LEDO IVO (PARTE 3) / O POETA JOÃO CABRAL DE MELO NETO DÁ DE PRESENTE UM EPITÁFIO EM VERSOS PARA O AMIGO LEDO IVO – E MORRE. LEDO IVO CHEGA AOS 85, CHEIO DE “PERPLEXIDADE”

ter, 03/11/09
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

GMN : O que ficou da amizade com Manuel Bandeira ?

Ledo Ivo: “Minha ligação com Manuel Bandeira foi profunda. De todos os poetas, talvez o que mais me tenha marcado e ensinado foi Manuel Bandeira. Quando eu era menino, mandei poemas para ele. Recebi de volta um cartãozinho em que ele tocou em um ponto que ainda hoje permanece na poesia: “Há muita magia verbal em seus poemas”.

Depois percebi que, para mim, a operação poética é como se fosse um encantamento da linguagem – uma magia. Sou um poeta que acha que a poesia é o uso supremo da linguagem. Bandeira fez esta descoberta em meu momento inicial. Deu-me lições perenes : por exemplo, a de que o poeta deve ser um intelectual culto. Só a cultura tem condições de abrir caminhos. Ao poeta,não basta apenas ter talento e vocação. Por que o poeta deve ser realmente um homem culto ? Porque a poesia é um sistema milenar de expressão. É preciso conhecer os mestres. A criação poética não é,portanto,um problema só de sensibilidade. É um problema de cultura. Somente o vasto conhecimento da poesia e da literatura é que permite ao poeta exprimir-se.

A fidelidade à literatura deve ser o emblema do escritor. Devemos continuar segurando o estandarte. Vivemos um tempo de mudanças. Somos uma civilização de massas, uma civilização eletrônica, uma civilização consumista. Tudo alterou a posição do escritor e do poeta no Brasil.

Já não temos aqueles poetas populares de que Drummond foi o último grande exemplo. O poeta vive hoje em uma época de anonimato. Os ícones são diferentes, os gurus são outros. A linguagem literária hoje compete com a linguagem eletrônica, o CD-Rom, o cinema,o disco . Mas,há alguma coisa que só a poesia tem condições de dizer. A poesia, então, existirá sempre,como linguagem específica,porque só ela pode dizer,sobre a condição humana,algo que não pode ser dito de nenhuma outra maneira. O cinema e a televisão lidam de uma maneira diferente”.

GMN : O poeta, então, deve se resignar a ser anônimo, nesse mundo dominado pela fama e pela mídia eletrônica?

Ledo Ivo: “A função do poeta na sociedade é escrever poemas.A notoriedade é secundária”.

GMN : O senhor tem esta sensação de deslocamento ?

Ledo Ivo: “Pelo contrário ! Para mim, seria inconcebível ter aparecido antes ou ter aparecido depois. Como poeta ,surgi no momento certo.Tenho um grande sentimento da minha contemporaneidade.O mundo atual habita os meus poemas.A função do poeta é,também,celebrar o mundo em que vive. Não tenho nostalgia pelo passado. Não gostaria de ter nascido no passado,assim como não gostaria de ter nascido no futuro”.

GMN : Do que o senhor ouviu de João Cabral de Melo Neto, qual foi a grande lição ?

Ledo Ivo: “João Cabral me deu a lição da diferença entre os poetas.Cada poeta é diferente. As estéticas dos poetas são até inconcebíveis. Como são diferentes os caminhos para fazer a mesma coisa ! . O que mais me impressiona em João Cabral é ele ser saudado sempre como “o poeta da razão”, no Brasil. Para mim, João Cabral de Melo Neto é o poeta da “anti-razão”,o poeta da obsessão, o poeta das coisas ocultas,o poeta das coisas sibilinas, herméticas. A poesia que ele deixou é complexa,mas se abre para o grande acesso popular, o que é curioso.

Uma vez,João Cabral me disse: “Nós estamos fazendo uma obra literária. Procuramos fazer uma obra literária o maior possível.De repente, lá em Nova Iguaçu ,a essa hora, anonimamente, alguém pode estar fazendo a obra com que nós sonhamos”.

GMN : Para o senhor – que se considera “um homem de muitas perguntas e quase nenhuma resposta” – qual é a grande pergunta, a grande perplexidade que até hoje o atormenta ?

Ledo Ivo: “A perplexidade é estar no mundo – com todas essas perguntas que se acumulam; o fato de ser transitório; a existência e não-existência de Deus; o problema da condição humana. Vivo num mundo em que quase não há resposta. Não sei onde começo e onde termino. Sequer sei se existo, no sentido de ter uma existência nítida, com fronteiras definidas.Talvez o meu mundo seja o mundo da ambigüidade.

Drummond chamou a minha poesia de “múltipla”. É uma frase que ilumina mais uma existência poética do que muitos rodapés. Quando publiquei “Confissões de um Poeta”, Hélio Pellegrino me telefonou para dizer que ficou impressionado com o clima de procura que há em todo o livro. Como era psicanalista e poeta,Hélio Pellegrino disse que minha descoberta estava exatamente nessa procura.

Vivo nessa perpétua indecisão. O que me impressiona é que essa procura tenha durado tanto; não tenha acabado ainda”.

GMN : Há em seus textos uma certa obsessão com a finitude. Qual foi o primeiro espanto que o senhor teve diante da morte?

Ledo Ivo: “Venho de uma família numerosa. Tenho um irmão que morreu, o chamado “anjinho”, aquele que morre novo. Outro irmão meu, chamado Éber, morreu aos oito anos. Numa família nordestina,numerosa, a morte vive sempre rodeando as pessoas. Quando menino, eu gostava de visitar cemitérios. Mas censuro a morte ! .Como sou uma criatura do aqui e do agora,fico impressionado com a morte,porque ela faz com que a gente já não esteja aqui”.

Talvez venha da infância o sentimento de que a vida é provisória e instantânea.É um relâmpago. Além de tudo,há o mistério da existência : por que será que uns morrem cedo,outros morrem tarde e outros não morrem nunca ? “.

GMN : O senhor faz,em um de seus textos,uma referência a uma caminhada solitária pelas alamedas do Cemitério São João Batista. O que é que o senhor estava fazendo no cemitério ?

Ledo Ivo: “Devo ter ido me despedir de um amigo. Não fui para visitar o cemitério. O engraçado é que João Cabral escreveu o meu epitáfio em versos que ele nunca incluiu em livro. O que João queria era fazer um livro só de epitáfios de amigos. Terminou não fazendo.

João foi um grande amigo meu,mas tínhamos temperamentos diferentes. Enquanto ele ia para um lugar, eu ia para outro. Nunca nos encontramos – nem esteticamente. Dizia que eu falava muito; achava que só a morte é que me reduziria ao silêncio.
O epitáfio que João Cabral criou para mim é este :

“Aqui repousa
Livre de todas as palavras
Ledo Ivo,
Poeta,
Na paz reencontrada
de antes de falar
E em silêncio,o silêncio
de quando as hélices
param no ar “.

PS: A vida tem dessas ironias : lastimavelmente, João Cabral de Melo Neto, autor do epitáfio de Ledo Ivo, morreu há dez anos. Tinha 79 anos de idade. O poeta presenteado com o epitáfio precoce felizmente continua vivo. Ledo Ivo tem oitenta e cinco anos.

O DIA EM QUE O AUTOR DE “MORTE E VIDA SEVERINA” DESABAFOU CONTRA O EXIBICIONISMO: “NINGUÉM É TÃO INTERESSANTE PARA FALAR DE SI MESMO O TEMPO TODO” (O QUE ELE DIRIA DO FESTIVAL NARCISISTA DE HOJE ?)

sex, 18/09/09
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

 
Se os jornais publicassem tudo o que se fala numa redação (ou, pelo menos, tudo o que os repórteres vêem mas não escrevem), nossa imprensa certamente não mereceria o julgamento que um dia Paulo Francis fez :  

“Nossa imprensa : acadêmica, empolada, previsível, chata. Meu Deus, como é chata…”

Ponto. Parágrafo.

Já se disse que o melhor jornal é aquele que jamais chega ao conhecimento do leitor. O que acontece nos bastidores de uma reportagem pode ser tão interessante quanto o que sai nas páginas dos jornais. 

Minha pequena coleção de entrevistas com o super-poeta João Cabral de Melo Neto foi marcada por desencontros, vexames, incidentes e mal-entendidos – sem maior gravidade, mas suficientes para fazer ruborizar qualquer tímido.

Vexame número 1

Cenário : saguão do Aeroporto Internacional dos Guararapes. Ano : 1973. Dou meus primeiros passos como repórter. O chefe de reportagem me despacha para o Aeroporto. Missão : cobrir a chegada do mais ilustre dos poetas pernambucanos. O diplomata João Cabral vivia no exterior, na época.

Lá fomos nós, em busca da celebridade . O único problema é que o fotógrafo não sabia que João Cabral era pernambucano. Assim que o poeta desembarca, o fotógrafo o convoca a posar em frente a um painel turístico que mostrava uma imensa foto do Recife. A pose em frente ao painel provaria que o poeta esteve na cidade…Pouco à vontade ,o poeta concorda em posar. Lá pelas tantas, o fotógrafo quer saber se o poeta por acaso já conhecia a capital. João Cabral responde com algum som inaudível.

desencontros

O poeta de Morte e Vida Severina: desencontros com o repórter ( Imagens: TV Globo)

Vexame número 2

João Cabral aceita receber o repórter na casa do irmão, à beira-mar, em Olinda. Horário da entrevista : onze da manhã. O repórter chega vinte minutos atrasado. Formalíssimo, João Cabral nem parece estar de férias. Aparece no portão metido numa impecável camisa de manga comprida abotoada até a gola.

Primeira frase que pronuncia : “Você chegou com uma pontualidade nada britânica…”. O repórter quase estreante procura, em vão, um buraco no chão para se esconder. Não encontra. Entre mortos e feridos, todos se salvam : a entrevista segue adiante.

Vexame número 3

De volta ao Brasil depois de se aposentar da carreira diplomática , João Cabral escolhe o Rio de Janeiro como endereço . O repórter que, anos antes, cometera o pecado de chegar com uma “pontualidade nada britânica”, telefona em busca de uma nova entrevista. Quem sabe, agora consiga fazer uma entrevista sem incidentes.

João Cabral se desculpa : “Vamos marcar outra hora… Minha mulher morreu ontem”. Já não tão estreante, o repórter procura de novo um buraco no chão para se esconder – em vão. Um silêncio que parece durar uma eternidade se instala nos dois lados da linha telefônica. O que dizer numa situação dessas ? Nada. Meus pêsames. Desculpe. Eu sinto muito. Socorro !

Vexame número 4

O homem marca a entrevista : vai receber o repórter em casa – um apartamento na Praia do Flamengo . Por coincidência , o jornal O Globo marca, para a mesmíssima hora, uma sessão de fotos de João Cabral com Ferreira Gullar . Os dois poetas aguardam a chegada do fotógrafo do jornal.

Aperto a campainha . “Pode entrar” . Cabral e Gullar vão para a janela do apartamento . A vista, ao fundo, é bela. Fazem pose. Ficam olhando para as minhas mãos, à espera de que eu saque a máquina fotográfica . Pensam que eu sou o fotógrafo que estavam esperando. Mas não tenho máquina nenhuma . Carrego apenas meu gravador .

“Não quer fazer a foto agora ? “.Dois dos maiores poetas brasileiros estavam ali,diante de mim, à espera da impossível foto. Não, não quero, não sei , não posso fazer. Deve ter havido algum engano. Nunca fui fotógrafo em minha vida. Um buraco no chão, pelo amor de Deus !

Desfeito o equívoco, os dois desistem de esperar pelo clique de minha máquina inexistente. Cinco minutos depois, o fotógrafo (o verdadeiro) desembarca no apartamento. Os dois voltam a posar na janela. Livre da tarefa, João Cabral finalmente dá a entrevista pedida pelo locutor-que-vos-fala.


O poeta – um dos maiores que o Brasil já teve – confessava que o gosto do fracasso não lhe era estranho. Devo ter comentado com meu demônio-da-guarda : fracasso ? Se depender do meu histórico de fracassos nos bastidores das entrevistas com João Cabral, posso dizer que sou diplomado no assunto.

Vasculho meus “arquivos implacáveis”, dez anos depois da morte do poeta, para fazer um pequeno decálogo de declarações feitas ao repórter pelo autor de “Morte e Vida Severina”:

1. “Tenho aversão à subjetividade. Em primeiro lugar, tenho a impressão de que nenhum homem é tão interessante para se dar em espetáculo aos outros permanentemente. Em segundo lugar, tenho a impressão de que a poesia é uma linguagem para a sensibilidade, sobretudo. Uma palavra concreta, portanto, tem mais força poética do que a palavra abstrata. As palavras “pedra” ou “faca” ou “maçã”, palavras concretas, são bem mais fortes, poeticamente, do que “tristeza”, “melancolia” ou “saudade”"

2.”Não gosto de carta. Tanta gente escreve até diário… Escrever o meu diário é, para mim, uma coisa inconcebível. Ninguém é tão interessante para falar de si mesmo o tempo todo. Em carta, você acaba falando de si próprio”.

(o que o poeta diria hoje da imensa avalanche narcisística impulsionada pela maravilha da Internet ?)

3.”A popularidade é uma coisa terrível. Acaba cercando o escritor e o artista de um mundo artificial – e um interesse inteiramente artificial. O sujeito acaba fazendo aquilo que sente que o público gosta, em vez de fazer aquilo que acha que deve ser feito”.

4.”O êxito teatral de “Morte e Vida Severina” é que tornou o meu nome conhecido. Mas não creio que minha poesia seja popular”.

5.”A atividade intelectual é uma coisa que seduz. Vivo para ela. Quando leio um poeta que só é capaz de provocar essas emoções correntes, como saudade, melancolia ou tristeza, essa coisa não me interessa”.

6. “A coisa simples que quero não é fazer uma coisa boboca. O simples que almejo é chegar a uma forma que os outros entendam. Consigo raramente. Minha luta é esta: tentar botar uma coisa mais complexa numa linguagem mais simples possível. Confesso que geralmente eu fracasso”.

7.  ” Manuel Bandeira e Carlos Drummond são sujeitos de tal integridade que não foram corrompidos pela popularidade. Nem todo mundo tem integridade para resistir. Em geral, o sujeito acha bom e barateia a produção para ser agradável. Baixa o nível para ser agradável…”

8. “Morte e Vida Severina” foi um poema que escrevi: não trabalhei. Eu escrevi a pedido de Maria Clara Machado. Não trabalhei como trabalho em outras coisas minhas. Eu sinto que é um poema que não me satisfaz. Mas foi um poema bem levado para o teatro e a televisão”

“Esta cova em que estás, com palmos medida,
É a conta menor que tiraste em vida
É de bom tamanho, nem largo, nem fundo
É a parte que te cabe deste latifúndio

Não é cova grande, é cova medida
É a terra que querias ver dividida
É uma cova grande pra teu pouco defunto
Mas estarás mais ancho que estavas no mundo

É uma cova grande pra teu defunto parco
Porém mais que no mundo, te sentirás largo
É uma cova grande pra tua carne pouca
Mas à terra dada nao se abre a boca
É a conta menor que tiraste em vida
É a parte que te cabe deste latifúndio”  ( trecho de Morte e Vida Severina


9.”Pelo meu temperamento, nunca gostaria de ser um escritor popularíssimo. O fato de não ser popular me dá tranqüilidade. Não vivo de escrita. Se vivesse de escrever, gostaria de ser popular, porque os direitos autorais seriam grandes. Mas, como não vivo de escrever, a falta de popularidade não me frustra. Ao contrário”.

10. “Não tenho nenhum ouvido musical. Você pode tocar uma música conhecidíssima. Eu não distinguirei uma da outra! O que lembro é que, desde menino, eu era o filho desentoado. Já no coro do Colégio Marista, mandavam que eu fingisse que estava cantando, mas não cantasse, porque saía tudo desentoado”.



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