Livin’ la vida eleitoral?

sex, 27/06/08
por Bruno Medina |

urna1.jpgPrimeiro veio o nascimento do Vicente, trazendo consigo a abrupta necessidade de se adequar a um novo estilo de vida que incluí outros horários, visitas assíduas e telefonemas freqüentes. Depois, ainda no olho deste furacão, em pleno período probatório, a exaustiva viagem bate e volta para a Argentina, a estréia em bimotores e agora isso… olha, às vezes tenho quase certeza de que certas coisas só acontecem em minha vida para que eu posso vir aqui descrevê-las.

Parece que o destino, caprichosamente, se encarrega sempre de me pautar, talvez para se certificar de que eu nunca seja acometido pela temida falta de inspiração. Seja por essa razão, por sorte, por azar ou por coincidência, ontem recebi uma carta do Tribunal Regional Eleitoral que me convocava para desempenhar a função de supervisor de local de votação nas próximas eleições.

Meu primeiro impulso foi picar a carta em pedaços bem pequenos e engoli-la, ali mesmo, na caixa de correio, evitando assim que houvesse qualquer evidência, qualquer prova física da intimação (pausa de contenção). Prometi a mim mesmo que tentaria chegar ao final deste texto sem escrever nada que me comprometesse ou se configurasse como crime eleitoral, espero que consiga.

(continuando) Foi, no entanto, inevitável lamentar a equivocada decisão de transferir o título de eleitor para uma seção mais próxima da minha atual residência; é sabido que operações desse tipo catapultam o indivíduo do anonimato assegurado pela homogênea base de milhares de eleitores direto para a tela do terminal de algum funcionário do TRE. O seu nome ali, piscando no monitor, afinal pra que se dar ao trabalho de escolher outro?

Fico aqui tentando imaginar quais seriam as obrigações de um supervisor de local de votação. Será que a função implica checar constantemente a temperatura da sala, verificar se há papel higiênico nos banheiros, trocar a garrafa térmica do café e organizar a fila de eleitores? Ou será que vou ser um daqueles caras que digitam os números de inscrição de todos os votantes, auxiliam os idosos a se entenderem com as urnas eletrônicas e, ao final, ainda ficam responsáveis por totalizar os votos da seção, sob risco de serem processados caso cometam algum erro?

Nada disso. Pela sugestão implícita na denominação do cargo, os supervisores de local de votação devem ser incumbidos da delicada tarefa de conter os ânimos entre os fiscais dos partidos, bem como denunciar à policia algum militante flagrado fazendo boca de urna. Deve ser minha função, também, pedir para aqueles engraçadinhos tirarem a camisa com o emblema do partido ao adentrarem o local de votação. Quantas dúvidas! O pior é que o portal do TRE não faz nenhuma menção específica ao meu cargo, deve ser o aspone do
aspone dentro da hierarquia eleitoral. Ah, se ao menos eu fosse presidente de mesa…

O devaneio cívico descrito teve curta duração, mais ou menos o tempo de sentar em frente ao computador e conferir minha atribulada agenda, para, em seguida, constatar que tenho compromissos profissionais conflitantes com o período solicitado pela pátria, um deles, inclusive, no exterior. Este fato me reserva o direito de requisitar a dispensa das obrigações eleitorais, em carta já endereçada ao Excelentíssimo Juiz. Caberá a ele decidir o desfecho dessa história. Não se dêem ao trabalho de me avisar, tenho plena consciência de que estas convocações costumam ser reincidentes, pelo menos até eles perceberem que escolheram um cara que só trabalha nos finais de semana.

Livin’ la vida loca

ter, 24/06/08
por Bruno Medina |

vicente.jpgUfa, parei. Agora faz exatamente uma semana de quando sentei pela última vez nesta cadeira para escrever alguma coisa. Olhando para trás, fica a impressão de ter vivido um único e longo dia. A começar pelas visitas incessantes no hospital e a sensação de estar no palco do extinto programa ‘Porta da Esperança’, visto que a porta do quarto abria sempre nos piores momentos, trazendo a visita certa na hora errada e, em algumas ocasiões, a visita errada na hora errada.
 
