A resposta de Thatcher a Fernando Collor:”Não! Não! Não! Não conte comigo nem com o governo britânico!” (A FHC, ela diria que mandato de 4 anos é “ridículo”)

seg, 08/04/13
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

Fiel ao apelido que ganhara, a “Dama de Ferro” Margareth Thatcher já deu uma “bronca” num presidente brasileiro.

O presidente era Fernando Collor de Mello.

Recém-eleito para a Presidência da República, ele fez um “tour” de apresentação pelos gabinetes de governantes europeus. Queria apresentar seus planos. Uma das audiências era com a então primeira-ministra britânica. Collor propôs a ela uma alternativa para que a dívida externa dos países “emergentes” fosse reduzida.

A reação de Thatcher foi fulminante.

Quando perguntei a Fernando Collor – já ex-presidente – qual foi o comentário mais surpreendente que ele ouviu de um governante estrangeiro, nos anos da presidência, ele descreveu, assim, a cena com Thatcher:

“O mais surpreendente comentário que ouvi foi feito pela senhora Margareth Thatcher, no momento em que eu, presidente eleito mas ainda não empossado, visitava chefes de estado dos principais países, para comunicar que eu haveria de encerrar a moratória e, assim, inserir novamente o Brasil no contexto internacional e nos fluxos comerciais.

Para que a reinserção acontecesse, eu precisava de certa condescendência por parte dos credores, porque, assim, poderíamos reafazer nossas contas e regularizar nossa dívida. Eu tinha uma tese que, afinal, saiu vitoriosa: a redução da dívida de todos os países emergentes em 30%. Era algo que já se comentava. Os Estados Unidos acabaram encampando essa ideia dentro do chamado Plano Brady, em função do secretário do Tesouro americano à época, Nicholas Brady. Todos tinham simpatia em relação à ideia. 

Quando chegou o momento de expor o assunto no encontro com a senhora Thatcher, ela disse: “Desculpe, mas não entendi o que o senhor falou….”. Pensei comigo mesmo: “Meu inglês não deve estar tão eficiente….”. Repeti tudo. A senhora Thatcher, então, me disse: “Deixe-me ver se entendi corretamente. O senhor quer dizer que, por exemplo, o senhor me deve 100, mas, em vez de pagar 100, quer pagar 70. É isso ? “. Respondi: “É exatamente isso!”. A senhora Thatcher respondeu: “O senhor me desculpe. Isso é uma brincadeira! Isso é uma brincadeira ! Não, não conte comigo nem com o governo britânico. Não! Não ! Não! Se o senhor deve 100, o senhor tem de pagar 100! Poderemos discutir como o senhor vai pagar, mas dever 100 e querer pagar 70, negativo! Comigo o senhor não conta!”.

Por coincidência., quando fiz pergunta parecida ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ele citou, também, o nome da então primeira-ministra Thatcher como autora de um comentários mais “surpreendentes” que ele teve a chance de ouvir de um dirigente estrangeiro:

“Nós estávamos na Embaixada do Brasil, num almoço com Margareth Thatcher. Era a Dama de Ferro. A certa altura, ela me pergunta : “Quanto tempo dura o mandato de um presidente no Brasil ?”. Eu disse: “Quatro anos”. Ela riu: “That´s ridiculous!” ( “É ridículo”). Em quatro anos, ninguém faz nada! Não é possível! “. Pensei : meu Deus do céu, será que não dá para fazer nada? Eu estava no começo do mandato….”

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PS: A íntegra de nossas entrevistas com os ex-presidentes Fernando Collor, Itamar Franco, José Sarney e Fernando Henrique Cardoso foi publicada no livro “Dossiê Brasília: os Segredos dos Presidentes” / Editora Globo

 

 

 

O segredo que Itamar guardou até o fim: o dia em que recebeu,na Presidência, uma proposta mais “tenebrosa” do que fechar o Congresso Nacional

sáb, 02/07/11
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

Definitivamente, “Itamar não é fácil”. A presidência da República também não. Ponto. Parágrafo.

