De perto ninguém é normal
Independente de onde você more tenho certeza de que aí, perto da sua casa, existe um personagem que é onipresente: o(a) maluco(a) do bairro. Aquela figura que através de sua maneira bastante singular de lidar com os vizinhos é a responsável pela dose certa de surrealismo que falta no cotidiano. Grande parte dos moradores prefere ignorá-los, talvez por medo de um contato que os exponha ao ridículo, e, dessa forma, não enxergam a importância de se ter um maluco por perto.
Quando deixei de morar em Copacabana logo percebi que seria difícil encontrar outro lugar que conjugasse amostragem tão rica de tipos urbanos. Acredito até que o bairro seja uma espécie de celeiro mundial da categoria, e que só em Nova York haja concorrência à altura. O máximo que consigo agora nas minhas cercanias é vez ou outra esbarrar num cara que pede um copo dágua em todos os estabelecimentos comerciais que vê pela frente, do banco à lavanderia. Pelo que fiquei sabendo, ele começa cedo e segue um roteiro pré-estabelecido até chegar ao final de seu perímetro; o ofício é parecido com o de um carteiro, só que em vez de entregar malotes, ele pede água.
Agora fiquei pensando que deve haver também uma visita estratégica ao banheiro, tantos são os copos bebidos. Certa vez, almoçando num restaurante, o vi tomar dois copos seguidos. Quando se arriscou a pedir o terceiro, o funcionário avisou que a água havia acabado; ele retrucou dizendo que servia da bica, mas nada feito, um terceiro copo seria a gota d´água. Antes de sair, me perguntou se eu sabia de um show que Marisa Monte faria em Porto Alegre. Naturalmente respondi que não, ele acrescentou que gostava muito de ouvir rádio e partiu, a sede era mais forte.
Assim como o gordo e o magro, e o arroz com feijão, o maluco do bairro e seu rádio são uma dupla indissociável. Não se trata de coincidência porque, afinal de contas, é muito fácil entender a predileção de alguém que não bata muita bem por uma caixinha que, quando ligada, conversa com você, o que, no caso deles, nem sempre deve ocorrer com a freqüência desejada. O melhor exemplo dessa relação simbiótica atende pelo nome de Marquinho e habita a rua Barata Ribeiro, entre República do Peru e Paula Freitas.
É um homem bem alto, que, em algumas ocasiões, veste terno e dança. Caso um dia você esteja passando pela área e vir um cara com um rádio colado na orelha fazendo moonwalker (aquela caminhada pra trás do Michael Jackson) na faixa de pedestres não é pegadinha nem filmagem de videoclipe, é o Marquinho. Ele não esconde de ninguém a predileção por Roberto Carlos, mas, mesmo assim, recebe dos moradores fitas-cassete gravadas com os mais diversos gêneros, só para variar. Meu amigo Kassin o presenteou com as músicas de sua banda +2, pena não termos descoberto ainda se o repertório agradou. Na internet Marquinho é figurinha fácil e suas exibições já rendem vídeos no YouTube, blogs e comunidades no Orkut. Numa delas tomei conhecimento de que ele anda batendo com baguetes nos ônibus durante a madrugada. Deve estar ensaiando uma nova coreografia.
Ainda em Copacabana, duas quadras adiante, está Dona Maria. Ela é demais! Uma senhorinha estilo Tia Anastácia cuja área de atuação é a esquina da delegacia, um espaço de uns dez metros quadrados que cuida como se fosse sua casa. Estende roupa, varre a calçada, e ai de quem jogar papel no chão. É bronca na certa. Anos atrás, quando eu esperava para atravessar a rua, ela pediu que eu chegasse para o lado e passou com a vassoura por cima dos meus pés. Como é que não percebi que estava atrapalhando a limpeza?!
Todos os casos que lembrei acima são de figuras muito queridas em seus bairros. Desconsiderando eventuais alterações comportamentais são sujeitos extremamente pacíficos, perfeitamente integrados e muito populares, chegando a assumir o status de lenda urbana. Esse provavelmente é o caso do Luizão da Tapeçaria Fernandes, que, segundo alguns, é o verdadeiro autor dos padrões de estampa dos tapetes da loja sob cuja marquise se abriga. Em seu conhecido e misterioso caderninho, estariam registradas as provas de sua genialidade explorada indiscriminadamente.
Marquinho (cuja foto ilustra este post), apesar de não ter se envolvido em nenhuma história mirabolante, ficou tão famoso que levou a turma de uma comunidade no Orkut a incentivar um romance entre ele e uma tal de Rosemary do Lido. Tenho minhas dúvidas quanto à viabilidade do casal. Mesmo que haja algum futuro envolvimento, os malucos, com o perdão da palavra, dificilmente se toleram. Além do mais, a carreira solo costuma render mais louros.
Sobre essa nítida aproximação entre a loucura e a genialidade, vale conhecer os belos trabalhos de Arthur Bispo do Rosário e a história de Estamira, narrada no documentário homônimo de Marcos Prado.