofóbica, me vi naquela triste situação em que beber um copo d´água pode se transformar numa grande aventura. Depois de ter bebido três deles, e de ter ido ao banheiro duas vezes -uma delas apenas para ler os rótulos dos produtos que estavam sobre a pia- finalmente resolvi encarar o cesto de revistas como uma possibilidade de entretenimento. 

É impressionante como apenas cinqüenta minutos de chá de cadeira separam um leitor exigente de um voraz consumidor de qualquer publicação impressa. Existe até uma piada (olha elas aí de novo) que afirma que a diferença entre um carrasco e um médico é a idade das revistas disponíveis em sua sala de espera. No meu caso era possível escolher entre publicações semanais de 2006, uma revista voltada para a terceira idade -sem data de edição- e uma outra, daquelas entituladas com nomes próprios femininos, de julho de 2008. Díficil escolher, optei pela mais recente. 

A verdade é que já tinha reparado a Cléo Pires sorridente, no topo do cesto, me convidando para uma folheada descompromissada. Resisti o quanto pude, não por preconceito com o gênero, mas sim porque na capa, logo abaixo de seu rosto, havia a chamada para a seguinte matéria, em letras garrafais: “horóscopo da beleza-a maquiagem certa para o seu signo”. Confesso que fiquei com medo de abrir a revista e até reconsiderei me inteirar do mundo dos sexagenários. Que diabos de matéria é essa? Quem lê esse troço? Quem acredita em maquiagem ideal pra cada signo? E não é que os caras conseguiram justificar a existência de um determinado tipo de maquiagem para cada um dos signos? E eu me considerava criativo… 

Quanto mais números de páginas avançavam, maior era o desconforto causado pela impressão de estar penetrando em território proíbido. Também em nada ajudou o olhar de reprovação de uma senhora sentada em frente. Parecia uma bastiã do universo feminino, me condenando por profanar o espaço sagrado dos segredinhos da beleza feminina, dos conselhos íntimos, das dúvidas inconfessáveis, dos complexos, dos medos. Todos os temas carinhosamente compliados por experientes editoras e eu ali, xeretando, absorto na falta de sensibilidade comum aos homens, pondo em xeque uma relação de quarenta e sete anos de cumplicidade entre a revista e suas leitoras, ainda mais numa sala de espera. 

Vai ver a senhora só ficou com inveja porque eu peguei a revista antes dela. Ou não. Eu quase podia ouvi-la dizer “quem é você para achar alguma coisa sobre a revista? Ela não foi escrita para você, muito menos para ser avaliada numa conjuntura tão desfavorável quanto a que estamos submetidos”. Tá bom, uma segunda chance, a matéria seguinte: “casamento sexy de A a Z”, um dicionário érotico formado por verbetes indispensáveis para apimentar a relação. Letra P, “pênis- seja amiga dele”. Letra X, “xibiu”, (se você não sabe o que significa cuidado com quem for perguntar), Letra Z, “ziguezigue- indica brincadeira de criança, traquinagens e outras travessuras. Nenhum casamento sério pode dispensar ziguezigue”. 

Aí a revista me perdeu. Meu lado femino qualificou a publicação como um ultraje a inteligência das mulheres. Não quis mais saber dos cuidados necessários para evitar uma “roubada” nos relacionamentos que começam pela internet, nem procurar aquela sessão de cartas em que as leitoras contam casos escabrosos protegidas por pseudónimos. Voltei à capa, indignado, para descobrir quanto se paga por uma revista destas. Era um exemplar de assinante. Cléo Pires, francamente… você aí sorrindo, não deve ter lido as baboseiras que eu li.Sorri para a senhora e entreguei a revista em suas mãos. “Farte-se”, pensei. Dois minutos e o médico me chamou, o pesadelo havia acabado. Entrei no consultório aliviado, e convicto de que a maioria das revistas masculinas deve ser bem pior do que a que eu acabara de ler. 

Conta aquela sem graça

ter, 08/07/08
por Bruno Medina |

aritoledo2.jpgEu não gosto de piada. Pronto, falei. Admito, no entanto, que antes de registrar publicamente esta polêmica e, porque não dizer, previsível declaração, ponderei em busca das palavras mais apropriadas. Contra a decisão de externar esta minha antiga opinião pesava a já reconhecida e crescente fama de rabugento, citada com freqüência por alguns leitores. Parece então que, mais uma vez, irei fornecer argumentos aos detratores,
confirmando assim a vocação deste blog como sítio ideal para meus acertos de conta com tudo e com todos.

Cabe mencionar que não tenho nem nunca tive a intenção de ofender os que curtem uma boa anedota, afinal se incluem neste grupo amigos e parentes queridos. Também não se trata de ser contra ou a favor das piadas propriamente ditas, mas sim uma questão de gosto, ou, se preferirem, de mau gosto. Pode parecer contraditório, mas me considero um entusiasta de “causos” e estórias engraçadas, muitas vezes até parte de mim a iniciativa
de trazer humor a uma determinada conversa, mas nunca o faço através de uma
piada.