Quando assumiu o poder, no rastro do furacão de denúncias que varreu Fernando Collor do Palácio do Planalto, Itamar Franco aprendeu logo duas lições. Primeira: ao contrário do que as aparências fazem supor, a presidência é, essencialmente, um cargo solitário. (Daqui a pouco, ele falará sobre a sensação de ver desfilar diante dos olhos, em seus “momentos de reclusão” palaciana, nos fins de noite, as imagens de tudo o que poderia acontecer num país eternamente sujeito a solavancos.)

Segunda lição: quem ocupa a presidência deve estar preparado para ouvir propostas capazes de tirar o sono. Itamar Franco seria surpreendido  pela proposta de um grupo de parlamentares – e se o presidente, num arroubo, fechasse o Congresso Nacional para depurar o parlamento da presença de roedores do dinheiro público?

O depoimento que o ex-presidente gravará neste final da manhã foi precedido de incertezas tipicamente itamarinas: durante quatro meses, houve troca de e-mails e telefonemas com assessores do homem, em Juiz Fora e na Embaixada do Brasil em Roma. A matéria complexa chamada Itamar Franco poderia render um curso intensivo: as aulas valeriam inclusive para amigos próximos- que, somente assim, aprenderiam a antever as reações do ex-presidente. Forasteiros, como repórteres interessados em extrair confissões da esfinge, aprendem logo a lição: nada é cem por cento fácil com ele.

Lá vem ele. São onze da manhã. Itamar prefere gravar a entrevista na sede da TV Panorama, em Juiz de Fora. Quando desce do banco traseiro de um carro de vidros escuros, exibe a inconfundível contribuição capilar dada à iconografia política brasileira: o célebre topete, alegria dos cartunistas. Não faz frio, mas Itamar enverga um suéter sob o paletó azul escuro. A gravata é vermelha.

Como se fosse um candidato prestes a debater com adversários eleitorais, o ex-presidente traz debaixo do braço uma pasta com documentos que compulsará para reforçar o que diz. Guarda com especial cuidado um texto em que o ex-ministro Delfim Netto elogia a performance do governo Itamar na área da economia. As palavras de Delfim são a arma que Itamar faz questão de empunhar para se defender da rejeição que (ele jura) São Paulo lhe devota. Não se conhecem demonstrações da suposta rejeição paulista a Itamar. Mas, na intricada psicologia itamarina, há sempre espaço vago para acomodar desconfianças desse calibre.

Uma frase famosa, atribuída a Tancredo Neves, diz que Itamar guarda rancor na geladeira. Eis um exemplo: o ex-presidente não engole até hoje a capa que a revista Veja lhe dedicou no início do mandato, com uma manchete que questionava a estatura do ministério recém-nomeado. Quando Itamar deixou o governo, contudo, a mesmíssima Veja publicou um balanço que lhe era francamente favorável.

Assinada pelo jornalista Roberto Pompeu de Toledo, a longa matéria –  “Enfim, um presidente que deu certo” – lembrava o marco zero da era Itamar: “Um veterano sócio do clube juiz-forano, Mauro Durante, já advertira, semanas antes, ao observar que o movimento no gabinete do vice aumentava na medida em que se tornava mais real o impeachment de Collor: ‘Os urubus estão chegando’. Agora, urubus, perigosas águias, pacíficas pombas, papagaios tagarelas e caladas corujas, sem esquecer os tucanos, comprimiam-se naquele pequeno espaço, em que encontravam um presidente tão falto de solenidade que nem preparara discurso para a ocasião”.

Pois bem: Itamar, hoje, não cita os elogios da revista. Prefere guardar, em prateleira de honra da geladeira dos rancores, a capa que o enfureceu. “Itamar não é fácil” é a frase que se ouve à exaustão entre os que tiveram a oportunidade de conviver com ele.

Quando convidado por Fernando Collor para ser candidato a vice, nas eleições presidenciais de 1989, Itamar Franco protagonizou de novo intermináveis cenas de suspense antes de tomar a decisão. Disse “sim”. Terminou virando presidente, o que lhe garantiu de uma vez por todas a fama de “sortudo”. Itamar Franco aceita de bom grado o adjetivo, mas despachará diretamente para a geladeira dos rancores quem disser que ele escalou a rampa da política por obra e graça do “acaso”. Com uma ponta de irritação, lembra que virou presidente não por acaso, mas porque a Constituição assim determinava. Recusa-se a estender a pesada troca de farpas com o antigo cabeça-de-chapa, Collor. Fora da gravação, diz que começou a discordar do então presidente já na primeira semana de governo, quando do traumático confisco do dinheiro depositado em cadernetas de poupança e em contas correntes. “Ali aconteceu o primeiro conflito”, confessa.    