É, no mínimo, de se estranhar este hábito estabelecido por nossa sociedade, de receberem visitas, mãe e filho, logo após o parto. Seria comparável a alguém que se submete a uma operação de apendicite e resolve dar uma festa no dia seguinte. Considerando que pouquíssimo antes o pequeno Vicente estava dentro de um útero, me pareceu um erro submete-lo à conversa animada dos parentes e amigos, aos flashes de câmeras fotográficas e àquela turma que insistia em pega-lo no colo.
 
E ainda tem gente que confunde visita a maternidade com ‘talk show’; sentam-se na poltroninha e ficam, horas à fio, entrevistando os pais, que mal tiverem chance de curtir o momento tão especial. Quando a nova família finalmente chega em casa o telefone não pára, toca de dez em dez minutos, porque, afinal, todos querem saber das novidades. Estou pensando em disponibilizar um boletim eletrônico, tipo aqueles do trânsito, para atender tanta demanda por informação:
 
9:14-Vicente permanece dormindo.
9:15- Idem.
9:16- Virou-se para o lado direito.
 
Acredito que nos últimos trinta dias devo ter dormido apenas umas quatro noites em casa e -como já se tornou habitual- para incrementar as emoções do fim de semana, na sexta-feira fiz uma viagem estilo ‘bate e volta’ pra Rosário, na Argentina. Resumindo bem a história, a volta para o Rio envolveu uma carona num Mustang cor de sangue 73 caindo aos pedaços e minha primeira vez num avião bimotor, daqueles que parecem dois ventiladores de repartição pública.
 
O teco-teco soava como um cortador de grama gigante e ganhava os céus devagar, enquanto a cabine se transformava em gelo, e eu só rezando para dar tudo certo e chegar a tempo da primeira vacina. Quanto às noites mal dormidas, o choro constante, as fraldas sujas, disso não posso reclamar, Vicente é um bebê maravilhoso. Por enquanto, dorme na hora certa, mama bastante e chora pouco, um anjo.
 
Gostaria de aproveitar o ensejo para agradecer as mais de 200 mensagens carinhosas que recebi através do post anterior. Vou guardar para quando Vicente puder entende-las. Agradeço também às visitas e os telefonemas, afinal todos são pessoas queridas que nos querem muito bem. Mas, por favor, não liguem para comentar o texto, tá?

Bem-vindo

ter, 17/06/08
por Bruno Medina |

Antes de entrar no centro cirúrgico, enquanto me vestia com aquelas roupas estranhas, era inevitável pensar que faltavam minutos apenas para que minha vida mudasse, para sempre. A assepsia da sala de parto simplesmente não remete em nada ao lugar de onde brotam vidas, mas, antes de encontrar Vicente, ou qualquer outro bebê, é preciso lidar com esse universo tão pouco convidativo. Em cima daquela cadeira de dentista tudo o que tenho de mais precioso. Apesar dos esforços da equipe é impossível se sentir tranquilo
numa situação como esta.

Felizmente foi tudo muito rápido e confuso; de repente estava ele, do lado de fora, e o momento pelo qual tanto esperávamos e temíamos havia passado. Seu choro reverberou nas paredes, encheu o lugar de vida, e aquilo fez todo o sentido. Naquelas pequeninas dimensões já é possível identificar traços familiares, é incrível, e confesso que a ficha demora a cair.

É engraçado se ver em meio a outros pais, mais ou menos de nossa mesma idade, e pensar que meus pais tinham também essa idade quando eu nasci. Para mim ainda sou um menino, como os outros são, cheio de dúvidas e com opinião formada sobre quase tudo. Para Vicente serei um homem, a referência mais segura que ele provavelmente terá na vida, e é isso que dá medo.

E quando esse medo se dá, todo os outros medos passam a não ter importância. Nos últimos meses aprendi a não esperar nada do amanhã, a compreender que o roteiro que pensamos seguir é algo que inventamos para facilitar o caminho. Vicente agora inicia o seu próprio, e um dia saberá exatamente o que senti ontem, e o que meu pai sentiu, quase trinta anos atrás. Ontem nenhum dos três sabia bem como agir. Espero poder ensiná-lo que isso é o melhor da vida. Ainda bem.