A chamada “piada de salão” feneceu em algum lugar dos anos 80, provavelmente
desgastada pela ação predatória de figuras como Ari Toledo e seus seguidores. A tradição de se contar piadas no rádio ou na TV se difundiu com tamanha popularidade que o filão se exauriu por completo. Trocando em miúdos a fonte secou, a graça acabou, e hoje é difícil ouvir uma piada que não seja a reprodução literal ou parcial daquelas mesmas de sempre. Portugueses, bichinhas, papagaios, loiras, vovozinhas surdas e garotinhos desbocados já há muito são merecedores de aposentadoria compulsória, mas é claro que tem sempre um engraçadinho tentando inventar uma forma de recrutá-los para novas
aventuras.

Socialmente, a piada funciona mais ou menos como um seqüestro; numa festa o piadista se aproxima de uma roda, interrompe o assunto e rapta para si a atenção dos presentes. Caso alguém já conheça a anedota ­o que quase sempre acontece – por educação se manterá calado, aturando aquela velha ladainha a fim de permitir que o pobre infeliz faça sua graça. Quando a piada é longa pior, pois, não bastasse ouvi-la,  ainda é preciso permanecer com aquele semi-sorriso estampado no rosto, encorajando o piadista a seguir até o final.

O fim finalmente chega, e lá está o sujeito com os olhos arregalados, naquela comovente situação, implorando por uma migalha de sorriso que seja. E então todos riem, de fingimento ou de nervoso, tentando evitar o inevitável constrangimento. É mais ou menos aquele mesmo sentimento que nos faz mudar de canal quando, num programa de auditório, alguém da platéia faz um comentário embaraçoso e todo mundo grita e vaia.

Reparem que rir de uma piada sem graça pode passar de ato generoso a martírio, dependendo apenas de quanto o piadista se sinta estimulado a contar outra. Tenho um amigo que ao menor sinal de “vocês conhecem aquela do…” evita aborrecimentos posteriores avisando, de antemão, que não irá rir. Eu, infelizmente, ainda não atingi esse nível de evolução, portanto ainda sofro as conseqüências.

Durante a faculdade um outro amigo resolveu estampar a frase “conta aquela sem graça” numa blusa, e com isso se livrou ­ de forma bastante diplomática, inclusive- de ouvir poucas e boas. Neste caso o engraçadão evitava se expor à toa. Não alimento esperança alguma de que este texto me livre das piadas, posso até cogitar um efeito colateral, de pessoas querendo me contar anedotas apenas por saberem que não gosto delas. E o que mais pode se esperar de um bom piadista?

Meu mundo e nada mais

sex, 04/07/08
por Bruno Medina |

internet.jpgProvalmente eu não saberia responder quando foi a última vez em que faltou luz. No Rio os apagões são bastante raros, ocorrem, talvez, a cada quatro ou cinco anos e, mesmo assim, apenas por alguns minutos. Durante a minha infância lembro da aventura que era quando o bairro inteiro se apagava de supetão. Um segundo antes brincando no quarto ou vendo TV na sala, de repente, o inevitável breu. Era possível ouvir o desligar simultâneo de tudo, a rotina engolida pela noite e aquele silêncio, característico de só quando falta luz.

Supondo o trajeto, caminhava até a cozinha e colocava a mão na gaveta onde eu já sabia que ficavam as velas. Para encontrar a caixa de fósforo era preciso tatear em torno do fogão, e, aos poucos, cada cômodo ia ganhando sua luz. Os rostos dos familiares assumiam contornos dignos de personagens de filme de terror, iluminados pela claridade oscilante própria das almas penadas. Munido da pequena chama que cortava os espaços da casa, seguia até a janela e de lá observava os apartamentos vizinhos, especulando como cada uma daquelas pessoas lidava com a situação.

Nas ruas apenas o perambular hesitante de alguns faróis ao passar pelos cruzamentos sem sinalização. Ouviam-se os barulhos de quase nunca, e o silêncio aterrador que vinha das ruas de Copacabana, sempre tão movimentadas. Este era o momento de meus pais contarem que quando tinham minha idade havia racionamento de energia no país, apagões diários programados para o horário de pico do consumo. A maioria das pessoas procurava estar em casa, e principalmente, não entrar em elevadores durante o período às escuras. Por falta absoluta de opções, as famílias se reuniam para conversar.

Ontem houve um apagão, não aqui, mas em São Paulo, não de luz, mas de internet. Creio que não haja registro anterior deste acontecimento, pelo menos não desta dimensão, e por isso mesmo é difícil mensurar o caos que deve ter acometido a cidade, quase vinte e quatro horas desconectada. Mesmo eu me surpreendi ao saber que serviços fundamentais como registros de boletins de ocorrência em delegacias, transações bancárias e processamento de dados da rede de sistemas do governo ficaram indisponíveis durante tanto tempo. O presidente da Telefônica alegou que “não havia nada a ser feito” para que a quebra no fornecimento do serviço fosse evitada. Difícil acreditar.