Os vocábulos estocados nos dicionários da língua portuguesa não são suficientes para adjetivar a personalidade do engenheiro Itamar Augusto Cautiero Franco. O homem já foi chamado de temperamental. Imprevisível. Surpreendente. Indecifrável. Enigmático. Um adjetivo, contudo, ficou colado ao nome de Itamar Franco quase como se fosse outro sobrenome: “mercurial”. O problema é que a palavra não existe nos dicionários – pelo menos, não no sentido usado pelos cronistas políticos para se referir ao ex-presidente. Lingüistas, correi: Itamar Franco conseguiu criar um problema para os dicionaristas.

Dono de uma coluna que trata da língua portuguesa no site da revista eletrônica No Mínimo, o jornalista Sérgio Rodrigues foi abordado por um leitor intrigado com o uso da palavra “mercurial” para definir personalidades sujeitas a rompantes – como, por exemplo, o presidente da Argentina, Nestor Kirchner, capaz de abandonar pelo meio uma reunião internacional, sem disfarçar o tédio ou o descontentamento. Rodrigues foi a campo para matar a curiosidade do leitor: de fato, lexicógrafos brasileiros limitam-se a dar ao adjetivo mercurial o sentido de “relativo a mercúrio”. Nada a ver com oscilações de temperamento. O que explica, então, o uso da palavra com sentido tão diferente?

A explicação do tira-dúvidas Rodrigues: “Mercurial é um estrangeirismo semântico, isto é, uma palavra que teve o sentido tradicional alterado ou estendido por contágio de outro idioma. Em dicionários de inglês, encontraremos a seguinte definição: ‘sujeito a alterações bruscas e imprevisíveis; que tem comportamento errático; temperamental’. Exatamente como Kirchner, o bocejador. Ou, a propósito, Itamar Franco, certamente a pessoa que mais foi chamada de ‘mercurial’ na história da imprensa brasileira”. Resumo da ópera: para tentar definir Itamar Franco, os cronistas tiveram de recorrer aos dicionários de inglês.

Quando fala, como vai fazer agora, a esfinge de Minas sabe guardar segredos. Cita, mas não revela, um conselho “tenebroso” que teria recebido enquanto ocupava a presidência – algo ainda pior do que a sugestão de fechar o Congresso. Mas termina fornecendo pistas reveladoras sobre os métodos que seguiu quando era o homem mais poderoso do Brasil. Admite que passava a imagem de um presidente cerceado pelo poderoso “primeiro-ministro” Fernando Henrique Cardoso. Mas avisa aos navegantes: a encenação era planejada. Não havia amadorismo ali.

“Itamar não é fácil”: até as pedras das ruas de Juiz de Fora sabem que o ex-prefeito, ex-senador, ex-governador e ex-presidente nunca foi dado a fazer confidências a repórteres. Quando baixa a guarda, porém, o mercurial-mor da República é capaz de produzir depoimentos reveladores para quem tenta entender o enigma Itamar Franco.

CONFIRMADO : POLÍTICOS SUGERIRAM AO PRESIDENTE ITAMAR QUE FECHASSE ,POR UM TEMPO, O CONGRESSO NACIONAL

Que segredo o senhor teve de guardar quando estava na presidência mas hoje pode contar?

Não sei se posso contar todos os segredos. De pronto, posso mencionar um, ocorrido quando assumimos o governo. Dentro da turbulência e da falta de auto-estima que o País vivia, nosso primeiro objetivo, naquele momento, era a manutenção do estado de direito e da democracia. Eu, particularmente, tinha lutado pela democracia desde jovem, desde que tinha sido prefeito de Juiz de Fora. A primeira preocupação, portanto, era essa.