Bem-vindo ao mundo, filho.

Adestrando borboletas

sex, 13/06/08
por Bruno Medina |

Deve haver alguma frase, provérbio ou ditado -do qual não me lembro agora- capaz de servir como uma luva para quando se deseja explicar o conflito de emoções provocado por uma estréia. Creio que logo depois das viagens de montanha-russa, esta seja a principal responsável pelo tal “frio na barriga”, aquela estranha sensação de que algumas borboletas batem asas, tentando fugir de dentro do nosso estômago.

Mesmo artistas experientes, acostumados a sucessivamente submeterem suas criações ao imponderável julgamento alheio, admitem que entrar no palco pela primeira vez é sempre igual, independente de quantas vezes se tenha feito isso. A questão fundamental, inerente a qualquer uma das tantas estréias as quais nos submetemos pela vida, é a apreensão gerada pelo confronto de nossas expectativas com a realidade.

Milan Kundera, no belíssimo “Insustentável leveza do ser” escreveu algo –realmente minha memória não anda em dia com as citações- a respeito da vida ser semelhante a uma peça de teatro cujo ator principal é atirado em cena sem a mais vaga idéia do que o espera. Suas falas são de improviso e a única preparação a que tem direito é o ato em si. Seguindo essa linha de raciocínio, o medo da estréia seria decorrente de uma descabida comparação entre o que já houve (conosco e com os outros) e o que está por vir. Nosso erro reside em querermos sempre a prova final quando, na verdade, a vida estaria muito mais para rascunho.

Amanhã o show da Adriana estréia em São Paulo, será a primeira apresentação que faremos dessa turnê no Brasil. Embora tenhamos tocado aquelas músicas em diversas ocasiões, não me parece que ninguém da banda esteja convencido de que haverá alguma relação entre a noite de hoje e os shows que fizemos na Argentina e em Portugal. As expectativas são enormes, claro. Estamos ansiosos por submeter o público brasileiro a colcha de meticulosos retalhos bordados ao custo de muita dedicação e horas de ensaio.

Esta estréia tem para mim um sabor ainda mais especial porque antecede uma outra, talvez a mais importante de todas que já enfrentei; Vicente está prestes a nascer, pode ser a qualquer momento, só espero que o autor dessa história não resolva me pregar uma peça justo agora! Os vinte e um dias passados na Europa já me foram aventura suficiente, afinal ninguém deseja estar tão longe de casa numa época destas. No dia em que cheguei fiz uma mala com as coisas que levarei para maternidade e deixei ao pé da cama. E agora mais três dias em São Paulo…

Quantas e quantas vezes repassei mentalmente cada um dos detalhes do grande dia, tentando antever o que fazer e o que sentir na hora para a qual viemos nos preparando ao longo dos últimos nove meses. Para a estréia de hoje tenho a cumplicidade dos companheiros de banda, o palco familiar, meus bons e velhos teclados de sempre e um roteiro que determina o curso do show. Para a outra estréia, a da maternidade, vou de mãos vazias. Em ambos os casos, ao invés de lamentar a falta de certezas, o melhor seria aprender a adestrar as borboletas.

O fim

ter, 10/06/08
por Bruno Medina |

medina10_06.jpg(Essa história começou dois posts abaixo)

– É o velho, o da recepção do hotel! Ei, ô mentiroso, eu estou aqui! ­, gritou Miguel sacudindo os braços.

– Shhh! Tá louco? Como você ousa falar assim como o conselheiro da ilha? Senta aí ou vai acabar arrumando confusão!

No centro do lago um dos integrantes fez soar uma sineta, e a reverberação estridente daquele som encerrou o burburinho. Deu-se início uma espécie de culto, conduzido por Geremias, o velho:

– Muito bem, meus amigos, passados trinta e dois anos cá estamos novamente. As últimas décadas, como vocês bem sabem, foram um período conturbado e repleto de desafios para nossa estimada ilha. Nossos princípios e nossa fé foram postos à prova como nunca! Mas, apesar das dificuldades, resistimos aos pesquisadores, aos cientistas, a invasão do turismo predatório e ao equivocado discurso daqueles que acreditam que o futuro de seus filhos
depende da revelação de nosso segredo. Não, meus amigos, o mundo não saberá compreender nossa cultura, nem preservar nossos valores. O único interesse dessas pessoas será transformar nossa ilha num balneário místico, uma espécie de “parque de diversões sagrado”, e isso, com certeza, representaria a aniquilação de nossas tradições.

