Ghiggia: “Somente três pessoas silenciaram o Maracanã: o Papa, Frank Sinatra e eu” ( o “carrasco” uruguaio diz que não pode ouvir a narração do gol histórico que marcou. A mulher não deixa )

dom, 03/11/13
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

A Globonews reexibe, neste sábado, dia nove, às seis e meia da noite, sem intervalos, nosso documentário DOSSIÊ 50: COMÍCIO A FAVOR DOS NÁUFRAGOS – uma chance rara de ouvir a palavra de todos os onze jogadores brasileiros que disputaram, no gramado do Maracanã, no dia 16 de julho de 1950, o jogo mais dramático da história da seleção brasileira: a decisão da Copa do Mundo, contra o Uruguai, diante da maior plateia até hoje reunida num estádio.  Durante toda a vida, eles carregaram o estigma da derrota. É hora de anistiá-los!  A íntegra das entrevistas dos jogadores pode ser lida no livro DOSSIÊ 50 – que acaba de ganhar uma nova edição: em papel, pela Maquinária Editora (  já nas principais livrarias )  e em formato digital, pela Editora E-Galáxia ( https://goo.gl/gdcul7 ). Aqui, um trecho da entrevista com o “carrasco” uruguaio Ghiggia, autor do gol da vitória do Uruguai:

Ghiggia exibe, em casa, a foto do gol histórico que marcou: emocionado quando ouve a narração ( Foto: Geneton Moraes Neto )

 

O ex-ponta-direita Alcides Edgardo Ghiggia avança. Faz um óbvio esforço para se movimentar, mas não desiste: vai em frente.

Depois de um minuto, consegue vencer a distância que separa o quarto e a sala. Diante de uma cadeira, pode finalmente se livrar do andador que o auxiliava na caminhada.

Ghiggia estava no quarto fazendo, com uma enfermeira, exercícios de fisioterapia. Veio para a sala para gravar a entrevista para a Globonews – nesta quarta-feira nublada de fevereiro de 2013 em Las Piedras, perto de Montevidéu.

Dos vinte e dois jogadores que entraram em campo no Maracanã no domingo, 16 de julho de 1950, o “carrasco” Ghiggia é o único ainda vivo, às vésperas da Copa de 2014. Escapou por pouco de engrossar as estatísticas das vítimas de acidentes automobilísticos no Uruguai.

O caminhão veio da direita. Pegou o carro de Ghiggia num trevo na altura do quilômetro 12 da rota 5, perto de Las Piedras. Aos 85 anos, Ghiggia dirigia o carro (o herói uruguaio nasceu três dias antes do Natal de 1926, em Montevidéu). Pode dizer, sem exagero, que nasceu de novo no dia 13 de junho de 2012, ao sair vivo dos destroços do carro.

Passou as primeiras semanas depois do acidente em estado de coma induzido. Respirava com ajuda de aparelhos. Quebrou a perna, o braço, a cabeça. O joelho foi despedaçado. Os pulmões sofreram uma infiltração. Os jornais preparavam os obituários, mas Ghiggia sobreviveu, para contar a história. A perna atingida foi a direita – a que Ghiggia um dia usou para estufar a rede brasileira.

O campeão de 50 não resiste. Enquanto caminha amparado por um andador, comete uma pequena ironia sobre o desastre brasileiro: “Vou estar bem para o Maracanã, em 2014…”. Logo depois, no entanto, não esconde uma ponta de desolação: “Vinte e tantos anos jogando… Nunca me machuquei. E agora…” Deixa a frase incompleta.

Liberado pelos médicos, o personagem principal do “Maracanazo” voltou para a casa de dois quartos – alugada –, onde vive com a mulher, Beatriz, quatro décadas mais jovem, numa rua chamada Pilar Cabrera, em Las Piedras. Beatriz é uma ex-aluna da autoescola em que Ghiggia trabalhava. Quando frequentava as aulas de direção, não sabia que estava diante de um campeão mundial. O instrutor e a aluna terminaram se apaixonando. Ghiggia tinha, então, 69 anos de idade. Estava viúvo. Dizia que, se fosse se casar de novo, teria de ser com uma mulher mais jovem – que tivesse disposição para zelar por ele. É o que Beatriz passou a fazer, com toda dedicação.