Quando estava tentando formar o ministério, falei com uma figura muito importante, que ocuparia um cargo fundamental. A resposta que obtive foi: “Itamar, gosto tanto de você, mas, pelo amor de Deus, me deixe onde estou, porque você não vai durar 48 horas na presidência”. Aquilo realmente me trouxe preocupação.

Resolvi substituir os ministros militares, por quem tinha muito respeito. Sempre tive, aliás, muito respeito pelas Forças Armadas. Mas eu tinha de fazer a substituição dos ministros militares. Fernando Henrique Cardoso, a quem nós já havíamos escolhido para ser ministro das Relações Exteriores, assustou-se um pouco: achou que aquilo poderia impedir a continuidade do governo.

Tivemos durante algum tempo a sensação de que poderia não haver uma continuidade – sobretudo depois que determinada revista, já na primeira semana após a nossa posse, publicou, na capa, um título provocado pelo fato de que não havíamos nomeado nenhum ministro de São Paulo para a área do Ministério da Fazenda ou do Planejamento. Tínhamos escolhido um nordestino e um mineiro: Gustavo Krause, para a Fazenda, e Paulo Haddad, para o Planejamento, dois grandes ministros, dois grandes amigos. Mas a revista veio assim: “Ministros pífios”(O ex-presidente refere-se à Veja – que,  na edição de 7 de outubro de 1992,  estampava na capa o seguinte título: “Início pífio: Itamar monta um ministério de compadres”). A gente já imaginava que atrás daqueles “ministros pífios” poderia haver outro movimento…

O importante é que, ao longo do processo que vivi como presidente da República, sempre me preocupei, até por formação, com a manutenção do estado de direito. É uma formação que vem de dentro de casa e também da atividade política, desde os tempos de prefeito da minha querida cidade de Juiz de Fora. Tantos lutaram pelo estado de direito, um ideal que perseguimos ao longo da vida. Queríamos também dar ao País uma nova ordem econômica, o que terminou acontecendo, realmente.

É verdade que o senhor recebeu uma sugestão para fechar o Congresso?

Você vai me colocar numa situação difícil. Mas é verdade. Só não vou dizer o nome dos parlamentares. Vou preservar o nome dos parlamentares porque acho que devo manter esse detalhe sem uma revelação pública. Nós estávamos no palácio, quando dois deputados e um senador entraram de repente, abruptamente, no gabinete e disseram: “O Congresso enfrenta uma crise muito séria. Há corrupção generalizada na área da comissão de orçamento. Quem sabe, você fecharia o Congresso? Faria uma limpeza e, então, daríamos uma nova ordem institucional ao País”.

Falei: “Não! Não! Eu quebraria tudo aquilo que aprendi desde jovem, tudo aquilo que sinto. O Congresso é fundamental num processo democrático. Comigo não contem! Vamos resolver a crise no Congresso. O governo dará todo o apoio que for necessário”. Tanto deu que criou uma comissão de notáveis, encarregada de dar tudo aquilo que a comissão orçamentária precisasse. O que se viu ? Deputados foram cassados.

Quando ouvi a proposta, vivi uma hora difícil. Houve uma segunda vez, um diálogo mais particular. “Vamos fechar o Congresso, vamos limpar, vamos fazer assim, tipo De Gaulle?” (Em meio à crise provocada pelos protestos de estudantes e operários em 1968 em Paris, o general Charles De Gaulle, presidente da França, dissolveu o parlamento, convocou novas eleições e obteve grande vitória eleitoral). Respondi: “Como ‘tipo De Gaulle’? Nós estamos longe da França! Vamos manter a situação. A minha idéia é: custe o que custar, nós entregaremos a faixa ao novo presidente da República, que será eleito democraticamente, como exige e quer a sociedade brasileira. Tenho pedido a Deus que me dê sempre humildade, sabedoria e, sobretudo, equilíbrio para que possa entregar o governo ao sucessor de uma maneira democrática”.

Em que altura do mandato o senhor recebeu a sugestão dos deputados e do senador para fechar o Congresso Nacional?

A proposta foi feita logo que houve a crise da Comissão de Orçamento. Deve ter sido em outubro, novembro de 1993. A crise continuou em 1994. Por que fechar o Congresso? Por que o Congresso não poderia resolver os seus problemas? Há um aspecto importante: em toda crise, sempre respeitamos as decisões do Congresso. Mas, quando a crise ocorria no Executivo, nós sustávamos imediatamente o problema.