– Agora sim as coisas estão começando a fazer algum sentido. Que papo maluco, ­ disse Miguel, conversando consigo mesmo. Geremias prosseguiu:

– Mas hoje, meus amigos, é um dia a ser celebrado. Prova de que a ilha soube esperar com sabedoria pelo momento de reafirmar sua força através deste “Chamado”. Nosso lago está iluminado pela lava incandescente do vulcão, e isso significa que um longo período de dificuldades chegou ao fim.

A profecia determina que, aqui entre nós, se encontra o próximo conselheiro, aquele que irá me substituir e conduzir-nos a uma época de prosperidade. Que venha nosso novo líder!

A platéia que ouvia as palavras do conselheiro aplaudiu efusivamente. Cantavam e se abraçavam exultantes, como numa noite de Ano Novo. Inês beijou Miguel no rosto e este permaneceu inerte, denunciando o constrangimento pela reação inesperada da moça, bem como por sua absoluta ignorância em relação ao que ainda estava por vir. Geremias segurava um artefato de cobre que possuía uma cúpula de vidro em forma de bule. Agachou-se à beira do lago e deixou que um pouco de lava entrasse no orifício do compartimento. Todos, de súbito, se calaram.

O líquido incandescente borbulhava dentro do objeto e a fumaça branca e espessa escorria pelo bico, fazendo um sinuoso desenho no ar. Os presentes deram-se as mãos e passaram a bater com os pés no chão num intervalo ritmado cada vez mais curto. A terra tremia em torno do lago e o ruído grave e frenético proveniente das batidas culminou numa espécie de transe coletivo.

As águas pareciam ter se agitado ainda mais quando Geremias colocou um pouco de lava dentro de um cálice e levantou-o, como quem propõem um brinde.

– Ahhhh! Tá queimando!! ­, um grito, vindo da multidão, interrompeu a cerimônia. ­ Tá queimando, me queimei, alguém me ajuda! ­, dizia Miguel enquanto, desesperado, tentava arrancar a camisa.

– Meu Deus, é você! O sinal nas costas, é você! ­ disse Inês, num misto de espanto e alegria. À essa altura todas as atenções já estavam voltadas para os dois.

– É ele, é ele sim, o sinal nas costas!

– Me deixem em paz, saiam daqui, me larguem!, ­ gritava Miguel tentando se esquivar dos que tentavam rasgar sua roupa, ­ Inês, fala para eles irem embora!

– Não posso, Miguel, eles esperaram muito tempo por você.

– Quem esperou por mim?

– Você tem o sinal da ilha nas costas, justo como dizia a profecia. Miguel, você é o novo conselheiro!

Na tentativa de se desvencilhar das dezenas de pessoas que caminhavam em sua direção, Miguel foi sendo empurrado para a beira do lago. O sinal ardia nas costas, mais ainda quando as pessoas o tocavam. Sua atrapalhada rota de fuga teve fim nos braços de Geremias. Atordoado e ainda mais cheio de dúvidas do que quando chegou ao vale, Miguel deixou-se conduzir até a plataforma:

– Eu sabia que você viria! ­ disse Geremias, transparecendo emoção.

– O que vocês querem de mim?

– O que queremos de você? Queremos que assuma seu lugar no conselho! Você é o herdeiro da ilha!

– Herdeiro da ilha? Vocês todos são uns loucos! Eu sou um vendedor de eletrodomésticos e exijo que me deixem ir embora desse ritual maluco! Eu não sou herdeiro de nada.

– Miguel, todas essas pessoas aguardaram mais de trinta anos por você. A marca da ilha está nas suas costas, e não no braço. Você é diferente, é o escolhido! A profecia diz que esse sinal apontaria nosso novo líder. Agora você precisa ser preparado para assumir o poder, e fazer com que se cumpra o destino.

