O presidente do Brasil faz, no pé do ouvido do secretário de imprensa, uma pergunta inesperada numa solenidade no Palácio do Eliseu : “Você já viu mulher mais feia na vida?”
O presidente da República Federativa do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, cochicha alguma coisa no ouvido do secretário de imprensa, Ricardo Kotscho, durante uma solenidade no Palácio do Eliseu, em Paris. Os jornalistas brasileiros pressionam o secretário de imprensa: querem porque querem saber o que o presidente brasileiro teria confidenciado. Por acaso, alguma revelação sobre os diálogos com o então presidente da França, Jacques Chirac ? Quem sabe, algum desabafo sobre a agenda sobrecarregada ? O secretário da imprensa desconversa, inventa uma desculpa, não diz o que ouviu . Se dissesse, certamente arrancaria risadas. Depois de ter apontado para uma madame que exibia um esplendoroso chapéu verde na cerimônia oficial no Palácio, o presidente Lula na verdade tinha dito o seguinte, ao pé do ouvido de Ricardo Kotscho: “Você já viu mulher mais feia na vida ?”.
É Lula em “estado puro” : capaz de fazer, numa solenidade no palácio presidencial francês, um comentário que – verdade seja diga – qualquer um teria a tentação de fazer….Excepcionalmente, Ricardo Kotscho estava ali não como repórter, mas como secretário de imprensa de um presidente que, ao final do mandato, viria a se revelar como um fenômeno imbatível de popularidade. O repórter travestido de secretário teve de guardar o que ouviu, para não criar eventuais constrangimentos. Agruras do cargo. Mas o “estado natural” de Kotscho, em qualquer situação, é o de repórter. Sempre foi assim. Passou dois anos como secretário de imprensa, mas terminou pedindo as contas e dizendo bye,bye, Brasília. Preferiu pegar o bloco de anotações e circular novamente pelas ruas e estradas do Brasil, em busca de personagens e histórias que mereçam ser contadas. Voltou a atuar, nas páginas da revista Brasileiros e no blog Balaio do Kotscho.
Aos não iniciados no zoológico das redações, esclareça-se que a rua é o único território em que um repórter de verdade se sente em casa. Pode parecer contraditório, mas é assim: o repórter só se sente em casa quando vai para a rua. São as loucuras da profissão. Os dois – o repórter e o sindicalista – tinham se conhecido na segunda metade dos anos setenta, quando o metalúrgico Lula mobilizava os “companheiros e companheiras” por melhores condições de trabalho. Ficaram amigos. Quando finalmente conquistou o direito de subir a rampa do Palácio do Planalto com a faixa de presidente no peito, em 2002, depois de três tentativas frustradas, em 1989, 1994 e 1998, Lula tratou de convocar o repórter Ricardo Kotscho para o posto de secretário de imprensa. Deve ter sido uma experiência rica.
De volta à planície ( literalmente), Kotscho voltou a atuar como repórter e como blogueiro. É o que nunca deixou de ser. Quero declarar aos senhores jurados que considero elogiável a postura de jornalistas que, depois de anos e anos e anos de estrada, mantêm intocado, em algum ponto de suas entranhas, o DNA da reportagem : são seres que poderiam, perfeita e legitimamente, estar aboletados atrás de uma mesa de redação distribuindo ordens ou dando canetadas. Mas, não. Preferem a poeira das ruas. Joel Silveira era assim: octogenário, dizia, bem humorado, que, se houvesse justiça no mundo, os nomes dos repórteres deveriam aparecer antes do nome dos proprietários no expediente dos jornais.
Acaba de chegar às livrarias uma nova investida editorial de Kotscho: publicado com esmero pela Editora Escrita Fina, o livro “Vida que Segue” reúne textos que ele produziu originalmente para o blog. Ao contrário do que podem supor espíritos equivocados, nem sempre o que se publica na Internet se dissolve no ar depois de quinze minutos. Textos nascidos no Planeta Internet podem migrar sem qualquer solavanco para as páginas de um livro. Eis um entre tantos outros exemplos.
( A propósito: Ricardo Kotscho é, também, um dos personagens de um livro-documento que já chegou às livrarias: “No Planalto,com a Imprensa”, uma publicação conjunta da Editora Massangana e da Secretaria da Imprensa da Presidência da República. Em dois volumes, “No Planalto, com a Imprensa” (o título é pouco inspirado, mas o conteúdo é valioso) traz depoimentos de porta-vozes e de secretários de imprensa da presidência da República desde os tempos de JK até os de Lula. São cenas de bastidores, histórias interessantes, registros inestimáveis. O locutor-que-vos-fala voltará ao assunto. O fato de nossos jornais quase não terem se ocupado do lançamento funciona como o enésimo exemplo de que, todo dia, em todas as redações do planeta, há, com toda certeza, um editor entediado jogando no lixo histórias interessantes. Além de entrevistado para a série de depoimentos, Kotscho já tinha publicado, no livro “Do golpe ao planalto – uma vida de repórter”(Companhia das Letras), parte de suas memórias como secretário de imprensa).