De qualquer maneira o episódio serviu para provar como atualmente somos dependentes e ainda sim despreparados para viver sem internet. De imediato surge a piada que os paulistas não sabiam o que acontecia porque não tinham como procurar notícias na internet. Não pude deixar de imaginar como seria caso houvesse um racionamento de conexão, aos moldes dos de energia ocorridos no final da década de cinqüenta.

O que seria de nós, privados de doses diárias de navegação, sem Orkut, Msn, Myspace, emails e etc. justo no momento do dia em que mais desejamos estar em frente ao computador? E o que fazer ao invés? Falar ao telefone? Assistir TV? Ler um livro? Conversar com a família? Pode ser que para alguém com nove ou dez anos de idade, alguém que já nasceu conectado, ontem tenha sido possível experimentar algo semelhante ao que eu sentia quando era criança e faltava luz: o desafio de subverter, mesmo que por alguns instantes, a lógica do mundo. 

“Você sabe com quem está falando?”

ter, 01/07/08
por Bruno Medina |

entradaproibida.jpgRefeito do trauma causado por uma convocação do TRE recebida pelo correio, e enfim de volta à caixa de correspondências, não pude deixar de me espantar com a quantidade de cartas comerciais que se acumularam num curto intervalo de tempo. De proposta para assinatura de revista a cartão de crédito, passando por chave de carro zero e aquelas indesejáveis orações de corrente, é revoltante constatar como somos frequentemente bombardeados pela oferta de produtos e serviços que sequer nos interessam!

A esmagadora maioria dessas correspondências segue a já tradicional linha de fazer o destinatário se sentir super-especial, como se aquela cartinha do banco com a assinatura do gerente impressa oferecesse vantagens apenas para um seletíssimo grupo, no qual cada um de nós estaria incluído. Parece manjado, soa estúpido, mas deve funcionar, né? A meu ver a insistência nesta estratégia de comunicação se deve ao fato dela atingir em cheio um anseio cada vez mais evidente entre os brasileiros: o desejo de se diferenciar dos demais.

Não, isso não é uma tendência social, tampouco um daqueles comportamentos associáveis a uma determinada época. Ascender à categoria vip (cuja tradução literal do inglês é “pessoas muito importantes”) é uma ambição que remonta as origens de nossa identidade nacional, ou pelo menos desde quando o Brasil foi dividido em capitanias hereditárias.

Achou que eu fui longe? Nem tanto se pensar que boa parte das mazelas que se perpetuaram em nossa sociedade, relativas ao abuso de poder e a confusão entre as esferas pública e privada, poderiam facilmente ser associadas a este histórico episódio. Isso explica, por exemplo, porque um dos parentescos mais cobiçados é ser filho ou amigo do dono. De qualquer coisa.

Graças aos avanços da economia e a dita melhoria na distribuição de renda se deu um curioso fenômeno de popularização da categoria, e agora até os shoppings possuem seu estacionamento vip, ideal para aqueles que não admitem perder tempo algum procurando vagas. Nos eventos as três letrinhas mágicas estão presentes em quase tudo: fila vip, área vip, pulserinha vip, curral vip e etc. É tanta possibilidade de ser vip que já foi preciso, claro, criar uma nova categoria, o super-vip.

Quando o Los Hermanos fazia shows aqui no Rio, bastava um boato sobre as datas de apresentação para o telefone de nosso escritório começar a tocar. Era uma infinidade de amigos/conhecidos ou mesmo toda sorte de caras-de-pau ligando para pedir convites. Pagar? Nem pensar! E não precisa conhecer pessoalmente os integrantes da banda não, uma ou duas aparições do dito cujo na TV já costumam encorajar os telefonemas. Diante da negativa, há sempre o risco do sujeito do outro lado da linha disparar o temido discurso: “você sabe com quem está falando?”.

Acomodar os convidados na platéia exige sempre enorme diplomacia para não ferir egos, afinal a sensação de ser vip depende muito de quem está ao lado. É como um jogo de “Resta 1”, cada mesa é classificada a partir de sua proximidade do palco, e os convidados distribuídos de acordo com o quão vip são, até todos os lugares acabarem. Quem sobrar, sobrou. Certa vez, num desses shows, me colocaram na mesma mesa que a Marjorie Estiano; fiquei pensando qual teria sido o raciocínio para formar a improvável dupla. Bom, se bem que isso foi antes dela ser protagonista da novela das oito.

Lembro-me, também, de uma festa pós-VMB em que havia uma tal pulseira branca que era o passaporte para o “Olimpo Sagrado”. Quando finalmente consegui a minha, percebi que a área super-vip era o lugar mais chato da festa: uma tenda cheia de publicitários bebendo uísque. É isso aí, ser vip é a coisa menos vip que existe, mas, mesmo assim, todo mundo quer ser.



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