Entrevista com Evandro Carlos de Andrade – 3 (Ou: Pequeno roteiro de cenas “inconfessáveis” ocorridas na redação de um jornal

dom, 26/06/11
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

 O noticiário anda árido ? A atriz não disse nada de aproveitável na entrevista ? Que se crie uma Milícia de Proteção aos Pombos para comover os leitores. Ou acrescente-se à entrevista da atriz uma frase bem-humorada que ela poderia até ter dito ao repórter – mas não disse. O jornalista iniciante Evandro Carlos de Andrade foi “testemunha ocular” de invenções cometidas na redação de um jornal importante, o Diário Carioca.

O DOSSIÊ GERAL publica um novo trecho da entrevista (inédita) que o locutor-que-vos-fala fez com Evandro Carlos de Andrade, jornalista que se notabilizou como comandante de redações ( ver posts anteriores). Faz exatamente dez anos que morreu, aos sessenta e nove anos de idade, vítima de uma doença de nome esquisito: Policitemia Vera. Quando saiu de cena, comandava a Central Globo de Jornalismo.

Logo no início da carreira, nos anos cinquenta, teve a chance de frequentar a redação do jornal que seria laboratório de uma revolução estilística na imprensa brasileira:  o Diário Carioca implantou a objetividade no texto jornalístico, até então marcado por academicismos, floreios, imprecisões. O editor Pompeu de Souza trouxe para o jornal o conceito americano de lead. Uma notícia deveria responder, já nos primeiros parágrafos, às seguintes perguntas básicas: “ Quem ?  O quê ? Quando ?  Onde ? Por quê ?”.

Mas….o jornal que entrou para a história da imprensa brasileira moderna por ter instaurado o reino da objetividade também cometia seus pecadilhos na busca pela atenção do leitor… 

Diz Evandro: 

“Assim que me apresentei ao jornal, conheci o chefe de reportagem Luís Paulistano, famoso criador da Milícia de Proteção aos Pombos da Candelária – uma invenção pura. Um fotógrafo tinha chegado à redação com a seguinte notícia : um gavião estava comendo os pombos da Candelária. Paulistano então deu a ordem : “Evandro, vá ver esse negócio.” Lá fomos nós – eu e o fotógrafo, Orlando. Tivemos de subir a cúpula da Igreja, aquela coisa imunda. Quando chegamos lá em cima, encontramos um diabo de um gavião. Orlando fez uma fotografia péssima – que teve que ser retocadíssima para que se pudesse ver do que se tratava. O Diário Carioca publicou a primeira matéria. Mas, nos dias seguintes, Paulistano resolveu inventar, porque queria manter o assunto vivo. Todo dia, ele escrevia sobre o gavião que estaria atacando os pombos – o que era pura ficção. Paulistano chegou a criar uma Milícia de Proteção aos Pombos da Candelária – a MPPC. Fez a sigla. Disse o seguinte: empresários da praça Mauá estão preocupados com os pombos. Tudo mentira, mentira, mentira, mas o assunto virou um ícone na imprensa do Rio. É inacreditável – mas as coisas aconteciam assim”.

A saga fictícia do gavião exterminador de pombos no centro do Rio de Janeiro não foi a única história “inconfessável” que Evandro Carlos de Andrade testemunhou na redação do Diário Carioca. Ruth Ellis, mãe de dois filhos, assassina confessa do amante, entrou para a crônica policial inglesa como a última mulher a ser condenada à morte no país – numa época em que a pena capital era o enforcamento. Os carrascos da prisão de Holloway , em Londres, cumpriram a sentença da justiça no dia 13 de julho de 1955. Ruth Ellis morreu sem saber que, num longínquo país da América do Sul, foi personagem de uma escandalosa fraude jornalística, na primeira página de um dos jornais da então capital federal – o Diário Carioca.

