É impossível ficar indiferente à beleza indescritível do teto da Capela Sistina : Michelangelo dá uma mostra do “paraíso inatingível”
Do caderno de anotações (com acréscimos) :
CIDADE DO VATICANO – Nem 11:59 nem 12:01. O relógio marca meio-dia em ponto quando uma das janelas do Vaticano se abre. Apequenada pela distância que a separa da multidão, uma figura se aproxima do parapeito para saudar os visitantes que, lá embaixo, na Praça de São Pedro, apontam para a janela um oceano de câmeras digitais .
De longe, é impossível discernir, a olho nu, as feições da figura que acena da janela. Mas quem usa o visor das câmeras como uma espécie de binóculo improvisado vai enxergar, com razoável clareza, o sorriso travado do personagem. Ei-lo: o papa Bento XVI acaba de fazer uma aparição no Vaticano.
Justiça se faça: a taxa de carisma do Papa é algo perto de zero, comparada com a de João Paulo II. Mas uma aparição do sucessor de Saã Pedro é sempre capaz de espalhar pela multidão uma corrente de entusiasmo. É o que acontece. Os fiéis aplaudem. Bento XVI acena. Gritos. Novas palmas.
Depois que o Papa se recolhe, a multidão forma uma fila para entrar na Basílica. Um ponto de passagem quase obrigatório: os túmulos dos Papas. Despojado, como os outros, o túmulo de João Paulo II desperta comoção. Quem não se lembra da imagem comovente de João Paulo II se contorcendo de dores naquela janela do Vaticano, incapaz de pronunciar até o fim a bênção aos fiéis ?
Visitantes mais devotos choram lágrimas discretas diante do túmulo. Poucos resistem à tentação de fotografar. Um funcionário pede que a fila apresse o passo, para evitar um congestionamento humano nos corredores do Vaticano. A dois passos dali, outro túmulo atrai atenções: o de João Paulo I, o Papa que só reinou por trinta e três dias, em 1978. Um visitante anônimo deixa uma rosa vermelha sobre o túmulo de João Paulo I. É o único ornamento de um túmulo extremamente despojado. Silêncio, pedem os vigilantes do Vaticano. ”Um minuto, é só uma foto”, respondem os turistas.
A figura do Papa pode até parecer um anacronismo. Mas a aura de segredo que envolve aqueles corredores, a sincera comoção despertada – por exemplo – pela visão do túmulo de João Paulo II ou a corrente de eletricidade que percorre a multidão quando o Papa surge na janela deixam uma certeza: o fascínio produzido por estes rituais é que garante a permanência da Igreja.
O que dizer da beleza indescritível do teto da Capela Sistina ? Ninguém passa imune pela experiência de olhar para o teto da Capela e contemplar em silêncio a obra-prima de Michelangelo - a mão de Deus dando vida ao homem.
Como bem disse Paulo Francis: “A morte é uma piada. A vida é uma tragédia. Mas, dentro de nós, mesmo no maior desespero, há uma força que clama por coisas melhores. Os artistas estão sempre aí nos lembrando disso. Existe um paraíso, pois Beethoven ou Gauguin já nos deram mostras convincentes. É inatingível permanentemente, mas devemos ser gratos pelas sobras que nos couberem”.
Michelangelo nos dá, na Capela Sistina, um exemplo épico do tal paraíso inantigível. A nós, tristes mortais, cabe contemplar a cena e seguir adiante – “de mãos pensas”, como diz o verso final de um poema estupendo de Carlos Drummondo – “A Máquina do Mundo”. É um dos mais belos já escritos na língua portuguesa. Ao caminhar num fim de tarde solitário por uma estrada pedregosa, embalado pelo som “pausado e seco” dos seus próprios passos, o poeta nota que a “máquina do mundo” se abre de repente diante de si, com todos os seus mistérios, grandezas e cintilações, como se pedisse para ser decifrada. Ali, ele tinha a chance de desvelar o enigma geral: “A memória dos deuses / e o solene sentimento de morte / que floresce no caule da existência mais gloriosa/ tudo se apresentou nesse relance/ e me chamou para seu reino augusto/ afinal submetido à vista humana”.
Tive esta sensação ao vislumbrar o teto da Capela Sistina : a de que, ali, a “máquina do mundo” , afinal “submetida à vista humana”, se oferta, inteira, a todos nós. Mas somos, todos, incapazes de decifrá-la. O poeta de passos pausados e secos dispensara voluntariamente a oferta : não quis ver o enigma decifrado. Preferiu seguir adiante na estrada pedregosa de Minas, já mergulhada na treva mais “estrita”. Ao contrário do poeta – que dispensou a oferta – somos incapazes de alcançar o enigma da máquina do mundo. O que se pode fazer ? Imitar o gesto do poeta e seguir adiante – não por uma estrada pedregosa de Minas, mas pelos corredores infindáveis do Vaticano.
Uma dúvida agitava minhas florestas interiores : sem segredos, sem a pompa, sem a grandiosidade que se estende por corredores sem fim, o que restaria, afinal, à Igreja ?
Ainda assim, o Vaticano de vez em quando concede ao populacho a chance de espiar de relance uma nesga do que acontece por trás daqueles muros. O Museu do Vaticano abriu, no Palazzo Apostolico Lateranense, uma exposição chamada “Habemus Papa”. Lá estão relíquias como o martelo usado para constatar a morte dos Papas. O martelo exposto à curiosidade pública foi usado para cumprir o ritual fúnebre de Leão XIII, em 1903. Um ajudante bate três vezes na fronte do Papa morto com o martelo, para constatar a morte. Chama o nome de batismo do Papa. O silêncio é a resposta.
É assim que tudo acaba. O que fica ? A grandeza esmagadora do Vaticano e a beleza de rituais capazes até de acender uma fagulha de fé no peito de descrentes.