Tive um problema com o chefe da Casa Civil, Henrique Hargreaves, amigo fraternal, a quem eu conhecia há anos. O pai de Hargreaves tinha sido meu líder na Câmara dos Deputados. Tenho, portanto, uma amizade fraterna com o ministro Henrique Hargreaves. Quando houve um episódio em que estavam querendo envolvê-lo, o próprio Hargreaves me procurou: “Itamar, é melhor eu sair. Depois, se você quiser, volto. Mas só depois que eu resolver o problema”. Assim aconteceu. (Acusado de ter ligações com irregularidades descobertas na Comissão de Orçamento do Congresso, o chefe da Casa Civil se afastou em novembro de 1993 e voltou ao cargo em fevereiro de 1994, depois de inocentado.)

O então  ministro da Fazenda, hoje deputado, Eliseu Resende, é um grande amigo que tenho. Mas eu dizia: “Você é o ministro. Quando o Senado da República começa a discutir quem pagou suas diárias de hotel em Nova York, diminui muito o ministro da Fazenda. Infelizmente, você não pode continuar até resolver esse problema”. (Eliseu Resende perdeu o cargo depois da publicação de denúncias de que favoreceria a empreiteira Norberto Odebrecht). A mesma coisa aconteceu com o ministro das Minas e Energia que, de repente, faz um bilhete em que dizia que uma obra deveria ser dirigida para apoiar o candidato Fernando Henrique Cardoso. Tive de tirá-lo também. (Em memorando interno que vazou para a imprensa, o então ministro de Minas e Energia, Alexis Stepanenko, recomendava a assessores que programassem a inauguração de obras para antes das eleições.)

Internamente, portanto, agíamos na mesma hora. Não deixávamos. Podem me negar tudo – menos a percepção de que, em qualquer crise, nós sabíamos que o poder legislativo deveria ter, sempre, a solução dos problemas atinentes.

UM MISTÉRIO :  O CONSELHO “TENEBROSO” QUE ITAMAR RECEBEU ERA AINDA “PIOR” DO QUE FECHAR O CONGRESSO

Qual foi o pior conselho que o senhor ouviu quando era presidente da República?

Prefiro não dizer. Recebi conselhos complicados. Em um regime presidencialista, o presidente é um homem solitário. Não se deve achar que o presidente tem aqueles que o cercam, os amigos, os ministros. É diferente quando o presidente vai para o quarto: em seus momentos de reclusão, ele vê passar rapidamente diante dos olhos e na mente tudo o que  acontece e o que pode acontecer no País. Certos conselhos que recebi prefiro não revelar: foram tão tenebrosos que prefiro lembrar das coisas boas do meu governo.

Mas o pior foi o de fechar o Congresso?

Houve um pior.

 Não quer dar nenhuma pista?

Não. Mas vamos ser sinceros: fechar o Congresso é complicadíssimo. Tivemos um presidente que fechou o Congresso durante dias. (O Congresso Nacional foi posto pela última vez em recesso no governo do general Ernesto Geisel, em abril de 1977, com base no Ato Institucional nº 5 – que conferiu poderes ilimitados ao Poder Executivo de dezembro de 1968 a outubro de 1978). Não foi bom para o País. Como não é boa para o País nenhuma crise. O governo acha que a crise não existe. Pensa que a crise pode ser tamponada e escondida, tenta impedir que uma Comissão Parlamentar de Inquérito se instale. Isso é mau para o País. Porque a crise se agrava e se aprofunda. É o que acontece também quando o presidente resolve manter nos cargos elementos do governo que estão processados pelo Supremo Tribunal Federal ou acusados deste ou daquele delito. Não estou entrando no mérito. Mas estou dizendo que são quistos que não devem existir. Isso, no entanto, é problema de cada presidente.

Qual foi o momento mais dramático que o senhor viveu no Palácio do Planalto?

