Entrevista com Evandro Carlos de Andrade -7/ “Nós, jornalistas, somos convocados para o cinismo” ( e o dia em que o brigadeiro disse qual seria o remédio para o murro que Carlos Lacerda levou)

qui, 30/06/11
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

O impacto produzido no país  pelo suicídio do presidente Getúlio Vargas  não chegou a perturbar pessoalmente o repórter iniciante. Evandro começava ali, inconscientemente, a tecer em torno de si a couraça de “cinismo” que termina envolvendo a pele dos jornalistas :

- “ Não pude ficar horas e horas no Palácio do Catete logo depois do suicídio porque tinha que ir para o jornal o mais rápido possível para  fazer a matéria. Vi o corpo descer. Fiquei ali assistindo  ao velório. Testemunhei uma  comoção que, naquele momento, nem vinha de pessoas notáveis – mas do povo. Não verti nenhuma lágrima. A verdade é que o jornalista se torna – muito rapidamente- um cínico.  Nós, jornalistas, somos convocados para o cinismo, porque   estamos sempre vendo  o horror e a mentira. Mas um choque é sempre  um choque, como foi o suicídio do Getúlio. O que é que se faz uma hora dessas  ? Corre-se para a redação -  que é o ponto de referência. Logo em seguida, fui ao Palácio do Catete, para esperar a hora do início do velório”.

O Diário Carioca descreveria assim,em texto não assinado,na primeira página da edição de 25 de agosto de 1954  :

“Com a cabeça voltada para o quadro que representa o juramento da Constituição de 1891 e os pés para o quadro “Pátria”, a cuja frente se acha um crucifixo,o corpo do presidente Getúlio Vargas recebe,desde as 17: 30 horas de ontem, no salão do Gabinete da Casa Militar da Presidência da República, no Palácio do Catete,as despedidas de milhares de populares que vão lhe fazer a última visita.(…) –”Nada fazia crer que fosse o Presidente se matar”,disseram-nos o general Caiado de Castro e Jango Goulart, com os quais ele conversara minutos antes de se recolher. O sr. Getúlio Vargas se recolheu ao quarto, sem mais uma palavra. Passados uns minutos – o tempo normal para a troca de roupa- ouviu-se um disparo. Acudiu, incontinenti,o sr. N. Sarmanho, que se encontrava na janela da sala contígua (a do elevador privativo do presidente). Já o sr.Getúlio Vargas agonizava. Da janela, o sr.Sarmanho fez um sinal para um oficial, pedindo que fosse o general Caiado avisado de que o sr. Getúlio Vargas havia se matado.Logo em seguida, o general Caiado chegava ao quarto,onde, não resistindo ao impacto da tragédia, foi acometido de forte crise de nervos, sofrendo uma síncope. A seguir, correndo escada acima, o sr.Benjamin Vargas gritava :”Getúlio se matou!”. O Palácio ficou em pânico, a família do presidente acorreu,entre gritos e lágrimas. Também o sr.Oswaldo Aranha logo chegou .Junto à cama, chorando,exclamou :”Abusaram demais da bonda de desse homem !”.

Por que você diz que o Getúlio da ditadura do Estado Novo foi “melhor” que o Getúlio eleito democraticamente, em 1950, para um segundo governo ? – pergunto.

Evandro se anima a fazer um relato que mistura observação política com convivência familiar :

“O Getúlio do segundo governo era uma personalidade decadente”- responde. “O que era que acontecia ? A inflação estava crescendo;os ministros não tinham expressão. Tinha-se formado, entre as chamadas “classes dominantes”, um ressentimento contra o papel que  Getúlio Vargas representava – o de Pai dos Pobres. Já o Getúlio do Estado Novo convocou as principais personalidades políticas do país para fazer um governo sob a ditadura. Os ministros todos de Getúlio eram homens públicos honradíssimos, dedicados e competentes : a elite do Brasil  governando junto com o Getúlio  numa  ditadura. Getúlio pessoalmente era um homem intocável  : despachava em pé no Palácio do Catete olhando pela janela, porque não admitia que ninguém pusesse lhe pusesse as mãos. Com ele,não existia  “tapinha na barriga”. Não havia hipótese. Era um homem que se dava ao respeito -  extremamente conservador. O “revolucionarismo” de Getúlio era uma contingência, porque ele, na verdade, era um conservador extremado. Quando foi ministro da fazenda do governo Washington Luís, Getúlio era um padrão de conservadorismo. Não queria derrubar o Presidente”.

“Admiração pelo Getúlio da ditadura – não pelo Getúlio decadente do segundo governo – só vim a ter depois, ao me informar sobre quem eram as personalidades que o cercaram. O ambiente em minha casa era antigetulista. Minha família tinha índole udenista. Para dizer a verdade, era de índole integralista. Quando eu era menino,dizia anauê (N: saudação do Movimento Integralista). Eu tinha dois ou três tios engajados no integralismo : quando houve o putsch de 1938 (tentativa de golpe dos integralistas contra o governo de Getúlio Vargas), eles tiveram de fugir  para o interior do Mato Grosso”.