– Não, isso não pode ser verdade, isso é um pesadelo. Eu tenho que sair daqui, ­ disse Miguel, iniciando uma corrida apavorada que só terminou na porta do hotel. O dia estava amanhecendo e seu avião só decolaria no início da tarde. Durante as horas que antecederam o embarque, permaneceu trancado no quarto, espreitando a rua, temendo que a multidão viesse buscá-lo.

Sentiu-se aliviado apenas quando dentro da aeronave, sentado ao lado de um casal de canadenses sexagenários que não se cansavam de admirar as próprias fotos. Uma delas era do plácido lago de águas verde-esmeralda, que em nada lembrava o cenário ou os acontecimentos que se deram naquela madrugada. Por um instante tornou a sentir medo, preferindo ater os olhos aos tópicos da palestra que faria na sede da empresa. Em Nova York, Miguel recebeu um diploma, tirou fotos com a diretoria e, ao retornar para casa, foi promovido a supervisor da divisão de multiprocessadores industriais. Nunca comentou nada do que vivera na ilha, pensando ser esta a melhor maneira de evitar que sua curiosidade um dia o traísse.

(Essa história foi inspirada pela associação de minha recente passagem pelo arquipélago dos Açores com a leitura de “O livro das igrejas abandonadas”, de Tonino Guerra.)

O chamado

qui, 05/06/08
por Bruno Medina |

bruno.jpg

(esta história começou no post anterior)

O comentário do velho soou-lhe jocoso e só serviu para reforçar a desconfiança de que aquilo era uma zombaria. Miguel decidiu revidar:

– Não sei se isso é uma piada para o senhor ou para qualquer outra pessoa que more aqui, mas devo dizer que hoje acordei acreditando que esta maldita ilha estava sendo aniquilada por um ciclone, um terremoto ou sei lá o quê, e não graça nenhuma nisso! Daqui a algumas horas terei uma reunião e, em seguida, dou seqüência a uma importante viagem de negócios. Seria, então, pedir muito que algum funcionário do hotel se manifestasse oficialmente sobre este lamentável episódio para que eu possa então continuar a dormir em paz?

O velho levantou da poltrona, apagou o charuto na areia branca do cinzeiro e encarou-o com um sorriso indecifrável:

– Desculpe não poder ajudá-lo. Desejo uma boa reunião e uma excelente viagem. Respondeu estendendo a mão para um cumprimento. Ao levantar o braço, deixou à mostra o punho direito, até então encoberto pela manga do paletó. Miguel não podia crer em seus olhos; no braço daquele velho uma mancha idêntica a que ele próprio ostentava nas costas. A estranha coincidência o deixou paralisado. Caiu sentado na poltrona, tentando concatenar o pensamento, e assim permitiu que o velho sumisse em meio a multidão antes de conseguir lhe dizer algo que fizesse sentido.

Quando recobrou a razão, Miguel já caminhava entre os demais. Podia pressentir que a jornada terminaria por lhe trazer algum indício em relação a tantas perguntas sem resposta. Ao seu lado, senhoras levavam velas acesas e terços enrolados nos dedos das mãos, um homem carregava o filho que teimava em dormir em seu colo, outro conduzia a família numa charrete. Os mais jovens corriam ou zuniam em motocicletas, conversavam despreocupadamente, alheios ao curioso ritual sugerido pela conjunção de todos aqueles fatores.

Miguel tinha como companhia apenas um enorme fardo de questões indissolúveis, que a cada passo se tornava mais e mais pesado. Qualquer hipótese parecia insuficiente, rasa, mesmo para convencer alguém como ele – desprovido de qualquer crença religiosa ou mística – de que tudo aquilo que experimentava possuía uma explicação científica. Repassava de maneira meticulosa cada uma das palavras ditas pelo velho; considerava a possibilidade de uma charada, uma adivinhação qualquer que não tenha se dado conta. Tamanha concentração o impediu de reparar a aproximação de uma moça:

– Olá, você não é da ilha, certo?

– Não, mas você, pelo visto, é. A propósito, sou Miguel.