Quer queira ou não, o presidente é um homem solitário no regime presidencialista – sobretudo, nas crises e nos momentos em que precisa tomar decisões difíceis. São decisões que, às vezes, chocam a alma e a mente do presidente. Defendo o regime parlamentarista desde que era rapaz, desde os tempos de estudante de engenharia. Basta dizer que o meu diretório acadêmico foi um dos primeiros a imprimir o parlamentarismo no estatuto. Imagine só: engenheiros estudando o parlamentarismo! Coincidentemente, fui orador da turma de engenharia: meu paraninfo, o doutor José Bonifácio, fez um discurso de apologia ao parlamentarismo, uma idéia que sempre me impregnou.

O parlamentarismo resolve facilmente as crises. É o que se vê na Itália. O presidente fica imune a qualquer crise. Cai o primeiro-ministro ou cai o gabinete, mas a nação não sofre nenhuma perturbação forte. Já as turbulências do presidencialismo podem levar a crises institucionais, se não se tomar cuidado. São crises institucionais que, às vezes, independem do presidente e independem da própria sociedade. Mas, quando a crise avança… Costuma-se dizer no Senado: “A gente sabe como uma CPI começa, mas nunca sabe como termina”.

Os momentos mais dramáticos foram as primeiras noites. Aquilo martelava os meus ouvidos: “Não dura 48 horas. Não dura 48 horas.” Devo dizer que aquilo não apenas martelava os ouvidos, mas machucava a alma e obrigava a mente a achar que aquela era uma expressão que não vingaria num país que tinha lutado tanto para alcançar a democracia.

Qual foi o comentário mais surpreendente que o senhor ouviu de um dirigente estrangeiro?

Sempre imaginaram que o Brasil não era um país realmente democrata. Pensavam que não éramos um país que buscava, como sempre buscou, o estado de direito. O Brasil vivia sob um estado de direito no final do meu governo. Fomos nessa época, em dezembro de 1994, à famosa Cúpula das Américas, a reunião em que se ia discutir a Alca (Área de Livre Comércio das Américas), em Miami.

Resolvi levar comigo o presidente eleito Fernando Henrique Cardoso. Eu era o presidente da República, ele era o presidente eleito. O fato de eu levar o presidente eleito Fernando Henrique Cardoso e dar a ele todas as honras, a ponto até de me afastar um pouco, surpreendeu aos que pensaram “O Brasil, então, mudou! O Brasil tem um presidente que traz o  presidente eleito!” Por que eu levei? Porque ele tinha sido eleito por nós. A eleição de Fernando Henrique Cardoso dependeu do Plano Real, sobretudo. Pode ele não gostar, porque costuma dizer que ele é quem fez o Plano Real.

Não discuto nem brigo: um dia, vão ver que a assinatura não foi a de Fernando Henrique. Porque muitos trabalharam no Plano Real: Paulo Haddad, Gustavo Krause, Eliseu Resende, Fernando Henrique Cardoso e o grande sacerdote do plano, o ministro da Fazenda, Rubens Ricúpero. Lamentavelmente, o ministro Ricúpero teve de sair, pelas condições que todo o Brasil conhece. Depois, veio o ministro Ciro Gomes, a quem muito devo também. Mas, naquele instante, Fernando Henrique se agarrou ao Plano Real. Como o plano não era uma planta de beira de rio, que vai embora na primeira enchente, Fernando Henrique ficou agarrado a ele. Assim, elegeu-se, independentemente de todas as qualidades que tenha.

(Ao todo, o presidente Itamar teve seis ministros da Fazenda: Gustavo Krause- outubro de 1992 a janeiro de 1993;Paulo Haddad-  janeiro a março de 1993; Eliseu Resende-  março a maio de 1993; Fernando Henrique Cardoso- maio de 1993 a abril de 1994; Rubens Ricupero – abril a setembro de 1994; Ciro Gomes-  setembro de 1994 a janeiro de 1995.)

Quando o presidente eleito Fernando Henrique foi comigo para Miami, deixei que ele aparecesse sempre em primeiro plano. Em outras ocasiões, durante meu governo, deixei que ele aparecesse em primeiro plano, ao contrário do que esperavam os que não o queriam como meu candidato. Eu, às vezes, até me afastava. Ria quando a imprensa dizia: “Fernando Henrique é o primeiro-ministro…”

Eu até achava bom, porque aquilo favorecia um homem que, nas primeiras pesquisas (eleitorais), tinha 16% (de intenções de voto) contra 44% de Lula. Fernando Henrique, então, precisava aparecer comigo. Isso era feito não porque eu fosse bobo: era proposital! Mas a imprensa achava que eu era bobo. Fui deixando Fernando Henrique ser “primeiro-ministro”. Preciso dizer, aqui, o seguinte: depois de muito tempo na história republicana, nós fizemos o nosso sucessor – e sem usar a máquina administrativa!

Quando levei o presidente eleito comigo para a reunião de Miami, presidentes que ali estavam – acredito que até o presidente Bill Clinton – notaram: “Interessante – o Brasil traz o presidente eleito. O processo democrático vai ter continuidade com Fernando Henrique Cardoso”.

O senhor nomeou Fernando Henrique Cardoso ministro da Fazenda, no Diário Oficial, sem que ele tivesse aceitado o convite?

Eu tinha enfrentado uma crise, triste, para mim: a destituição do ministro Eliseu Resende, às duas e meia da madrugada, quando eu disse a ele o que pensava em relação ao problema discutido no Senado da República. Peguei o telefone: “Fernando, estou com necessidade de um ministro da Fazenda. Vejo que você, apesar de sociólogo, tem as qualificações para assumir neste momento…” Diga-se de passagem que nós nos dávamos muito bem na época. Disse a Fernando: “Se você pudesse assumir o Ministério da Fazenda…” Fernando Henrique não me disse nem sim nem não. Ficou de pensar. Mas resolvi publicar a nomeação. Se ele não quisesse, eu teria revogado.

Isso foi uma maneira de forçá-lo a aceitar? 

Fez bem a ele.

ITAMAR FALA DE UM ASSUNTO QUE O INCOMODA :  O “CONSTRANGIMENTO”  DE TER SIDO FOTOGRAFADO, NUM CAMAROTE DO SAMBÓDROMO, AO LADO DE UMA MODELO QUE NÃO USAVA CALCINHA

O fato de uma modelo ter sido fotografada ao lado do senhor, numa pose indiscreta, foi o momento mais constrangedor que o senhor viveu como presidente da República?

Aquele foi o momento mais constrangedor. Mas se aquela modelo entrou no camarote, pergunto: eu poderia pôr um espelho embaixo, para verificar se a pessoa estava nua? Não tinha jeito! Não podia fazer. Ou podia pôr um espelhinho? Se soubesse, talvez pusesse, sim, um espelho grande, para ver quem estava sem calça ou com calça… Mas aquele foi um momento de muito constrangimento. (Depois de ter desfilado no Sambódromo, no Rio de Janeiro, a modelo Lilian Ramos posou ao lado do presidente vestindo apenas uma camiseta curta sobre o corpo nu – os flagrantes registrados pelos fotógrafos, postados abaixo do camarote, correram o mundo nos dias seguintes.)

Não sei se ele se recorda, mas fui o primeiro governador de estado a fazer a campanha do então candidato Lula. Logo que assumi o governo, nós o lançamos, em Ouro Preto. Nem candidato ele era. Depois, ao longo do meu mandato de governador, defendi a candidatura do hoje presidente Lula, junto com José Dirceu, a quem quero muito bem. Fui igualmente o único governador que esteve presente ao último comício de Lula, em São Bernardo do Campo, quando ele se debulhou em lágrimas. Também emocionado, deixei as lágrimas caírem, debaixo da chuva. Não sei se o presidente Lula se recorda , mas ele chegou perto de mim e disse: “Itamar, o que é que você quer?” Resolveu me mandar para a embaixada do Brasil na Itália. Pela afetividade, por ligações familiares lá, aceitei, mas com receio exatamente do problema que já tinha acontecido. (Logo depois de ganhar fama instantânea, em 1995 Lilian Ramos passou a viver justamente em Roma.) Fiquei bastante preocupado.

A foto da modelo, tirada durante um desfile de carnaval, comprometeu de alguma maneira a imagem presidencial?