A testemunha Evandro Carlos de Andrade revela :

“Um dia, encantado com um texto que anunciava para o dia seguinte o primeiro enforcamento de mulher depois de décadas, Pompeu de Sousa quis publicá-lo acompanhado da fotografia da condenada. Não havia fotos. Pompeu mandou buscar no arquivo a pasta de fotos de pin-up girls, escolheu a mais bonita – de maiô e saltos altos- e publicou-a de cima a baixo na primeira página, como se fosse da mulher que seria enforcada horas depois. Otávio Malta, indignado, protestou na coluna da “Última Hora” em que fazia a crítica dos jornais, mas Pompeu, enquanto ria da reclamação, justificou-se : “Em jornalismo, não se pode ser acadêmico”.  Nunca me esqueci da frase de Pompeu – “em jornalismo,não se pode ser acadêmico” – mas devo dizer que a máxima não me serviu de lição porque nunca achei certo o que se fez ali. Sempre considerei aquilo engraçado, mas incorreto”.

“Pompeu fez uma dessas comigo quando fui fazer uma entrevista com uma starlet americana de segunda categoria que tinha vindo ao Rio. Ibrahim Sued viveu o que se pode chamar de “conjunção carnal” com ela. A atriz teve uma gravidez tubária. Teve de ser internada no Hospital dos Ingleses. Lá fui eu, com o inglês capenga que tenho até hoje, para entrevistar a starlet. Obviamente, o motivo real da internação jamais foi publicado. Quando cheguei lá, tirou-se aquela fotografia clássica do repórter ao lado da entrevistada. Fiz uma matéria – completamente irrelevante – porque não havia assunto a tratar com ela. O promoter de cinema americano Harry Stone é que trazia esses artistas para o Rio, geralmente para o carnaval. Quando abro o Diário Carioca no dia seguinte, vejo a foto em que apareço ao lado da atriz. Pompeu escreveu na legenda : “Em dado momento,a atriz perguntou ao repórter do Diário Carioca : “Você é primo de Burt Lancaster ?””. Era apenas uma gracinha de Pompeu comigo. Eu pensava : “Isso não tem o menor cabimento !”. A atriz foi operada. Assim que recebeu alta, foi embora. Assim como Jorginho Guinle, Ibrahim Sued, com perdão da má palavra, comia todas. Ninguém passava impune. A starlet  foi uma das conquistas de Ibrahim” .

“Pompeu de Sousa era um grande jornalista, mas exercia um estilo que, hoje, seria impossível : numa emergência, inventava. Era um homem engraçado. Vivia rindo da vida. Dava gargalhadas . Nunca o vi de mau humor.  Quando me apresentei pela primeira vez na redação, Paulistano me incumbiu de fazer uma reportagem sobre um promotor chamado Cordeiro Guerra – “é uma fera, consegue condenação de todo mundo”. Fui procurar Cordeiro Guerra. Depois, entrevistei os advogados mais famosos da época, como Evandro Lins e Silva e Romeiro Neto. Deixei a matéria na redação. Era um sábado. Quando chegou, Pompeu de Sousa, o chefe da redação, perguntou a Paulistano, como sempre fazia : “O que temos aí para a primeira página ?”. Paulistano disse a Pompeu que um foca tinha deixado com ele o material sobre o promotor. Sem ler, Pompeu passou a matéria para Armando Nogueira : “Reescreva aí…”. Como devia estar morto de preguiça, porque era sábado e ele queria ir embora, Armando leu aquilo e disse : “Não tem o que mexer; é só botar uns entretítulos”. Pompeu publicou a reportagem, assinada por mim, na primeira página de domingo. Quando entrei numa banca, no Grajaú, quase tive um enfarte ao ver o Diário Carioca”.

“Quem fazia o noticiário político era Carlos Castello Branco, autor das melhores entrevistas. Mas não era uma característica do Diário Carioca ficar publicando entrevistas. Logo no início, fui repórter de assuntos sindicais : a última página era dedicada a sindicatos.A cobertura, intensíssima, era feita por mim e por Mário Wellington Pita Ribeiro – um bom companheiro mas um sujeito esquisito. Grisalho, magro, andava armado – sempre de paletó e gravata, como todos nós. Além de trabalhar no Diário Carioca, trabalhava numa “agência”. “Que agência, Mário?” – a gente perguntava. E ele : “Ah, minha agência…”. Não sei que tipo de agência era aquela. A gente sempre achou que Mário tinha uma atividade suspeita e inconfessável. A vida sindical, no fim da era Vargas, era agitada. Havia pancadarias tremendas nas greves : quando a polícia entrava, baixava o porrete”.