– Eu sou Inês, muito prazer. Imagino que você não esteja entendendo nada…

– Não mesmo! Fui acordado no hotel pelas badaladas do sino, conheci um velho com um sinal na pele idêntico ao que tenho e agora estou caminhando, nem sei para onde, a troco de tentar entender esta maluquice toda.

– O sinal que você tem é igual a este aqui? – perguntou a moça mostrando-lhe a mesma marca no pulso.

– Você também tem um?!

– Sim, muita gente por aqui tem. Dizem que somos os descendentes ancestrais da ilha, e acho que você, de alguma forma, também deve pertencer a este grupo.

– Mas como se não tenho nenhuma relação com esta ilha? Para ser sincero sequer sabia da existência deste lugar, e muito menos tenho conhecimento de que alguém da minha família um dia já tenha passado por aqui. Está sentindo alguma coisa? O chão está tremendo! – concluiu, apavorado.

– Não se preocupe, este tremor é o fluxo de água das nascentes vulcânicas convergindo para o lago. Está vendo estes pontos de fumaça ao longo da estrada? São pequenas erupções que costumam se seguir a ventania.

– Sim, a ventania! Mas para onde todos nós estamos caminhando?

– Para o Vale do Fogo, é lá que acontecerá o chamado.

– “O chamado”?! O que é “o chamado”?

– Eu particularmente nunca assisti a um, o último foi há pouco mais de trinta anos.A expectativa de todos os habitantes daqui era de que outro aconteceria no último ano, mas, como não ocorreu, houve quem passasse a acreditar que era sinal de mau agouro. Para alguns a ilha estaria próxima do fim… Pronto, chegamos.

– Isto é simplesmente inacreditável! – exclamou Miguel, estupefato.

Estavam no ponto mais alto de uma cadeia de montanhas de pedras vulcânicas. O desenho formava uma espécie de vale que circundava um lago de água incandescente. Bolhas gigantescas irrompiam na superfície, e o intenso brilho alaranjado iluminava a madrugada como um imenso lampião. Milhares de pessoas já estavam acomodadas como se estivessem numa arena a espera de um concerto de rock. No centro do lago, sobre uma estrutura de madeira, um grupo de homens vestidos de túnicas brancas.

– Miguel, vamos nos sentar, o conselho já está reunido.

– Todos de pé, o conselheiro chefe vai iniciar a cerimônia – disse um dos homens.

Apesar da distância foi possível reconhecer que se tratava do velho que conhecera na recepção do hotel.

(na próxima semana, o desfecho desta história)

O segredo do Vale do Fogo

ter, 03/06/08
por Bruno Medina |

brunomedina030620081.jpg

Dada a topografia local era de se estranhar aquele diminuto ponto branco – que mais tarde revelou-se uma igreja – visto através da janela do avião, ao nível do mar, e não no cume de uma das montanhas daquele vale vulcânico, que certamente deveria ser a principal atração turística da região. Assim concluiu Miguel, nada interessado em desvendar as belezas naturais do pequenino e arejado arquipélago encravado no meio do Oceano Atlântico.

A imprevista escala só havia lhe sido revelada pelo chefe dois dias antes da partida rumo ao curso de aperfeiçoamento em vendas, a ser realizado em Nova York, na sede da empresa de multiprocessadores domésticos para a qual trabalhava. A viagem era uma recompensa pelo desempenho acima da meta no último trimestre, no entanto, antes de colher os elogios em Manhattan, um último desafio: convencer um grupo de investidores a se tornarem representantes comerciais de sua marca naquela pitoresca ilha.

O vento descabelava e roubava um pouco da dignidade de cada um dos passageiros que desembarcavam na pista, e ele pensou que, felizmente, em menos de vinte e quatro horas estaria de volta àquele aeroporto. Apesar da reunião, sobraria tempo suficiente para lidar com a inevitável ansiedade e repassar uma dezena de vezes os principais tópicos da apresentação que faria para os diretores da multinacional. Dentro do táxi os olhos se alternavam entre o sol alaranjado caindo por trás das montanhas e o relatório recheado de informações-chave para o sucesso da palestra que selaria seu futuro profissional.

