O FILHO DE UM CARRASCO NAZISTA:”NÃO POSSO VIVER EM PAZ COM A LEMBRANÇA DO MEU PAI. NÃO QUERO (..) NUNCA PUDE ENTENDER COMO É QUE OS ALEMÃES PUDERAM FAZER AQUILO.MAS FIZERAM”

dom, 06/12/09
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

Segunda e última parte da entrevista com um dos personagens mais fascinantes que tive a chance de entrevistar:  filho de um dos maiores carrascos nazistas (ver post anterior), Niklas Frank vive em guerra contra a lembrança do pai, Hans Frank, o “açougueiro da Polônia”, responsável pelo extermínio de milhões de seres humanos:

Niklas Frank: lembrança do pai é um fardo pesado (Foto:GMN)

Niklas Frank: lembrança do pai é um fardo pesado (Foto:GMN)

É verdade que o senhor, como criança, se divertiu num campo de concentração sem ter noção de onde estava?
  
“É verdade. Fui com meu irmão, em companhia de nossa babá, para um pequeno campo, ligado a um grande campo de concentração. O oficial que estava no comando do campo obrigava uma pobre criatura, um homem magro, a montar num burrico. Em segundos, o homem caía de cima do animal. Eu ficava rindo o tempo todo! Porque, para uma criança como eu, era engraçado ver adultos jogados de cima de um burrico. Eu tinha quatro, cinco anos de idade.
        
Depois, ganhávamos chocolate para comer. O dia era maravilhoso. Somente depois é que descobri que aquilo era uma crueldade. Os adultos que o comandante  tinha obrigado a subir no animal estavam quase mortos de fome. Eram judeus. Aquilo era um tipo de humor alemão”.

   
A lembrança destas cenas é o pior problema de consciência que o senhor tem ?

“A cena dos judeus no burrico é uma das muitas imagens que guardo em  minha mente. Eu não diria que é a pior. A maioria das lembranças vem das imagens que vi em livros e jornais. A pior de todas é a imagem dos corpos amontoados. Nunca pude entender – nem  hoje,  que tenho sessenta e tantos anos de idade – como é que os alemães puderam fazer aquilo. Mas fizeram”.
                              
Hans Frank foi responsável pela morte de quantas pessoas?  É possível calcular?

“Não existe um número específico. Não dá para contar. Meu pai foi responsável pelo holocausto na Polônia, nos assim chamados campos de extermínio, onde matavam poloneses e judeus. Os campos de Sobibor e  Treblinka estavam na área administrada por ele. O meu pai, portanto, era a maior autoridade ali. Era responsável pela morte de cada judeu, cada polonês, cada um de todos os outros judeus que foram deportados de outros países da Europa para os campos de concentração na Polônia”

“Meu pai sempre quis matar os judeus. Minha resposta é sim :  meu pai foi inteiramente responsável pelo campo de concentração de Auschwitz” 
  

É justo dizer que Hans Frank foi responsável pelos horrores de Auschwitz?
 
“Com certeza. Desde antes do início do III Reich,  meu pai já fazia discursos terríveis contra os judeus. É algo que ele levou até o fim. Meu pai sempre quis matar os judeus. Minha resposta, então, é sim :  meu pai foi inteiramente responsável pelo campo de concentração de Auschwitz”. 

Niklas Frank: o carrasco seria enforcado no Tribunal de Nuremberg

Hans Frank: o carrasco seria enforcado no Tribunal de Nuremberg

     
O filho de outro criminoso de guerra disse que o senhor era “um demônio” porque denunciou o próprio pai. Como é que o senhor recebe uma crítica dessa?

“Para dizer a verdade, eu não esperava tal reação. Fiquei surpreso quando filhos de outros criminosos nazistas, como Hess, Shirach e Goering, se recusaram a ter qualquer contato comigo. Emissoras de TV tentaram nos reunir numa mesa-redonda, mas todos se recusaram a aparecer ao meu lado.