“Os eventos nos sindicatos sempre ocorriam no fim da tarde. A cobertura era uma tarefa pesada : o ambiente era áspero, quente, abafado. Ouvíamos horas e horas de discursos para, depois, fazermos uma matéria de uma lauda. Meu horário de saída do jornal dependia do humor de Pompeu.  Ao fim de algum tempo, entusiasmado com minha dedicação, Pompeu passou a me chamar de “interno”, porque eu ficava no jornal todo dia até de madrugada. Comecei a receber pagamento do jornal – uma miséria : o piso era um salário-mínimo. Nem recebia regularmente : era vale. O piso salarial dos redatores eram dois salários mínimos”.

“A hora em que eu encerrava meu expediente na redação do Diário Carioca dependia do humor de Pompeu de Sousa. Os amores de Pompeu eram engraçadíssimos. Acompanhei tudo. Pompeu se casou duas vezes. Teve duas filhas no primeiro casamento. Depois,se casou com Otília, com quem teve quatro filhos. Otília tinha um ciúme louco : vivia colada em Pompeu”.

Otto Lara Resende fez,num texto de 1976 republicado em “O Príncipe e o Sabiá” (Companhia das Letras,1994), uma cobrança coletiva aos que passaram pela redação do Diário Carioca : que escrevessem a biografia do jornal. O Diário Carioca, dizia Resende, era um “ilustre morto de que é preciso fazer a biografia; inclusive pelo que representou no papel de modernizador da imprensa brasileira. Sobre isto, muitos são os que, desde aqueles tempos na Praça Tiradentes, ou depois, na praça Onze e na avenida Rio Branco,podem e devem depor : Carlos Castelo Branco, Nilson Viana, Evandro Carlos de Andrade, Armando Nogueira : cito só uns poucos de todos os que passaram pela risonha, franca e barulhenta escola de Pompeu de Sousa, em perfeito entendimento com a sempre polida e bem-humorada serenidade de Prudente de Morais,Neto”.

Evandro responde, parcialmente, à convocação do amigo, ao fazer um retrato falado dos tempos em que habitou a redação do jornal:

 “Pompeu de Sousa – diz Evandro – tinha trabalhado na Voz da América, nos Estados Unidos, onde ficou até o fim da guerra. De lá,trouxe um estilo novo de fazer jornalismo e o inaugurou no Brasil com um título que se tornaria marco de renovação : “Sai Dutra, entra Góes”.O anúncio da substituição de um ministro da Guerra, feito dessa maneira, chocava pela informalidade e pela concisão – duas características que, a partir daí,seriam o fundamento de um jornalismo em busca da objetividade. Não que Pompeu fosse tão objetivo assim. Seu impulso romântico, permanente, o impedia”.

“Pompeu avaliava matérias, dava títulos, contratava e demitia – mas quase não escrevia. A gente dizia que ele tinha um estilo proustiano, porque era minucioso. Os textos de Pompeu eram extensos, por que ele queria sempre contar os detalhes. Para mim, era um texto pesado .Mas ele trouxe para o nosso jornalismo o “lead”, importado dos Estados Unidos”.

 “Pompeu tinha ido para os Estados Unidos ainda no primeiro governo de Vargas, na ditadura do Estado Novo, mandado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda – uma tática para afastá-lo, porque ele era um jornalista incômodo. Usava os telegramas de guerra para, nas entrelinhas, hostilizar a ditadura de Vargas. Dos Estados Unidos,Pompeu trouxe a visão de um jornalismo objetivo – que aplicou no Diário Carioca quando assumiu a direção do jornal” .



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