A vida não é filme
A polêmica envolvendo as – hoje consideradas polêmicas imagens e falas de John Lennon inevitavelmente levanta uma outra questão, que atinge sem piedade todos produtos culturais a que temos acesso. O que nossos olhares contemporâneos perderam e ganharam a partir desta incansável cultura da mídia e da imagem? Qual é o saldo? Ou ainda, por que será que tratamos com tanto estranhamento o fato de imagens de um astro terem sido relegadas ao anonimato por longas décadas a despeito de terem sido registradas por uma câmera de vídeo? Por que nos tempos atuais isso é exceção e não regra?
Dada a sua presença tão insistente – e ao mesmo tempo vulgar, comum -, soa até redundante questionar como tem sido nossa convivência com as câmeras (de vídeo, de celular, fotográficas etc). De uma década para a outra a diferença entre tornar-se ou não famoso passou a ser, com freqüência, determinada pelo posicionamento de uma câmera. Assimilamos que elas estão por toda parte, sim. Mas suas lentes ganharam uma ambigüidade sem igual: uns as encaram como potencialmente ameaçadoras. Afinal, nenhuma intimidade está a salvo das câmeras diminutas e lentes de longo alcance. Outros têm nas câmeras a única possibilidade de escaparem da “prisão do anonimato”. O que virá depois disso?
Let it be ou Let it bleed
O ano de 1970 é singular no que se refere a imagens que rendem discussões acaloradas. Em meados daquele ano foi lançado Let it be , o quinto filme feito pelos Beatles, com imagens capturadas no ano anterior nas gravações do que viria a ser o último álbum do quarteto. Quando foi lançado John, Paul, Ringo e George já não dividiam mais os mesmos palcos e “Let it be”, o filme, foi considerado o registro imagético do fim da banda.Se algum supersticioso quisesse lançar mão de uma teoria arriscada associando a expressão “let it…” a mau agouro, teria não só este caso, mas o do excepcional “Gimme shelter”, que documentou a turnê americana de 1969 dos Rolling Stones, dirigido por Albert e David Maysles, e por Charlotte Zwerin. Os irmãos Maysles, coincidência ou não, já haviam filmado os Beatles alguns anos antes, e lançaram “Gimme shelter” – cujo nome foi inspirado numa das faixas do igualmente excepcional LP dos Stones “Let it bleed” – exatamente no mesmo ano que “Let it be” se tornava público.
A turnê de Mick Jagger teve um desfecho trágico, em que as câmeras, como hoje é difícil crer, não tiveram nenhuma interferência. O show realizado no autódromo Altamont, na Califórnia, transformou-se em cena de guerrilha depois que integrantes dos Hell’s Angels, ironicamente contratados para garantir a segurança espancaram fãs numa seqüência de violência sem igual que culminou em morte.
A câmera neste episódio, tal como ideologicamente foi pensado pelo cinema direto, conseguiu flagrar displicentemente e de maneira desapercebida o desenrolar das ações de barbárie. O cenário não se fez, ou se desfez em razão de sua existência.
Hoje, ao contrário, é impossível distinguir se a câmera capta uma atuação ou se a atuação só acontece em função da câmera, tantos são os escândalos que envolvem os “artistas” que povoam os youtubes da vida. Perdemos a espontaneidade? Em meio a tantas questões ainda sem respostas resta chamar atenção para a saída no mínimo inusitada que encontraram os gangsta rappers, fazendo pastiche da própria violência exaltada em suas letras, rimando-a entusiasticamente com suas glamourosas limusines, ao lado de não menos glamourosas mulheres, e ostentando buquês de dólares por boulevards da América. Personagens de si mesmos?