O que aconteceu é que destruí uma maneira de lidar com pais criminosos. Devo dizer que fiquei feliz por ter agido assim. Mas não sou o demônio. O que fiz foi, apenas , dizer a verdade. O fato de ser  filho de quem sou não me levou a perdoá-los.

O que eu tinha de fazer era decidir: eu deveria defender o meu pai apenas  porque ele me aciriciava na cabeça quando eu era criança ou eu deveria, pelo contrário,  levar em conta a montanha de corpos que ele deixou atrás de si?  A escolha foi fácil”.

Quando é que o senhor viu o pai pela última vez  ? Qual é a lembrança que o senhor guarda desse dia?
       
“Guardo a lembrança da minha última visita à prisão de Nuremberg. Eu estava sentado o colo de minha mãe. Havia uma parede de vidro. O meu pai estava do outro lado do vidro, junto com soldados de capacetes brancos. Nunca me esquecerei deste detalhe.

“Eu sabia que o meu pai seria enforcado dentro de duas ou três semanas. Mas ele me disse que nós iríamos em breve comemorar o Natal, em nossa casa. Sempre perguntei a mim mesmo : “Por que ele estava mentindo para mim?” “

 Ali,o  meu pai mentiu para mim. Eu sabia que ele seria enforcado dentro de duas ou três semanas. Mas ele me disse que nós iríamos em breve comemorar o Natal, em nossa casa. Sempre perguntei a mim mesmo : “Por que ele estava mentindo para mim?”. Afinal, ele sabia que iria morrer em breve. Eu também sabia. E tinha sete anos de idade.
 
Terminada a visita, nós saímos daquela sala pequena . Eu estava muito decepcionado, Porque o meu pai não deveria ter agido daquele jeito. Deveria ter dito: “Nicklas, você tem sete anos de idade. Vou morrer. Fiz coisas terríveis durante toda a minha vida. Eu me arrependo muito. Por favor, não faça o que fiz. Tente levar uma vida honrada. Não a vida de um criminoso como eu”.

Assim, eu poderia ter amado meu pai por estas últimas palavras. Mas ele apenas me disse: “Nicki! Vamos festejar o Natal. Vamos nos divertir bastante juntos!”.
  
Não faz sentido. Aquela foi a última mentira do meu pai. Depois de ter mentido durante a vida inteira, ele, por último, mentiu para o filho”.
   

O senhor confirma que um de seus irmãos nunca teve filhos porque gostaria que o sobrenome Frank desaparecesse do mundo?

“O meu irmão disse algo assim uma vez. Mas não faz sentido. Porque o sobrenome Frank, em alemão, é comum. É como Muller ou Becker. O fato de não querer dar o nome a um filho não quer dizer nada. Nunca fizeram algo contra mim. Quando eu dizia que meu nome era Nicklas Frank, ninguém sabia de quem se tratava.  Mas eu sei que, se eu dissesse que meu sobrenome era Goering ou Himmler, teria passado por maus momentos na Alemanha logo depois da guerra. Porque eu soube da filha de Himmler e da filha de Goering que elas eram imediatamente rechaçadas quanto tentavam algum trabalho. Diziam a elas:  “Vocês são filhas desses ? Não podemos fazer nada. Eu sinto muito,mas vocês têm de ir embora”.
                                    
Hans Frank, condenado número sete no Tribunal de Nuremberg. O que é este nome significa para o senhor, hoje? O senhor finalmente conseguiu ajustar contas com o  passado?

“Nunca vou viver em paz com o meu pai. Porque não posso, jamais, perdoar o que ele fez. Não é apenas o meu pai:  como ele, tantos outros alemães cometeram crimes indescritíveis. Todas estas imagens estão vivas em minha mente. São crimes horríveis. Não perdoamos. Não posso viver em paz com a lembrança do meu pai. Não quero. Porque encontrar a paz é encontrar uma maneira de perdoá-lo. E não posso perdoá-lo”.
                                               

Mas o senhor vive em paz com a consciência?

 ”Não tenho problemas de consciência. Por acaso, não sou brasileiro. Sou alemão. Carrego, portanto, responsabilidade pelo que os alemães fizeram, embora, pessoalmente, não seja culpado. Eu era jovem demais na guerra. Mas estou dentro da história deste povo.    

“Não posso perdoar o que os alemães fizeram – não falo apenas dos nazistas, mas dos alemães – naqueles anos entre 1933 e 1945. Não posso encontrar paz com a Alemanha. Mas amo o país”

“Não posso, então, perdoar o que os alemães fizeram – não falo apenas dos nazistas, mas dos alemães – naqueles anos entre 1933 e 1945. Não posso encontrar paz com a Alemanha. Mas amo o país. Amo a história alemã até 1933:  nós éramos um país criminoso, imperialista e normal, como tantos outros. Tínhamos maravilhosos imperadores, poetas. Tínhamos uma gente, um país, um campo maravilhoso. Mas aí aqueles inacreditáveis doze anos começaram,  para arruinar tudo”.
      
Hans Frank se encontrou com um padre, na noite em que foi enforcado. O senhor depois procurou este padre. Qual é a importância desse encontro ?

“Para mim, foi importante encontrar o padre que tinha acompanhado o meu pai até a forca. Um ano antes do enforcamento, este padre já tinha batizado o meu pai na prisão. Isso quer dizer que o meu pai se tornara católico. Mas não acredito que ele fosse realmente religioso .

Penso que o meu pai esperava que, assim, poderia ter a chance de sobreviver se conseguisse, por exemplo, obter um perdão concedido pelo Papa em Roma. Meu pai contava com este recurso.  O papa Pio XII ensaiou fazer. Mas o gesto foi imediatamente rechaçado pela delegação polonesa -  que ficaria horrorizada se o Açougueiro da Polônia, como meu pai era chamado, pudesse sobreviver graças a um ato de perdão concedido pelo Papa e encaminhado a um tribunal internacional.

Como jornalista, eu tinha curiosidade sobre as outras pessoas, mas ,especialmente, por gente que tivesse se encontrado com o meu pai. De qualquer maneira, o padre com quem me encontrei não era um homem muito educado. Chegava a ser um pouco estúpido”.
 
É verdade que o senhor perguntou ao padre sobre o som produzido pelo enforcamento ?

“Perguntei ao padre como o meu pai estava se sentindo na prisão,  como ele lidou com as acusações e com a condenação à morte e como se comportou na última noite antes de ser enforcado.

O padre me contou duas coisas significativas. Disse-me: “O seu pai tinha medo de sua mãe até na prisão de Nuremberg”. A outra : “A coisa mais terrível que aconteceu com ele no momento do enforcamento foi o barulho produzido pelo pescoço no momento em que foi quebrado. Dava para ouvir em todo o ambiente”.

Devo dizer que este foi o único relato que me fez chorar, porque tratava de uma cena horrível. Mas o padre me descreveu a cena com um sorriso, como se fosse uma piada. Aquilo foi horrível, mas também surpreendente: como o meu pai tinha sido batizado, tiveram de abrir um buraco no capuz que lhe cobria o rosto na hora do enforcamento. Somente assim, o padre poderia fazer o sinal da cruz na testa do meu pai na hora da extrema-unção. Loucura.

De uma maneira estranha, foi emocionante ouvir o pade falar sobre o ruído provocado pelo enforcamento do meu pai. Comecei a chorar. Talvez tenha sido o momento em que mais tive a sensação do que é ser levado à forca e cair no cadafalso, para o fim da vida. 

 
“O meu pai foi o único dos condenados a entrar no local de execução, em Nuremberg, com um sorriso nos lábios. Eis aí um pequeno gesto que merece respeito. Devo dizer que achei esta atitude corajosa”

Mas não tive piedade por meu pai, porque ele merecia este tipo de morte. Como ele tinha feito com que milhões de pessoas sentissem algo parecido, ele deveria experimentar algo assim na pele. E experimentou.

O meu pai foi o único dos condenados a entrar no local de execução, em Nuremberg, com um sorriso nos lábios. Eis aí um pequeno gesto que merece respeito. Devo dizer que achei esta atitude corajosa.

Era o meu pai”.

O que é que levou o senhor a denunciar o próprio pai? O senhor foi movido por razões históricas ou pessoais?

“Em primeiro  lugar, foram razões pessoais. Sou, por acaso, filho deste homem. Mas o que quero é dar um exemplo de como lidar, como alemão, com os pais e avós. Porque sempre se faz silêncio sobre o que realmente aconteceu no III Reich.

A motivação, portanto, foi pessoal: eu queria encarar o que meu pai e minha mãe realmente fizeram, porque, assim, poderia dar um exemplo sobre como lidar com este problema. Talvez a decisão que tomei tenha sido errada. Porque, depois da publicação do primeiro livro, alemães ficaram incomodados com o tipo de linguagem que usei e com as  maldições que lancei  que contra o meu pai . Não acho, então, que tenha sido bem sucedido ao agir assim”.

Com que frequência o senhor pensa no pai, hoje?

“Todo dia. Todo dia penso no meu pai e na minha mãe. Sim. Mas nunca dei a eles a permissão de conduzir minha vida. Vivi minha própria vida. Mas estas lembranças ainda me acompanham todo o tempo. Ainda os amaldiçôo. Não entendo o que eles fizeram”.

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Niklas Frank mostra ao repórter imagens do pai: um "pecado alemão"(Foto:Paulo Pimentel)

Niklas Frank mostra ao repórter imagens do pai: um "pecado alemão"(Foto:Paulo Pimentel)

A entrevista com o filho do carrasco nazista foi publicada, na íntegra, no livro “DOSSIÊ HISTÓRIA” (Editora Globo)

O FILHO DESCOBRE QUE O PAI FOI UM DOS PIORES CARRASCOS NAZISTAS. RESULTADO: DECLARA GUERRA SEM TRÉGUAS CONTRA ELE ( PARTE 1)

qui, 03/12/09
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

O DOSSIÊ GERAL publicou, esta semana, uma entrevista com o pai que escreveu um livro comovente sobre os dois filhos deficientes (ver post anterior).

Tive a chance de gravar uma longa entrevista, numa cidadezinha do interior da Alemanha, com um personagem que vivia uma situação radicalmente oposta  :  um filho que vivia em guerra contra a lembrança do pai -  um carrasco nazista.

Eis o que ficou do encontro com um dos personagens mais marcantes que já encontrei:

 A casa fica no meio do nada, num povoado minúsculo, chamado Eklak, a duas horas de Hamburgo. É um paraíso, para quem quer se esconder do mundo. Ou um tormento, para quem tenta mas não consegue escapar de uma obsessão: em qualquer lugar em que esteja, Niklas Frank estará sempre em guerra contra a memória do pai. A simples menção do nome de Hans Frank provoca sobressaltos em Niklas Frank.

A obsessão do filho pelo pai renderia tomos e tomos de teses psicanalíticas. Seis décadas depois do fim da segunda grande guerra, Niklas Frank, o filho, não se cansa de cumprir o papel de cruzado solitário de uma causa que o mobiliza dia após dia, semana após semana, ano após ano: tudo o que ele quer na vida é manchar, destruir, maldizer, destroçar, espezinhar a memória do pai.

Que herança insuportável será esta- que alimenta a hostilidade do filho para com o pai? Nicklas não consegue conviver com a idéia de que traz, no DNA, a herança de um carrasco. É filho de Hans Frank,o “Açougueiro da Polônia”. O pai entrou para a história pela porta da infâmia: ministro da Justiça de Adolf Hitler, terminou indicado pelo chefe para o posto de governador-geral da Polônia ocupada, cenário das maiores atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial.

O filho do carrasco nazista: em guerra contra a lembrança do pai (Foto: GMN)

O filho do carrasco nazista: em guerra contra a lembrança do pai (Foto: GMN)

 O “açougueiro” era um homem culto. Gostava de ópera. Cumpria as funções de  advogado do partido nazista. Ao desembarcar na Polônia, instalou-se  com a família num castelo, em Cracóvia. De lá, reinava, soberano, rodeado de serviçais, enquanto milhões de prisioneiros marchavam para as câmaras de gás dos campos de concentração ou penavam em trabalhos forçados. Advogado pessoal de Hitler, tinha poderes absolutos como interventor. O território governado pelo Açougueiro abrigava campos de extermínio, como Treblinka, Sobibór e Auschwitz.

O sentimento que o filho devota ao Pai é incômodo. Provoca estranheza. Causa pena. Desperta compaixão. Mas é irremovível: Niklas Frank não perdoa, sob hipótese alguma, as atrocidades que o Pai comandou  

Em seus diários, falava sem meias palavras sobre a necessidade de exterminar o que ele considerava as “forças demoníacas” :

 “Pertenço, até a última fibra do meu ser, ao Fuhrer e à gloriosa missão que ele comanda. Daqui a mil anos, a Alemanha ainda proclamará o mesmo. Servir à Alemanha à servir a Deus.Se Cristo reaparecesse na terra, seria como um alemão. Somos, na verdade, a arma de Deus para a destruição dos poderes demoníacos da terra. Nós guerreamos, em nome de Deus, contra os judeus e o bolchevismo.Que Deus nos proteja!”.

Hans Frank(de preto), ao lado de Adolf Hitler: o "Açougueiro da Polônia"

Hans Frank(de preto), ao lado de Adolf Hitler: o "Açougueiro da Polônia"

Isolado do mundo neste povoado do interior da Alemanha, o filho que tem horror ao Pai sorve uma caneca de café como quem bebe água. Quando a caneca fica vazia, ele interrompe por instantes a entrevista e vai à cozinha, para coletar uma nova dose de cafeína. Os olhos estão fixos numa foto em que o Pai, destinatário da ira acumulada no peito durante décadas, aparece sorridente ao lado de Adolf Hitler. O sentimento que o filho devota ao Pai é incômodo. Provoca estranheza. Causa pena. Desperta compaixão. Mas é irremovível: Niklas Frank não perdoa, sob hipótese alguma, as atrocidades que o Pai comandou.  
 
Num texto que causou polêmica porque desagradou parte da opinião pública alemã, Niklas Frank escreveu:

“Vem, pai, deixe-me despedaçar o orgulho de tua vida!”.

 Julgado e condenado a morrer na forca no Tribunal de Nuremberg, Hans Frank foi executado no dia 16 de outubro de 1946, aos quarenta e seis anos de idade. Deixou cinco filhos. Tentou se matar duas vezes na prisão, porque sentiu que não sairia dali com vida. As duas tentativas de suicídio fracassaram.

A acusação que pesava contra Hans Frank : co-autor de crimes contra a humanidade. Suas últimas palavras: “Jesus, tenha piedade!”.
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Dos cinco filhos do Açougueiro da Polônia, Niklas foi o único que se dedicou à tarefa de denegrir por todos os meios a imagem do pai. Diz que o pai não merece piedade. Porque o mundo não pode, diz ele, se esquecer dos crimes cometidos por gente como Hans Frank.

Nascido seis meses antes do início da guerra, Niklas Frank guarda traumas que, para ele, são incuráveis. O rosto de Niklas Frank assume um ar grave quando ele descreve cenas que, na infância, lhe pareciam inofensivas mas, depois, assumiram um tom tétrico: não se esquece de quando foi levado a um campo de prisioneiros para se divertir com a visão de homens esquálidos que, sob a ordens de guardas,  eram obrigados a montar em burros apenas para serem, em seguida, derrubados no chão. Anos depois, já adulto, é que entendeu o horror do que testemunhara.