O DOSSIÊ GERAL pergunta, Ricardo Kotscho responde:
Qual são a primeira virtude e o pecado capital de um repórter ?
Kotscho: “Virtude: colocar-se no lugar do leitor e não ter vergonha de fazer todas as perguntas necessárias para contar uma boa história. Pecado capital: a soberba, a arrogância, o ar de doutor sabe tudo, grande formador de opinião, mais importante do que o entrevistado, o fato e a notícia, um comportamento muito comum hoje em dia”.
De todos os personagens – nacionais ou internacionais – que você já ouviu, qual decepcionou você quando “visto de perto” ?
Kotscho: “O grande Leonel Brizola, de quem ficaria amigo, ao entrevistá-lo pela primeira vez num encontro da internacional socialista, em Hamburgo, fins dos anos 1970, quando eu era correspondente do Jornal do Brasil na Alemanha. Ele inverteu os papéis e começou a me entrevistar sobre o cenário político internacional. Logo eu entenderia o motivo: Brizola ficou tanto tempo longe do mundo, criando ovelhas no interior do Uruguai, que queria se informar melhor sobre o que estava acontecendo no mundo, principalmente no Brasil, antes de voltar a dar entrevistas”.
O fato de você – por um período relativamente breve - ter visto o poder “de dentro” desperta curiosidade sobre o que acontece nos bastidores. Qual a cena “impublicável” que você testemunhou no Palácio,não poderia divulgar na época mas hoje pode ?
Kotscho: ”Se é “impublicável”, não posso te contar, por uma questão de ética e lealdade, já que eu ocupava um cargo de confiança junto ao presidente da república no Palácio do Planalto. Uma delas foi bem no início do governo, na primeira viagem do presidente Lula à Europa. Durante a conferência de imprensa ao lado Jacques Chirac, no Eliseu , ele me chamou para perguntar se eu tinha visto uma mulher de chapéu verde no fundo do salão. E me perguntou no ouvido: “Você já viu mulher mais feia na tua vida?”. Depois, tive que aguentar os coleguinhas: todos queriam saber o que o presidente tinha me falado…
Outra que não me esqueço aconteceu no final de um encontro de presidentes no México. Lula ficou um tempão conversando com George Bush no fundo do salão, só os dois, sem intérprete. Ao voltarmos para o avião, perguntei ao presidente em que língua eles falavam e ele me respondeu se eu não sabia que o Bush era do Texas, só conhecia o México antes de ser presidente e, portanto, eles se entendiam em portunhol. E por que riam tanto? “Ah, isto eu não posso te dizer porque são segredos de chefes de Estado…”
Que pergunta você jamais faria ao ex-presidente Lula ?
Kotscho: “Como repórter e amigo, sempre fiz as perguntas que queria ao presidente Lula, sem nenhum problema ou constrangimento. Mas sei que ele não gostaria de ouvir perguntas sobre as calúnias que circulam sem parar na internet sobre a sua vida pessoal e a sua família, para desconstruir a imagem do melhor Presidente da República que o nosso país já teve”.
Quando Lula perguntou a você se você gostaria de um dia ser presidente, você respondeu que não , porque esta é “a pior profissão do mundo”. O que ele disse ao ouvir esta resposta ?
Kotscho: “Não disse nada. Deu uma gargalhada e fez cara de quem diz: “Coitado, este rapaz não sabe o que é bom…” Pelo jeito, ele gostava muito de ser Presidente da República”
PS : Faz tempo: ali pela metade dos anos setenta, o locutor-que-voz-fala era um jovem repórter da sucursal Recife do Estado de S.Paulo. O país vivia uma época de grandes expectativas políticas. Os exilados estavam desembarcando de volta ao Brasil. Miguel Arraes foi recebido com uma festa épica no Recife. Ulysses Guimarães transitava por Pernambuco em caravanas em que pedia redemocratização, já. Tive a chance de fazer a cobertura da primeira visita que o líder sindical emergente Lula fez à terra natal, Pernambuco, depois de ter ficado “famoso” em São Paulo. Hoje,as palavras daquele líder sindical parecem relíquias improváveis: incrivelmente, Lula dizia que não tinha “vocação política”. Já relatei, aqui, este encontro com o metalúrgico que viraria presidente: