A poesia nunca foi tão inútil – nem tão necessária. Que os versos falem dos esquecidos meninos da seca, com “olhos ressequidos/ apoéticos / difíceis de pegar rima”
Pode existir algo tão inútil quanto a poesia ?
“Não !”, sussurra o interlocutor imaginário, enquanto percorre um sebo em busca de versos escondidos sob a poeira. “Não pode existir nada tão inútil – nem tão indispensável”.
Bingo.
Quem faz poesia hoje ? Quem publica ? Pouca, pouquíssima gente. Numa era tão medíocre quanto a nossa, a poesia nunca foi tão inútil nem, em consequência, tão indispensável. Assim caminha a humanidade.
O Dossiê Geral faz uma pausa para celebrar dois poemas.
O locutor-que-vos-fala, consumidor eventual de versos, sócio do clube dos seguidores de Vladimir Maiakóvski, Walt Whitman, Carlos Drummond de Andrade, Manoel Bandeira, Ferreira Gullar & cia ilimitada, teve uma surpresa tardia esta semana.
Recebi, em Brasília, um exemplar de um livro publicado já há quatro anos. O título: “Perfume de Resedá”. O autor: Paulo José Cunha. A Editora: Oficina da Palavra ( Piauí ). “Perfume de Resedá” é um poema de 111 páginas que se lê ”de um fôlego só”, como se dizia antigamente.
O autor, jornalista, passou vinte e cinco anos – um quarto de século ! – sem publicar versos. O silêncio deve ter feito bem ao poeta. Porque Paulo José Cunha conseguiu produzir, em “Perfume de Resedá”, um belo poema, totalmente inspirado em lembranças de uma infância e uma juventude vividas em paisagens piauienses que, certamente, já foram riscadas do chamado “mundo real”, mas sobrevivem naquele território pétreo e inviolável que todos carregam dentro de si: a memória.
Lá vem ela, a fera onipresente : a memória. Em “Perfume de Resedá”, a memória se transforma em belos versos. É o que basta. Para que mais ?
Trechos pinçados do mergulho nas páginas do livro:
“…e naquela noite
as redes recolheram do fundo do rio
cardumes de versos e cantigas”
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“daqui a pouco o sol
não estará mais aqui
nem a linha de cerol
e os papagaios
que sumiam do céu
(como aquele sura azul de gladstone
que até hoje vaga entre crateras lunares )”
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“mesmo a mais severina das fomes
termina um dia
embebida na memória
e se presta quando nada
ao ofício inútil dos poetas “
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“ficou-me
na concha da mão
apartada a escória
estes grãos de ouro
que guardo de cor
para recitar
em noites de insônia”
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“mães e meninos
entanguidos pela caatinga
olhos ressequidos
apoéticos
difíceis de pegar rima”
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Por algum motivo, o locutor-que-vos-fala se lembrou de outro belo poema nascido do fogo da memória do poeta Jaci Bezerra, alagoano há décadas radicado no Recife. Chama-se “Inventário do Fundo do Poço”. É parte do livro ”Comarca da Memória”.
Um trecho de “Inventário do Fundo do Poço” fecha esta pequena expedição ao território dos versos e das memórias:
“O rosto do meu pai, amarga ausência que jamais alcanço,
à noite me acalanta na antiga cadeira de balanço.
(…) Minha infância, doente, se extraviava em corredores escuros,
e eu sonhava, insone, com as belezas do mar que ardia atrás dos muros.
O adulto que sou continua a cultivar no coração a insônia
dos quintais dessa infância, incendiada de verões e begônias.
(…) Na geografia do meu coração guardo um país que pouca gente nota
e um mapa de sonhos tatuado a giz nas asas das gaivotas.
(…) Tudo me dói como o mar, luminosíssima e constante presença,
farfalhando no meu coração com o rumor luminoso das avencas.
(…) Depois, no silêncio do quarto, para esquecer antigas cicatrizes,
sonhava com viagens e me perdia no azul de outros países.
(…) Recordo, hoje, que, nessa e em mais distante época, minha mãe queria
que o seu menino crescesse para ser alguém um dia.
Minha mãe não sabia, nem eu, que outro e bem melhor destino
teria sido eu ter ficado para sempre menino.
Tudo isso penso à noite, quando me dói a luminosa mágoa
e o coração, igual a um peixe, soluça dentro d`água”.