UMA “PROVOCAÇÃO” DE GABEIRA CONTRA UM TABU DA ESQUERDA : POR QUE É QUE NINGUÉM É CAPAZ DE PARTICIPAR DE UMA MANIFESTAÇÃO EM HOMENAGEM A UM POLICIAL MORTO EM SERVIÇO ?
O repórter-que-vos-fala gravou uma longa entrevista com o ex-guerrilheiro Fernando Gabeira. O regime foi de esforço concentrado: seis horas quase sem interrupção. O depoimento serviu como balanço da trajetória de uma geração que, entre erros monumentais e acertos indiscutíveis, tentou mudar o Brasil. Ponto. Parágrafo.
Um pequeno esclarecimento à praça: não tenho qualquer vinculação política ou partidária com Fernando Gabeira. Meu interesse na gravação do depoimento que terminou virando livro (“DOSSIÊ GABEIRA : O FILME QUE NUNCA FOI FEITO”) foi puramente jornalístico. Sou do Partido dos Perguntadores do Brasil. That´s all.
O blog já teve a chance de tratar de uma das revelações feitas por Fernando Gabeira na entrevista: a participação do ator Carlos Vareza na operação para disfarçar guerrilheiros que tinham sequestrado o embaixador.
A certa altura do depoimento publicado,na íntegra, no “DOSSIÊ GABEIRA”, o ex-guerrilheiro lança uma “provocação” : por que, até hoje, ninguém se mostra disposto a participar de uma manifestação a favor de um policial morto em serviço, por exemplo ? Quem vai transformar em tema de denúncia a indiscutível opressão e o domínio territorial exercidos por criminosos contra populações das grandes cidades ?
Eis uma pergunta e uma resposta do longo depoimento:
GMN: Em Diário da Salvação do Mundo, você fez uma espécie de profissão de fé otimista: “Entre falar das misérias do presente e do potencial do futuro, talvez seja melhor optar por este último, localizar os pontos mais positivos do cotidiano, projetá-los para a frente, compreender que, por pior que seja a vida, o desejo de mudá-la significa a introdução de um elemento subjetivo novo, cuja simples existência é um dado de felicidade num vale de lágrimas”. Quais são os “pontos mais positivos do cotidiano” que Gabeira identifica no Brasil de hoje, quarenta anos anos depois de 68?
Fernando Gabeira: “O primeiro ponto é o aprofundamento da democracia que, hoje, no Brasil, é muito mais sólida do que no passado. É mais sólida do que em países vizinhos. Demos um grande passo, como se estivéssemos coroando um caminho de duzentos anos em busca da democracia”.
“A justiça social sempre foi um grande desejo. O Brasil é um país que vive, ainda, com uma grande disparidade de rendas e de recursos. Mas é uma disparidade que nos últimos anos foi combatida – no governo de Fernando Henrique e, mais acentuadamente, no governo Lula”.
“A luta sobre direitos humanos é permanente. O trabalho de direitos humanos no Brasil quer proteger o indivíduo contra a violência do Estado, como, por exemplo, no caso da menina que foi deixada numa cela no Pará ao lado de presos comuns. Eis um caso típico de direitos humanos desrespeitados pelo Estado”.
“Ao longo desse período, no entanto, formou-se um crime organizado que exerce domínio territorial sobre parte das cidades e pratica uma grande opressão sobre os moradores. Não tivemos a capacidade de incluir esta questão na agenda dos direitos humanos !”
“Vem daí a grande dúvida da sociedade sobre a nossa sinceridade: “Vocês só trabalham quando se trata de um indivíduo atingido pelo Estado ? Por que não trabalham quando se trata de um indivíduo atingido pelo crime organizado ?” É uma lacuna que terá que ser respondida de alguma forma”.
O ex-guerrilheiro quer saber por que ainda hoje não há a “mínima possibilidade” de fazer campanha contra a prisão de intelectuais em Cuba, por exemplo
“Há resistência, por exemplo, na hora de aderir a uma manifestação pela morte de um policial que tenha perdido a vida em serviço. É algo que não existe hoje, ainda, no movimento de direitos humanos. Mas o movimento cresceria se pudesse se reaproximar da sociedade”.
“O que a sociedade diz é claro. É o que ela diz historicamente para a esquerda: “Direitos humanos existem dos dois lados!”. A esquerda é hábil em discutir direitos humanos quando se trata de um desrespeito cometido por um país capitalista, mas, quando se trata de um desrespeito em um país socialista, o silêncio baixa”.
“Quando houve o caso da prisão de setenta e tantos intelectuais em Cuba, tentei fazer uma campanha aqui. A repercussão era mínima: não havia nenhuma possibilidade de criar um verdadeiro movimento de solidariedade àqueles intelectuais” .
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PS: Pausa para uma divagação jornalística. A trajetória acidentada de Fernando Gabeira desde os tempos da luta armada contra o regime militar é jornalisticamente interessante. Promessa: se um dia eu achar que uma história tão atribulada quanto a de um jornalista que resolveu participar da guerrilha contra o regime militar não é jornalisticamente interessante, prometo que terei a “clarividência” de guardar a viola, apagar a luz do meu palco mambembe e ir plantar pitanga em algum sítio da zona rural de Santa Maria da Boa Vista. Se todo jornalista burocrata fizesse ao planeta o imenso favor de abandonar imediatamente a profissão para ir plantar pitanga num sítio remoto, a imprensa seria dez,vinte, cem vezes mais interessante. Mas, não. Nossa imprensa é “previsível, empolada, chata – meu Deus, como é chata”, para repetir as palavras de São Paulo Francis. Faz parte do folclore jornalístico : desde o tempo dos dinossauros, as redações sempre estiveram povoadas de jornalisticidas, os imbatíveis assassinos do jornalismo, gente especializada em tornar cinzento, burocrático e entediante tudo o que poderia ser vívido, interessante e envolvente. Lástima, lástima, lástima. Fraude, fraude, fraude. Fim da divagação).