“Minhas simpatias iam para a UDN. Vou ser franco :  a minha alma é udenista.Isso ficou em mim. Sou um udenista, mas detestei o golpismo de Carlos Lacerda naquele período. Hoje,tenho admiração pela figura histórica de Lacerda, mas, naquele momento, eu o detestei”.

“Nunca tive paciência para ler “O Capital”, mas tive influências de leituras sobre o pensamento marxista, sobre a análise do capitalismo, sobre a formação do capital. O que eu abominava, sobretudo, era a idéia de golpe militar. Revi posições, mas, no fundo, sou um udenista”.

“O meu udenismo vem da família  : quando em 1945 se iniciou o processo do fim da ditadura do Estado Novo, minha família pendeu para a UDN. Fui junto. A queda de Getúlio obedeceu a uma espécie de progressão. Não foi de uma vez. Getúlio só caiu quando quis fazer do irmão, Benjamin Vargas, o Benja,chefe de polícia”.

“Quem era o meu ídolo entre os udenistas ? Vou dizer baixinho : era o Brigadeiro Eduardo Gomes. Eu via no Brigadeiro a figura de um herói, um homem de uma grande integridade. Nem sei se ele tinha a visão adequada de um Brasil efervescente,como era o país naquele momento. Mas era um homem absolutamente correto -  um padrão moral. Tinha arriscado a vida na revolta dos Dezoito do Forte. Contavam-se duas histórias engraçadas sobre o Brigadeiro. Um dia, ele disse que quem tomou o forte foram  13, não 18. Quando quiseram saber  “mas por que o senhor nunca disse que tinham sido 13 ? “, ele respondeu simplesmente :”Porque  nunca me perguntaram !”. Carlos Lacerda uma vez levou um murro dentro do elevador da Rádio Mayrink Veiga . Dizia-se quem mandou dar o murro foi  o marechal Mendes de Morais, prefeito do Rio de Janeiro na época. Lacerda sempre foi uma fera : comentarista da rádio, denunciava casos de corrupção e combatia o prefeito. Agredido violentamente, Lacerda ficou com um inchaço. Toda a UDN estava reunida na casa de Lacerda quando entra o Brigadeiro Eduardo Gomes. Fez-se silêncio. Todos esperavam que o Brigadeiro dissesse uma frase histórica sobre a agressão.  Mas o Brigadeiro chegou  bem perto do inchaço de Lacerda e disse :

-Bom pra isso é bife cru….. “

Entrevista com Evandro Carlos de Andrade II // O repórter testemunha a cena surpreendente : uma gota de sangue escorre da boca do Presidente morto

sáb, 25/06/11
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

O DOSSIÊ GERAL publica desde ontem trechos do livro que  um dia será concluído ( ver post anterior ) :  uma longa entrevista com o jornalista Evandro Carlos de Andrade – que morreu há exatamente dez anos, em junho de 2001. Aqui, o repórter iniciante testemunha, no Palácio do Catete,  o choque provocado pelo suicídio do presidente Getúlio Vargas :                             

Demitido do jornal Correio Radical por ter participado de uma greve por melhores salários, o repórter Evandro Carlos de Andrade já tinha conseguido um novo emprego – no Diário Carioca  – quando testemunhou a cena inesquecível : uma gota de sangue escorrendo do canto direito da boca do presidente da República. A imagem atravessaria os próximos cinquenta anos guardada em algum escaninho da memória do repórter. Era impossível esquecê-la. Porque o Presidente estava morto.

                                   A gota de sangue dava um toque surreal  à maior tragédia da história republicana brasileira. Getúlio Dornelles Vargas tinha se suicidado com um tiro no peito, às oito e meia da manhã daquele 24 de agosto de 1954, em seus aposentos no terceiro andar do Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. O tiro no peito de Getúlio foi o “batismo de fogo” do repórter estreante. Evandro foi correndo ao Palácio. Depois da autópsia, o corpo seria exposto à visitação pública, no salão onde funcionava o Gabinete Militar da Presidência da República, no térreo. O caixão foi transportado  do pavimento superior ao andar térreo em meio ao empurra-empurra da multidão que ocupava cada centímetro do salão. O balanço do caixão deve ter provocado o movimento da gota de sangue no canto da boca  presidencial .Intimamente,o repórter ficou matutando sobre o surrealismo da cena : um corpo morto dava sinais (mínimos)  de atividade.

                              Em meio à confusão que se instalou no Palácio, Evandro bem que pode ter cruzado com um dos chefes de gabinete da presidência, o embaixador José Sette Câmara – que, quarenta anos depois, descreveria assim o que aconteceu no instante em que o caixão foi simbolicamente entregue à curiosidade popular :

                              -  Salas,salões,corredores fervilhavam de gente, num vozear aturdidor. Somente às cinco da tarde um rebuliço vindo do lado da escadaria indicava que chegara o momento em que Getúlio Vargas desceria pela última vez de seu claustro no terceiro andar. Corri à porta da ante-sala que dá para as escadas.Vi, então, um espetaculo inesquecível. As escadas apinhadas de gente não davam passagem para ninguém.  Emergindo do terceiro andar, o ataúde, que no ambiente estreito das escadarias se afigurava enorme e desproporcional, negro e maciço, descia de uma maneira fantasmagórica. Não era carregado por ninguém, pois a passagem pelas escadas à cunha era impossível. Deslizava por sobre as cabeças, movido por mil mãos amigas e carinhosas, escorregava lentamente, aos balanços, em meio a choros, gritos histéricos, lamentos, pedaços de frases, invocações, protestos de fidelidade, objurgatórias, tudo na excitação dos empurrões, cotoveladas e queixas da multidão comprimida que não podia se arredar um centímetro. Ao aparecer o negro caixão à porta do salão do Gabinete Militar, ocorreu uma explosão coletiva de dor, revolta, tristeza, indignação. Gritos excitados, soluços doridos, brados furiosos, tudo aquilo se misturou num guaiar gigantesco e desencontrado da multidão que ali se comprimia. O caixão prosseguia no seu fantástico escorregar sobre as cabecas do povaréu, em direção à essa armada no centro do salão. Alguém, na ânsia de vislumbrar o corpo de Getúlio Vargas, tentou em um salto pendurar-se num dos enormes lustres, que desabou com o fragor dos cristais quebrados, entremeado de gritos de dor dos que eram atingidos pelos pedacos do lustre despencado(…) Nós, funcionarios do Palácio, fomos os primeiros a aproximarmo-nos do caixão. Lá estava ele, debaixo da tampa de cristal. O lenço passado sob o maxilar e atado sobre a cabeca não tinha sido retirado. Notei que a tampa do caixão comprimia as suas mãos, embranquecidas no lugar da pressão. O terço de Apolonio Sales estava entre os seus dedos. Durante o velório,voltei várias vezes ao estrado para curvar-me diante da visão ainda inacreditável para mim de GetúlioVargas morto” .    

                                        As cenas de histeria da multidão,o horror desenhado no rosto dos ministros, o sentimento generalizado de incredulidade, tudo se dissipou na memória do repórter Evandro Carlos de Andrade meio século depois. Ficou a lembrança da gota de sangue no canto da boca : “memória seletiva”  em estado bruto.

                                         Evandro aproxima-se do gravador, ajeita-se na poltrona, descreve assim a imagem inesquecível : 

                                          “Sem dúvida,a lembrança mais forte que guardei do velório de Getúlio Vargas foi esta : a do momento em que conduziram o corpo  por uma escada estreita, em direção à sala apinhada de gente. Com o sacolejar, em meio ao tumulto de tanta gente chorando, vi uma gota de sangue escorrer da boca do presidente. Os médicos do Instituto de Medicina Legal tinham acabado de fazer a autópsia. Um detalhe me chamou a atenção  : vestido com uma jaquetão grafite ,Getúlio tinha os mãos cruzadas; eram mãos grossas, com dedos curtos e peludos. Pela primeira vez , eu via o presidente tão de perto. E ele estava morto. Quando menino, eu já tinha desfilado diante de Getúlio Vargas, na Avenida Rio Branco, pelo meu colégio. Batia surdo na banda da escola. Desfilávamos para o Presidente no chamado “Dia da Raça”. Vivia-se sob a ditadura do Estado Novo. Além de desfilar, participei também de um grande coro de estudantes que se apresentava para Getúlio Vargas, no estádio do Vasco da Gama,em São Januário,sob a regência do maestro Heitor Villa-Lobos. Cada turma do colégio tinha um canto. Eu tinha de cantar aqueles versos “oh, manhã de sol…..!” .Tínhamos de ensaiar tudo na escola, antes de sermos regidos pelo maestro” .        

                                           “Eu, que tinha desfilado para Getúlio Vargas como estudante, encontrei-o de novo no poder quando comecei a trabalhar em jornal. Quando  ouvi  pelo rádio a notícia da morte do presidente, eu estava em casa. Corri para a redação do Diário Carioca. Em pouco tempo,chega  Prudente de Morais, Neto -  que, com o pseudônimo de Pedro Dantas, assinava uma coluna política em que tinha feito uma grande campanha  contra a posse de Getúlio Vargas na presidência. Dizia que Getúlio só poderia ser   empossado se  alcançasse a maioria absoluta dos votos. A tese da maioria absoluta era uma invenção. Não havia nada assim na Constituição que impedisse a posse.  Mas Prudente de Morais,Neto lutou –e muito- na coluna contra a posse.  Agora, poucas horas depois do suicídio do presidente, ele estava ali, na redação do jornal. Lá estávamos eu, Pompeu de Souza, Carlos Castelo Branco.  Uma cena que  me chocou foi ver Prudente tomado por um ódio surpreendente – logo ele, uma pessoa doce, boníssima : quando entrava na redação, cumprimentava, um por um, todos os funcionários.  O que me chocou naquele momento foi  vê-lo  relhando os dentes e dizendo “Filho da puta !”, ao se referir a Getúlio.  Prudente  percebeu imediatamente que o suicídio de Getúlio Vargas iria mudar todo o rumo da política no Brasil”.



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