Os sobressaltos se acumularam. Descobriu que o pai, um carrasco nazista, teve um caso homossexual quando jovem. A mãe colecionava amantes. Serviçais do castelo na Polônia descreveram cenas escatológicas

Niklas Frank estudou história, sociologia e literatura alemã, mas fez carreira como jornalista da revista Stern. A dedicação ao jornalismo explica a obsessão com que revirou cada detalhe da vida do pai e da mãe.

Os sobressaltos se acumularam. Descobriu que o pai, um carrasco, teve um caso homossexual quando jovem. A mãe colecionava amantes. Serviçais do castelo na Polônia descreveram cenas escatológicas: uma vez, já cansado de grosserias, um maitre urinou dentro da terrina que seria levada à mesa em que os Frank entretinham convidados. Os comensais degustaram a sopa, sem suspeitar da sujeira.                           
 
 Aposentado, Niklas Frank recolheu-se ao povoado no interior da Alemanha. Vive com a mulher. A filha única já saiu de casa.   
De vez em quando, entre uma e outra resposta que pronuncia com ar grave, ele brinca comigo e com o cinegrafista Paulo Pimentel, como se quisesse desanuviar a gravidade das cenas que descreve. Quando digo que vou gravar as perguntas em português, ele recomenda:

- Fale o português clássico – não aquele português cheio de gírias que você usa lá onde você mora!

Permite-se um comentário sobre a pífia atuação da seleção brasileira na Copa do Mundo de 2006. Diz que os brasileiros não jogaram nada.

A pregação de Frank destoa do coro dos que dizem que o nazismo é uma página virada na história alemã. O alemão Frank diz que a Alemanha não vai se desvencilhar desse fardo. A mancha, diz ele, é irremovível.

 Quando confrontado com os crimes que cometeu, o pai de Niklas Frank declarou ao Tribunal de Nuremberg :

- Mil anos se passarão antes que a culpa da Alemanha desapareça.

 O Reich – que duraria mil anos – se tornou um fardo de mil anos. Neste ponto, pai e filho concordam.

 “Depois de toda guerra/ alguém tem de fazer a faxina/As coisas não vão se ajeitar sozinhas/ Alguém tem de tirar o entulho das ruas/para que as carroças possam passar com os corpos/Alguém tem que abrir caminho pelo lamaçal e as cinzas/as molas dos sofás/ os cacos de vidro/os trapos ensangüentados(…)/Não é fotogênico e leva anos/ Todas as câmeras já foram para outra guerra” – é o que reza o poema “O Fim e o Início”,escrito pela polonesa Wislawa Szymborska e divulgado no Brasil pela revista Piauí.

Aos olhos de Niklas Frank, o desfile das carroças nunca acabou.Não vai acabar nunca. Porque elas estão levando as centenas de milhares, os milhões de corpos dos prisioneiros que perderam a vida sob as ordens de Açougueiro da Polônia.


Niklas Frank poderia ser personagem deste poema. É alguém que, solitariamente, se dá ao trabalho de fazer a faxina moral da família Frank, para que as carroças possam passar com os corpos. Aos olhos de Niklas Frank, o desfile das carroças nunca acabou. Não vai acabar nunca. Porque elas estão levando as centenas de milhares, os milhões de corpos dos prisioneiros que perderam a vida sob as ordens de Açougueiro da Polônia.
                   
A  gravação completa do nosso encontro com o filho do Açougueiro da Polônia, numa manhã gelada de Eklak, sob um céu de chumbo que prenunciava tempestade e nevasca:

Qual foi a primeira reação que o senhor teve quando descobriu que tinha um pai que era um notório criminoso de guerra?