Tenho a impressão de que não, porque eu estava ali inocentemente. Não convidei a modelo para ir ao meu camarote. Como disse, para saber se ela estava de calcinha, eu teria de pôr um espelho por baixo – ou, então, levantar a saia, o que eu não faria. Mas aconteceu de ela estar sem a calcinha. Não se pode ter medo de dizer que ela estava sem calcinha, porque ela estava, sim. É o que se verificou, depois. Mas repito que ela não foi convidada por mim. Alguém a colocou lá, alguém que se aproveitou de um descuido qualquer. Meu processo de liberdade, em que não me rodeio de muita segurança e deixo as coisas acontecerem, às vezes pode ser um erro. Alguém introduziu a modelo ali, maldosamente. Afinal, ninguém entra sem roupa num camarote, sobretudo no do presidente da República.

Aquilo causou um constrangimento público ao senhor?

Ah, muito constrangimento público, muito constrangimento…

Porque a foto teve até repercussão internacional…

Teve repercussão internacional. Tentei, depois, dar um telefonema para a modelo. Queria dar o telefonema para chamá-la e enquadrá-la. Tive de usar outro artifício, mas ela entendeu diferente. Terminou gravando o telefonema. O episódio causou um constrangimento internacional. Quem brincou comigo, numa determinada solenidade, foi o rei (Juan Carlos I) da Espanha. Havia um quadro. O rei chegou perto de mim e disse: “Meu caro Itamar, eis aí uma coisa de que você gosta…” Nós brincamos, tal a liberdade que ele tinha comigo. Mas aquilo me custou caro – um banzé danado. Eu é que fui prejudicado, porque todo mundo se beneficiou.

Que personalidade nacional ou estrangeira decepcionou o senhor na presidência?

De personalidade nacional não quero falar, porque eu poderia levantar uma celeuma que não me interessa nesse instante. Entre as personalidades estrangeiras, não me recordo de nenhuma que tenha me decepcionado. Sempre respeitei a personalidade e o modo de dirigir dos governantes. A gente aprende que não se deve interferir na gestão desse ou daquele presidente. Ao contrário. Mas houve duas figuras que me impressionaram. Uma pertence ao campo da religião. Pode-se até discordar da linha que ele seguia. Não quero debater a doutrina social da Igreja. Mas devo dizer que o papa João Paulo II me impressionou. Considero-o um peregrino da paz. Fiquei impressionado com a peregrinação que ele fez por uma paz que, infelizmente, até hoje, no século XXI, não conseguimos.

Hoje, vejo falar das relações entre Brasil e Venezuela. Mas Brasil e Venezuela, em minha época nas presidência, estavam de costas um para o outro. Fui o primeiro a visitar o presidente da Venezuela, Rafael Caldeira, depois que ele foi eleito. Vi que ele tinha um amor grande pelo Brasil. Ali, foi  possível fazer com que Venezuela e Brasil voltassem a ter amizade. A aproximação foi tão grande que o presidente Rafael Caldeira tornou-se um dos primeiros presidentes a defender a entrada do Brasil no Conselho de Segurança da ONU.

São figuras que me impressionaram. O presidente Rafael Caldeira, pela simplicidade, pelo bem querer em relação ao Brasil e por seus desejos democratas. O Papa João Paulo II, por ser um peregrino da paz, uma figura notável.

Tive três encontros com o Papa. Dois encontros ocorreram aqui no Brasil. Um ocorreu em Roma, quando o presidente Lula me pediu que o representasse no Jubileu do Papa (em 2003). Fui um dos 16 que puderam cumprimentá-lo. O Papa já estava doente. A gente seguia todo o drama pessoal não do Papa em si, mas daquela figura humana. Ao me ajoelhar para pegar na mão de João Paulo II e olhar para a face daquele homem, me emocionei bastante. Quando disse que era brasileiro, ele respondeu: “Oh, brasileiro”. Olhou-me rapidamente nos olhos. Pude ver que ali estava um homem que claramente demonstrava, no olhar, uma tristeza profunda.

(*) Trechos de entrevista publicada na íntegra no livro “DOSSIÊ BRASÍLIA : OS SEGREDOS DOS PRESIDENTES” -  que reúne depoimentos de  José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, gravados em 2005.



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