Ghiggia, aparentemente, não dá um passo sem consultar Beatriz: pede a ela água, comenta um telefonema que recebeu, troca olhares cúmplices durante a entrevista, como se procurasse aprovação para o que estava dizendo.

Sob todo e qualquer critério, Ghiggia vive modestamente. Recebe ajuda de uma empresa jornalística uruguaia para pagar o aluguel. A casa fica numa espécie de vila, separada da rua por um corredor estreito. Ghiggia começou a construir uma casa nova – igualmente modesta – mas, parou, por falta de dinheiro. Fazia planos, aos 86 anos, em 2013: queria recomeçar logo a construção, para, finalmente, poder se instalar no novo endereço – em companhia de Beatriz, é claro. Não deixa de ser comovente ver um homem de 86 anos fazer, com a mulher, planos para um futuro não tão próximo.

O que é que os dirigentes uruguaios disseram aos jogadores antes do jogo?

Ghiggia: “Houve três dirigentes que, um dia antes do jogo, no sábado à tarde, falaram com os jogadores mais antigos, mais experientes – Obdúlio Varela, Máspoli e Gambetta. Disseram que já tínhamos cumprido o prometido. Tínhamos nos comportado bem no campo. Não criamos nenhum problema. Se o Brasil fizesse quatro gols contra nós, deveríamos nos conformar. Um dia depois, no domingo, estes dirigentes uruguaios regressaram ao Uruguai. Nem ficaram para ver o jogo”.

O senhor sonhou alguma vez com o Maracanã, depois de 1950?

Ghiggia: “Já sonhei várias vezes. Porque a gente sonha com algo que parece ser incrível. Meus sonhos, então, sempre tiveram o Maracanã como personagem”.

Qual foi o impacto que o silêncio da torcida teve sobre o senhor, ainda durante a partida?

Ghiggia: “O silêncio causou um impacto muito grande, porque eu achava que a torcida brasileira iria encorajar a seleção, para que o Brasil pudesse empatar. Mas o que a torcida fez foi um silêncio enorme. Isso me causou um impacto muito grande. Somente três pessoas silenciaram o Maracanã: o Papa, Frank Sinatra e eu. Isso foi o que aconteceu”.

Quantas vezes o senhor já ouviu a narração do gol que o senhor fez no Maracanã, em 1950?

Ghiggia: “Poucas vezes, porque minha mulher não deixa. Quando escuto a gravação, fico emocionado… Por essa razão, ela não deixa”.

Qual é a lembrança mais forte que o senhor guardou da tristeza dos brasileiros?

Ghiggia: ”A maior tristeza que tive foi ver que, enquanto os jogadores do Brasil saíram de campo chorando, os torcedores, na arquibancada, estavam chorando também. Aquilo teve um impacto muito forte”.

Como é que o dia 16 de julho de 1950 terminou para Ghiggia?

Ghiggia: “Quando chegamos ao hotel, jantamos. Depois, procuramos o tesoureiro, para pedirmos dinheiro. Mas não o encontramos! Fizemos, então, uma vaquinha entre os jogadores. Conseguimos juntar um dinheiro para comprar sanduíches e cervejas. Fomos para um quarto do hotel, para festejar. O dia terminou bem”.

O que é que aconteceu com os jogadores do Uruguai logo depois do jogo?

Ghiggia: “Nós saímos já tarde do estádio para o hotel. Jantamos e comemoramos mas não quisemos sair, na verdade, porque não sabíamos qual seria a reação da torcida brasileira. Para evitar problemas, ficamos no hotel. Quando afinal saímos, fomos bem recebidos. Éramos reconhecidos por causa do uniforme. Todos nos cumprimentavam. Isso foi uma linda surpresa para nós”.

É verdade que, quando se encontrava com jogadores brasileiros, você evitava falar de futebol?

Ghiggia: “Nós falávamos de tudo – menos de futebol. Por quê? Por uma questão de respeito a eles”.



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