“Eu era criança no momento em que os jornais voltaram ser  publicados de uma maneira democrática, logo depois da guerra.  Vi fotos de montanhas de corpos. As legendas das fotos sempre traziam a palavra “Polônia”. Como criança, eu sempre soube que a Polônia era nossa!  Em me perguntava: o que será que a Polônia tinha a ver com aquela montanha de corpos?  Tive,ali, o primeiro choque. Devo dizer que este choque me acompanha por toda a minha a vida, até hoje:  ali, descobri que eu era membro de uma família criminosa.

Três das minhas irmãs caminharam em outra direção: recusaram-se a reconhecer o que este tipo de foto mostrava. Diziam que aquilo era propaganda dos russos e das forças aliadas, os vitoriosos da guerra . Fui em outra direção . Doeu, com certreza. Tive o primeiro choque ao ver as fotos nos jornais. Eram corpos de crianças que tinham a minha idade!

Enquanto eu estava brincando e levando uma vida maravilhosa em Cracóvia, os nazistas estavam jogando crianças contra a parede , para matá-las, ou mandando-as para as câmaras de gás dos campos de concentração, a apenas trinta quilômetros dali. Tive um choque”.
      
Hans Frank foi condenado e executado no Tribunal de Nuremberg. Ao denunciá-lo novamente, o senhor não acha que deu a ele uma segunda setença de morte?

“Com certeza. Eu sentenciei de novo o meu pai à morte. Tentei encontrar algo de positivo sobre a vida do meu pai, mas não consegui. Porque ele era um mentiroso. Tinha um caráter truculento. Era um grande, um grande covarde.

Não encontrei nada que fizesse com que ele merecesse uma pena menor, como a prisão perpétua. Eu teria de condená-lo de novo à morte, por enforcamento. É uma pena, mas, para mim, esta é a maneira correta de agir. Tentei  encontrar, na vida do meu pai, algo que ele pudesse ter feito contra Hitler ou para salvar vidas. Mas ele nunca fez algo assim. Tudo o que ele queria era ser amado por Hitler. Era a única coisa que importava para o meu pai. A única coisa!

O que ele sentia por Hitler era um amor profundo. Eu diria que era um relação quase homossexual. Descobri que meu pai teve uma experiência homossexual quando jovem, com dois professores. A ideologia do nazismo era totalmente contra a homosexualidade.  Então, ele tinha de lutar para que ninguém descobrisse.

 O meu pai era um homem tão bem educado e, ao mesmo tempo,  tão estúpido”….
 
 O senhor acha que o trauma deixado pelo regime nazista um dia vai ser superado, na Alemanha?

 ”Não acredito que exista trauma. Os alemães, especialmente gente comum, tentaram bastante que todo mundo se esquecesse do que tinha acontecido no III Reich :  todas as coisas ruins que ocorreram durante aqueles doze estranhos anos. Mas tivemos a sorte de termos sido forçados a lembrar do que aconteceu. Todos irão se lembrar sempre daqueles doze anos sangrentos.

 Só espero que ninguém se esqueça daqueles anos, tanto aqui na Alemanha como fora. Todo mundo na Alemanha quer comparar os crimes de guerra alemães com outros crimes, como, por exemplo, o bombardeio de Dresden ou o que aconteceu  no Vietnam ou na Coréia ou em Hiroshima.

Todos, no mundo todo, sabem que aquele foi o único período da história universal em que um povo altamente industrializado promoveu o extermínio em massa de gente inocente, em escala industrial. Não se pode comparar com nada.

 Ao fazer estas comparações, os alemães querem diminuir os seus próprios crimes. Graças a Deus, não conseguiram. Porque todos, no mundo todo, sabem que aquele foi o único período da história universal em que um povo altamente industrializado promoveu o extermínio em massa de gente inocente, em escala industrial. Não se pode comparar com nada. O Holocausto foi um comportamento alemão, um crime alemão”.

A SEGUIR: A LEMBRANÇA DA INFÂNCIA : O FILHO DO CARRASCO NAZISTA SE DIVERTE NO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO, SEM TER IDÉIA DO QUE ACONTECIA LÁ



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