O dia em que Gabriel García Márquez gritou, dentro de um rio gelado: “Nós somos flores tropicais ! O que é que estamos fazendo aqui ?”

sex, 24/02/12
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

A Globonews exibe neste sábado, às 21:05, com reprise no domingo, ao meio-dia e meia, uma entrevista com um dos mais importantes intelectuais latino-americanos : o mexicano Carlos Fuentes.

Ex-embaixador do México em Paris, professor visitante de universidades como a de Cambridge, na Inglaterra, Fuentes aponta, na entrevista, um novo fenômeno : o medo que o crescimento do Brasil inspira em outros países da América Latina.

Fuentes é amigo íntimo do Prêmio Nobel de Literatura Gabriel García Márquez. Perguntei se ele já havia vivido, em companhia de Márquez, alguma cena digna de uma página do “realismo mágico”.

Fuentes não titubeou: citou a viagem que fez, no fim dos anos sessenta, à Tchecoslováquia, em companhia de Gabriel García Márquez e de Julio Cortázar, a convite de Milan Kundera. A Thecoslováquia – país que vivia sob as asas da União Soviética – experimentava, na época, a chamada Primavera de Praga, uma tentativa de criação de um “socialismo com face humana”. O problema é que a União Soviética não gostou nada da experiência liberalizante: Moscou mandou para Praga tanques que trataram de esmagar a Primavera. A linha-dura moscovita venceu.

Kundera tinha sido militante do Partido Comunista mas rompera com a linha dura desde o fim dos anos quarenta. Adepto da Primavera de Praga, chamou os amigos Márquez, Cortázar e Fuentes porque queria que eles testemunhassem o movimento.   

A expedição do quarteto rumo à Primavera de Praga terminou produzindo uma cena inesquecível,  digna de um conto: García Márquez mergulhado num rio gelado gritando “Nós somos flores tropicais !” . 

Quatro décadas depois, é esta a grande lembrança que Fuentes guarda da viagem.

O relato de Fuentes:

“Minha relação com García Márquez é de longa data. São 40 anos de amizade. Não tenho como escolher só um momento. Escolho os 40 anos! Em 1968, um dos anos cruciais na História, houve os acontecimentos de maio em Paris e os de outubro, no México, além da Primavera de Praga. Como estava muito envolvido na Primavera de Praga, Milan Kundera convidou vários escritores a visitarem Praga. Era uma situação surreal, porque o exército soviético havia cercado Praga e estava esperando. Fingimos que Praga ainda era um lugar socialista democrático, mas já não era. Milan convidou também Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Também convidou Günter Grass. Depois, chamou García Márquez, Julio Cortázar e a mim. Estávamos em dezembro. Fazia muito frio. Continuávamos fingindo que o socialismo democrático tinha futuro na Tchecoslováquia, mas, quando chegou janeiro, já sabíamos que não era o caso. Milan Kundera nos disse que, em Praga, as paredes tinham ouvidos. Tudo que dizíamos era gravado. O único lugar seguro era a sauna. Fomos conversar na sauna, então. Mas Cortázar foi logo dizendo: “Não entro em saunas! Sou alto demais e magro demais. Eu me recuso a ser visto em uma sauna!”. García Márquez e eu acompanhamos Milan Kundera - que nos contou suas ideias sobre a Primavera de Praga. Estava muito quente na sauna, é lógico. Eu, então, disse: “Cadê o chuveiro? Estamos suando de calor!” Milan pediu que o seguíssemos. Abriu a porta e nos levou até o rio Vltava. Lá, ele nos jogou na água! García Márquez dava pulos e dizia: ”Sou uma flor tropical!”  Depois, voltou a mergulhar. Não me lembro do que disse, porque estava frio demais. Kundera ria um bocado. É uma lembrança. Imagine um rio em Praga em dezembro. Blocos de gelo passavam ao lado. E havia dois escritores latino-americanos dizendo: ”Somos flores tropicais! O que é que estamos fazendo aqui?” 

“Cortázar era um homem extraordinário. Extremamente inteligente e bondoso. Era um homem bondoso, gentil. Também era muito corajoso e se enfurecia com certos acontecimentos, especialmente com o que se viu na Argentina. Acima de tudo, foi um grande escritor. Contou grandes histórias. ”Rayuela” é um grande romance. São monumentos ao gênio que foi Cortázar. Quando ele morreu repentinamente, eu estava em Nova York. Vi no jornal. Telefonei para García Márquez – que estava no México. Disse: “Gabo, tenho uma notícia terrível. Nosso grande amigo Julio Cortázar morreu!”.  Houve um momento de silêncio. Depois, García Márquez disse: ”Não acredite em tudo que lê nos jornais….”



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