Por mais que o motorista falastrão se empenhasse, não conseguiria fazer com que Miguel dispensasse atenção alguma às propriedades rurais demarcadas por rochas vulcânicas, onde o gado cor de caramelo e ovelhas polpudas pastavam. Lagoas, grutas, quedas d’água e florestas sequer foram notadas, ficaram para trás, sem ao menos levá-lo a pensar em sacar a câmera fotográfica da mochila.

Encarou o elevador do hotel carregando a própria mala, tendo preferido, como em tantas outras viagens de negócios, dispensar, ainda no corredor, todos os cartões e folhetos que lhe foram entregues pela recepcionista. Pensou em descer até o restaurante, mas a leitura compenetrada determinou que a cesta de frutos sobre o frigobar bastaria. Já passava da meia-noite quando se deu conta de que em seu quarto havia uma varanda. Abriu a porta de vidro e por pouco não foi sugado pelo vento que havia se intensificado ao cair da noite e, àquela hora, já deitava a copa das árvores.

O colarinho desabotoado era a porta de entrada para uma corrente que passava por seu peito e estufava a camisa como um balão à deriva. O vento quente assobiava alto, ao passo que galhos se partiam e voavam rente ao asfalto da enseada vazia. Na linha do horizonte, as luzes de pelo menos uma dezena de cargueiros seguiam pelo que deveria ser uma movimentada rota comercial que passava ao largo da ilha.

No quebra-mar era possível enxergar, embora com pouca nitidez, lanchas, veleiros e pequenas embarcações turísticas a se tocarem perigosamente, chacoalhados pela força da tempestade que desaguaria a qualquer instante. O dia seguinte seria longo e o sono contribuiu para que desistisse de acompanhar o desfecho da cena. Jogou-se na cama ainda vestido, mas não sem antes programar o despertador do telefone para as primeiras horas da manhã.

A madrugada seguia conforme o esperado até que o badalar insistente de um sino de igreja o fez, num salto, sentar-se na cama. O coração veio à boca. Ainda confuso, olhou o relógio sem entender que acontecimento poderia justificar tamanho alvoroço. Levantou-se cambaleante para abrir a cortina, imaginando que a tempestade tivesse algo a ver com aquele histérico alerta sonoro. Curiosamente não havia vento ou sinal de chuva, mas sim um incompreensível movimento na avenida beira-mar, há pouco deserta.

Alguns barcos preparavam-se para zarpar, enquanto policiais apitavam e corriam numa tentativa vã de conter os ânimos da crescente aglomeração. Todos pareciam estar caminhando numa mesma direção, e logo o bater de portas e a gritaria em seu andar o puseram também a ganhar as escadas, em busca de segurança ou de uma explicação plausível. Na recepção, turistas amontoavam-se sobre o balcão, os funcionários, desesperados, pediam calma. Miguel caminhou em direção a um maleiro, que apenas disse “aconteceu de novo” e, em seguida, abandonou seu quepe e seu posto para se juntar à multidão em marcha.

Em meio ao pandemônio, uma única pessoa parecia não estar em pânico. Sentado numa poltrona, no fundo do salão, calmamente apreciando um charuto, um senhor de idade avançada observava a tudo, impassível:

– Com licença, o senhor poderia me explicar o que está acontecendo?

– Depende…- disse o homem, sem desviar o olhar da brasa.

– Depende de quê?

– Depende se o senhor é um homem de fé.

– Não – respondeu laconicamente Miguel, imaginando qual seria o propósito da pergunta.

– Então a minha resposta é: não, eu não posso explicar.

– Por quê??

Antes de responder, o velho soltou uma densa baforada e só então se virou para Miguel.

– Porque dificilmente o senhor entenderia e, nesses casos, o melhor é mesmo ver pra crer.

– Ver o quê? Há alguma coisa para ser vista? Para onde estão indo todas essas pessoas?

O velho cortou a conversa com uma longa risada, que emendou numa tosse convulsiva. E continuou: “Perguntas, quantas perguntas! Por que o senhor não se junta a eles?”. Apontou a bengala na direção da rua.“Quem sabe não me explica o que eu em tantos anos ainda não consegui entender”.

(esta história continua no próximo post)



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